Quem
manda? Quem pode?
Por
Alessandra Leles Rocha
Insultos e deselegâncias à parte,
o que chamou atenção na sessão, de hoje, da Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) sobre a COVID-19, foi uma tal carta-proposta enviada por uma empresa farmacêutica
multinacional ao governo federal. Segundo o depoente do dia, a mesma havia sido
encaminhada a diferentes ministros de Estado; bem como, ao Presidente e ao
Vice-Presidente da República.
Estranho, porque, geralmente as
tratativas comerciais acontecem de maneira objetiva e direcionada entre os
setores responsáveis de compra e venda. Não faz sentido, que uma multinacional desse
porte aja dessa maneira, um tanto quanto amadorística.
E justamente por conta dessa
dispersão na comunicação, descobriu-se que o Presidente da República só foi
informado da existência da referida carta, dois meses depois dela ter sido
enviada, pelo Secretário de Comunicação do governo; o que significa que, até
ele, já sabia do assunto.
Sem contar, que os demais informados
parecem ter optado pela indiferença ao assunto da compra de vacinas da referida
empresa e se mantidos à margem de comentários a respeito com o Presidente da República.
Espantoso; pois, tal assunto dizia respeito diretamente aos interesses do Ministério
da Saúde em plena Pandemia.
De repente, transpareceu que a
velha máxima de que “um manda e o outro
obedece” só prevalece até a página dois. Porque um assunto tão importante
quanto esse, o qual já estava disseminado pelos corredores palacianos, deveria
ter sido debatido com a liderança maior do país, desde o primeiro momento em
que um dos destinatários da carta-proposta a tivesse recebido. Se sabiam, cada
um decidiu silenciar por escolha própria e em desobediência aos parâmetros de
trabalho estabelecidos e amplamente divulgados pelo chefe.
O pior é que isso se reafirma, na
medida em que o Secretário de Comunicação passou a tomar a dianteira do contato
com a empresa e fazer a ponte desta com a Presidência da República. De certa
forma, houve uma quebra de hierarquia lógica nesse processo, quando ao ter ciência
da carta, o Secretário de Comunicação deveria ter buscado o Ministro da Saúde
para informá-lo, sendo ele o principal interessado na questão e o responsável por
tratar do assunto com o Presidente.
Parece que os espaços funcionais
do governo são frequentemente sobrepostos pelos seus responsáveis, constituindo
um certo movimento de ingerência uns sobre os outros, o que acaba resultando em
muitos ruídos e prejuízos de comunicação. Além disso, figura uma ideia de que
falta, por parte do Presidente da República, um posicionamento melhor definido em
relação a tomada de decisões.
Afinal, as indefinições que se
apresentam no campo das responsabilidades sobre os atos administrativos sugerem
uma oscilação gestora entre o Presidente e seus assessores e Ministros. Fica a
dúvida, então, a palavra final é de quem e em que circunstâncias? Basta
considerar que, em poucos dias de funcionamento, a CPI trouxe à tona essa
inquietação, a partir dos depoimentos que vêm manifestando sobre a presença de
pessoas exercendo forte influência sobre decisões administrativas importantíssimas.
Será que foi, por essa razão, então,
que a empresa viu a necessidade de encaminhar a vários destinatários diferentes
a tal carta-proposta? Quem sabe. Talvez, estivessem com algum tipo de insegurança
comercial em relação a quem poderia lhes dar uma resposta mais clara e objetiva
sobre aquela tratativa.
Diante da acirrada lei da oferta
e da procura que se estabeleceu em torno das vacinas para prevenção à COVID-19,
a urgência demandava um posicionamento mais efetivo, o qual não parecia advir
do Presidente, observando-se seu posicionamento negocionista em relação à
Pandemia.
Seja como for, essa carta lançou
luz sobre um viés importante de reflexão. É preciso entendermos melhor a dinâmica
gestora do poder, porque nos regimes democráticos ela passa pela exigência de
uma escolha popular. Ao votar, as pessoas outorgam aos seus representantes a
responsabilidade de governar, de legislar, ou seja, elas depositam credibilidade
nas ações daqueles determinados indivíduos.
Na medida em que outros, não
escolhidos pela vontade popular, começam a interferir de modo contundente nos
campos da governabilidade, um sentimento de desconforto começa a emergir. Sobretudo,
quando essa ingerência ultrapassa deliberadamente os limites da consulta e da
orientação, para influenciar uma determinada tomada de decisões que não esteja
de acordo com os interesses do país e de sua população. Haja vista, o panorama
da Pandemia em território nacional.
Assim, não nos esqueçamos do que escreveu o Padre António Vieira, no século XVII, “As varas do poder, quando são muitas, elas mesmo se comem, como famintas sempre de maiores postos”. Afinal, tudo isso abre espaços imensos para uma desconstrução da sociedade e uma proliferação de males que poderiam ser evitados, porque os responsáveis estão narcísicos, a tal ponto, que não enxergam nada além de si e de seus interesses próprios.