sábado, 29 de maio de 2021

Agora, só resta aguardar...


Agora, só resta aguardar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pesando prós e contras, em relação a sair às ruas em plena conjuntura de recrudescimento da COVID-19 no território nacional, dezenas de milhares de pessoas, munidas de máscaras do tipo Pff2 e álcool em gel, além de algum distanciamento possível, deram o seu recado de total indignação à política de enfrentamento à Pandemia, estabelecida pelo governo federal. Foram 23 capitais, o DF e diversas cidades do interior, além de grupos representantes em outros países, em uma união de esforços democráticos contra o morticínio que se abate sobre o Brasil.

Politicamente, o sucesso da empreitada não surpreende, tendo em vista os números das recentes pesquisas de opinião sobre a gestão do governo. Apesar da relevância histórica da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19, instaurada pelo Senado Federal, o curso avassalador da Pandemia no cotidiano brasileiro persiste. Com uma média diária de 2000 mortos e uma vacinação completa, 1ª e 2ª doses dos imunizantes disponíveis, alcançando um percentual em torno de 10% da população, é perceptível que as estratégias estejam equivocadas.

O que não se trata apenas de uma exposição dos cidadãos ao risco de contaminação pelo Sars-Cov-2, em decorrência da baixa imunização e das campanhas contrárias às medidas sanitárias de prevenção preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS); mas, do que esse conjunto de fatores representa no âmbito geral da dinâmica socioeconômica do país. Porque, de um contingente de 94% da população, distribuídos entre a classe média tradicional e a classe baixa, quase que a maioria absoluta deles foi lançada ao risco de contaminação em nome da sobrevivência.

Eles não tiveram escolha social para manterem-se em isolamento. Fosse pelas impossibilidades da própria organização urbana das cidades, com seus aglomerados sem a menor infraestrutura habitacional compatível as demandas sanitárias da COVID-19. Fosse pela precariedade dos serviços de transporte público, desfavorecendo por completo o distanciamento, a higienização dos veículos de maneira qualitativa e quantitativa necessária. Fosse pelo período de exposição diária em decorrência do deslocamento para o trabalho e outras atividades essenciais. Enfim...

Então, a negligência, a incompetência, o descaso, o desrespeito, ... atingiram essas pessoas em cheio. Está nesse estrato social a expressão maior das perdas ocasionadas pela Pandemia. Perdas humanas. Perdas materiais. Perdas educacionais. Perdas emocionais. Que se resumem e se traduzem na perda da dignidade cidadã. O seu existir, enquanto cidadão brasileiro, previsto constitucionalmente, foi sumariamente alijado pelo governo federal.

De modo que essas pessoas reconhecem que já não dispunham de atenção governamental antes da Pandemia, que durante o processo isso se acirrou e que no Pós-Pandemia tende a ficar ainda pior. Portanto, foi esse contexto que moveu milhares de pessoas a materializar a sua insatisfação, a estabelecer o seu limite de tolerância social, buscando um lugar de fala em que suas dores pudessem caber de fato e de direito no mundo.

E se isso não as absolve, por completo, a atitude temerária em tempos tão complexos de disseminação da pandemia no país; em parte, as manifestações de hoje demonstraram um nível de comprometimento com as medidas sanitárias que jamais foi visto nas aglomerações, sem nenhum sentido ou razão, promovidas pelo Presidente da República e seus seguidores. Havia uma causa a se lutar, havia preocupação, havia cuidado, em cada um que se fez presente pelas ruas brasileiras, neste sábado.

Agora, ratificadas as pesquisas de opinião, não há como negar a situação e nem seus vieses; só resta aguardar. O silêncio das cruzes, dos caixões, das criptas mortuárias, tão confortável ao torpor de certos cidadãos e instituições, foi rompido pelo sopro de vida que, ainda, resiste e persiste, ecoando seus gemidos e lamentos.

Vidas que são o retrato da realidade nada palatável desse país, porque desnudam e confrontam as frágeis narrativas circulantes. Vidas que, de um jeito ou de outro, estão computadas nas estatísticas da dramaticidade social brasileira.

Há, portanto, um pedido de socorro humanitário pairando sobre os céus do país. Brasileiros de todos os gêneros, credos, raças, etnias, status social, escolaridade, expressam indignados a mensagem que se faz subscrita pelos quase 460 mil mortos, e que se traduz em um apelo uníssono por justiça.

Afinal, como tão bem escreveu Rui Barbosa, “A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” 1.

  



1 BARBOSA, R. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras Completas. Vol. XLI, Tomo III, 1914. p.86-87. (https://institutopoimenica.com/2012/05/18/a-runa-da-justia-rui-barbosa/

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