Agora,
só resta aguardar...
Por
Alessandra Leles Rocha
Pesando prós e contras, em
relação a sair às ruas em plena conjuntura de recrudescimento da COVID-19 no território
nacional, dezenas de milhares de pessoas, munidas de máscaras do tipo Pff2 e
álcool em gel, além de algum distanciamento possível, deram o seu recado de
total indignação à política de enfrentamento à Pandemia, estabelecida pelo
governo federal. Foram 23 capitais, o DF e diversas cidades do interior, além
de grupos representantes em outros países, em uma união de esforços democráticos
contra o morticínio que se abate sobre o Brasil.
Politicamente, o sucesso da
empreitada não surpreende, tendo em vista os números das recentes pesquisas de
opinião sobre a gestão do governo. Apesar da relevância histórica da Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) da COVID-19, instaurada pelo Senado Federal, o curso
avassalador da Pandemia no cotidiano brasileiro persiste. Com uma média diária
de 2000 mortos e uma vacinação completa, 1ª e 2ª doses dos imunizantes
disponíveis, alcançando um percentual em torno de 10% da população, é
perceptível que as estratégias estejam equivocadas.
O que não se trata apenas de uma
exposição dos cidadãos ao risco de contaminação pelo Sars-Cov-2, em decorrência
da baixa imunização e das campanhas contrárias às medidas sanitárias de
prevenção preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS); mas, do que
esse conjunto de fatores representa no âmbito geral da dinâmica socioeconômica do
país. Porque, de um contingente de 94% da população, distribuídos entre a
classe média tradicional e a classe baixa, quase que a maioria absoluta deles
foi lançada ao risco de contaminação em nome da sobrevivência.
Eles não tiveram escolha social
para manterem-se em isolamento. Fosse pelas impossibilidades da própria
organização urbana das cidades, com seus aglomerados sem a menor infraestrutura
habitacional compatível as demandas sanitárias da COVID-19. Fosse pela
precariedade dos serviços de transporte público, desfavorecendo por completo o
distanciamento, a higienização dos veículos de maneira qualitativa e quantitativa
necessária. Fosse pelo período de exposição diária em decorrência do
deslocamento para o trabalho e outras atividades essenciais. Enfim...
Então, a negligência, a incompetência,
o descaso, o desrespeito, ... atingiram essas pessoas em cheio. Está nesse
estrato social a expressão maior das perdas ocasionadas pela Pandemia. Perdas humanas.
Perdas materiais. Perdas educacionais. Perdas emocionais. Que se resumem e se
traduzem na perda da dignidade cidadã. O seu existir, enquanto cidadão
brasileiro, previsto constitucionalmente, foi sumariamente alijado pelo governo
federal.
De modo que essas pessoas
reconhecem que já não dispunham de atenção governamental antes da Pandemia, que
durante o processo isso se acirrou e que no Pós-Pandemia tende a ficar ainda
pior. Portanto, foi esse contexto que moveu milhares de pessoas a materializar
a sua insatisfação, a estabelecer o seu limite de tolerância social, buscando
um lugar de fala em que suas dores pudessem caber de fato e de direito no
mundo.
E se isso não as absolve, por
completo, a atitude temerária em tempos tão complexos de disseminação da pandemia
no país; em parte, as manifestações de hoje demonstraram um nível de
comprometimento com as medidas sanitárias que jamais foi visto nas aglomerações,
sem nenhum sentido ou razão, promovidas pelo Presidente da República e seus
seguidores. Havia uma causa a se lutar, havia preocupação, havia cuidado, em
cada um que se fez presente pelas ruas brasileiras, neste sábado.
Agora, ratificadas as pesquisas de
opinião, não há como negar a situação e nem seus vieses; só resta aguardar. O silêncio
das cruzes, dos caixões, das criptas mortuárias, tão confortável ao torpor de
certos cidadãos e instituições, foi rompido pelo sopro de vida que, ainda,
resiste e persiste, ecoando seus gemidos e lamentos.
Vidas que são o retrato da
realidade nada palatável desse país, porque desnudam e confrontam as frágeis narrativas
circulantes. Vidas que, de um jeito ou de outro, estão computadas nas estatísticas
da dramaticidade social brasileira.
Há, portanto, um pedido de
socorro humanitário pairando sobre os céus do país. Brasileiros de todos os gêneros,
credos, raças, etnias, status social, escolaridade, expressam indignados a
mensagem que se faz subscrita pelos quase 460 mil mortos, e que se traduz em um
apelo uníssono por justiça.
Afinal, como tão bem escreveu Rui
Barbosa, “A injustiça, senhores, desanima
o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia
no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os
homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da
sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação,
insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” 1.
1 BARBOSA, R. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras Completas. Vol. XLI, Tomo III, 1914. p.86-87. (https://institutopoimenica.com/2012/05/18/a-runa-da-justia-rui-barbosa/)