domingo, 6 de junho de 2021

O nome da coisa é permissividade conservadora

O nome da coisa é permissividade conservadora

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sinceramente, já não aguento mais as manifestações indignadas em relação as aglomerações que se sucedem em plena Pandemia. Está claro que, apesar de todos os apelos e as informações científicas a respeito das consequências desse tipo de comportamento, milhares de pessoas vão continuar insistindo, fazendo, sem nenhum constrangimento ou pudor.

Não faz muitos dias que li uma matéria na Folha e deparei-me com a seguinte frase, “É preciso chamar as coisas pelo nome”. Concordo plenamente. Afinal de contas, cada vez mais ensaboada para tomar posições convictas e claras, seja pela fragilidade argumentativa ou por simples ignorância fundamentativa em relação ao assunto, a sociedade brasileira acaba optando por posicionamentos bastante conservadores e peculiares, ou seja, não dá o nome ao que pensa, sente, acredita, ...

Então, conectando as duas coisas, aglomerações e nominar corretamente os fatos, percebi que estamos diante de uma PERMISSIVIDADE CONSERVADORA. Pensava que esses termos poderiam ser considerados como água e óleo, imiscíveis; mas, não.

Dentre as pautas que orbitam a atual gestão federal está, justamente, o conservadorismo. O que pressupõe a defesa da manutenção das instituições sociais tradicionais, ou seja, uma maneira de rechaçar os avanços, as transformações e os realinhamentos da sociedade as conjunturas vigentes.

Por isso, causa profunda estranheza pensar que pessoas tão devotadas em hastear, metaforicamente ou não, a bandeira da vida, que é uma das pautas conservadoras mais difundida, não se perturbem com o avanço e a manutenção da Pandemia no país. Afinal, já foram mais de 470 mil óbitos pelo Sars-COV-2, até ontem.

Só que não. Não podemos nos esquecer da permissividade. Ancorada por narrativas governamentais, a população encontra o respaldo necessário para agir, segundo as vozes da própria cabeça. O próprio governo federal se gaba de não impor restrições ao deslocamento e trânsito das pessoas e culpa os demais entes da federação, por agirem de maneira mais restritiva.

Mas, não bastasse isso, ele também faculta a iniciativa de imunização ao cidadão, como se não houvesse a necessidade de que todos, dentro das faixas etárias indicadas, fossem vacinados para a contenção definitiva da circulação do vírus.

Razão pela qual, a excelência no Programa de Imunização nacional vira fumaça, dada a lentidão e desestruturação do processo, como jamais visto anteriormente. Imunizados com a 1ª e a 2ª doses representam, 10,81% da população vacinável.

Tamanha permissividade, em plena contemporaneidade, transmite ao cidadão uma ideia de liberdade sem limites. Ele se sente dono e senhor de suas vontades e decisões, sem se preocupar com as consequências e com seus pares, porque ele, também, traz consigo um individualismo exacerbado. Portanto, a permissividade somada ao individualismo torna-se uma mistura perigosa para uma dinâmica social equilibrada e respeitosa; independentemente, da Pandemia.

Aliás, antes desses sinais visíveis, na Pandemia, a permissividade conservadora já mostrava o seu alcance por meio da defesa do uso e porte de armas, no fomento aos ataques contra personalidades do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) e, na exacerbação de narrativas e práticas intolerantes, discriminatórias e violentas contra grupos sociais minoritários. O que evidencia um viés bastante tendencioso no discurso conservador de defesa da vida.

Os diversos veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, dão conta diariamente de como essa permissividade tem construído uma sociedade refém da morte. Principalmente, aqueles menos favorecidos, ou seja, negros, pobres, moradores de comunidades.

Porque o conservadorismo, na defesa das instituições tradicionais, limita e reinterpreta o seu espectro de atuação de maneira tão contundente, que acaba legitimando a desigualdade social e econômica. Então, essa permissividade conservadora visa a atender grupos sociais privilegiados.

Ela não coloca em discussão o valor humano dessas vidas; apenas, que elas têm o direito a uma liberdade sem limites. Porque a sociedade contemporânea acredita que é possível trocar a segurança pela liberdade.

Entretanto, quanto mais livres, mais inseguros estão os cidadãos; na medida da impossibilidade de pensar sobre todas as incógnitas que perpassam pelos desdobramentos e consequências dessa dinâmica. Em suma, o mundo trocou as bases das suas certezas pela volatilidade das incertezas.

Talvez, isso explique porque tantas pessoas se rendam as ilusões, através da narrativa de quem lhes diz só o que elas querem ouvir. Elas precisam legitimar esse leque de escolhas, que lhes foi dado, ainda que incorretas e equivocadas, para resguardar um bocado que seja da sua certeza.

Diante disso, a Pandemia, em solo nacional, parece ter destino longo; apesar de todos os esforços hercúleos de quem já se permitiu entender a gravidade do momento. Afinal, as estratégias de persuasão informativa, empregadas até aqui, precisam ser reformuladas.

Penso que a hora pede visibilizar mais a legião dos sequelados pela COVID-19. Deixá-los falar, contar as suas experiências, compartilhar as suas dores e aflições. Trazer o real para a realidade, não para essa representação ficcional.

Sair do recorte dos que sobreviveram, como se isso fosse um passaporte que minimiza e extermina os problemas. Porque isso não é verdade. A Ciência já sabe que, mesmo os assintomáticos, podem desenvolver algum tipo de consequência em médio e longo prazo.

Frente a todas essas reflexões, cabe a cada um pensar que “Suprimir os obstáculos não é dar liberdade, mas sim permitir o desregramento, que conduz à desestruturação, à monotonia, ao nada” (Pablo Picasso – pintor espanhol). Temos a ideia de que o permissivo é sempre bonzinho; mas, nos abstemos de pensar que ninguém sabe exatamente, em profundidade, quais ardis se escondem nessa bondade. Porque viver a suprimir obstáculos, gratuita e voluntariamente, não é obrigação de ninguém, a não ser que haja algum tipo de interesse nisso.