Quando
dividir perde o sentido de compartilhar
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto os números da Pandemia
nos retiram um pouco mais de ar dos pulmões, torna-se bastante oportuna a
reflexão sobre como a vida se afunila cada vez mais nessa espiral insana. Porque
nem só do Sars-COV-2 se nutre o caos brasileiro. Afinal, nada estava efetivamente
caminhando bem até março de 2020.
Cada novo ano que se inicia no
país tem por teimosia renovar votos de cronicidade eterna com os problemas; de
modo que eles vão se tornando mais e mais difíceis de resolver. Especialmente,
quando não se dispõe a tratá-los com um pouco mais de responsabilidade e senso
humanitário.
Então, começo a perceber que o
principal gatilho dessa insanidade toda é mesmo, a clássica divisão “nós” e “eles”.
Que nada tem de democrática ou igualitária em termos numéricos. Só uma divisão
de poder, de importância, de valor. Que desconsidera e desqualifica o todo na
engenhosidade que move todas as engrenagens do desenvolvimento. Tudo porque
parte da premissa de que “quem não está comigo está contra mim”.
Isso quer dizer que para
pertencer ao “nós” é preciso pagar o pedágio de uma subserviência e uma concordância
cegas com tudo o que pensam, fazem, acreditam. Caso contrário, são sumária e
rapidamente banidos para o espaço do “eles”, os discordantes, os rebeldes, os
insurgentes.
De modo que fica clara a
impossibilidade dialógica, a construção de um senso comum, porque esse tipo de
divisão não tem aspirações coletivas, democráticas, solidárias, participativas.
Por isso não é sem razão já termos alcançado quase 270 mil vidas perdidas no
Brasil; a sociedade está dividida.
E não poderia ser diferente. Em pleno
século XXI, a vida humana já passou por grandes e profundas transformações que
lhe propiciaram expandir as fronteiras cognitivas e intelectuais a fim de
construir as bases de seus conhecimentos e pontos de vista. O ser humano sabe
que pode e dever pensar com a própria cabeça e extrair suas próprias conclusões.
No entanto, para as turmas dos “nós” que vêm se sucedendo ao longo da história,
isso é inadmissível e imperdoável.
Por isso é que eles trabalham com
tanto afinco na disseminação das Fake
News, no Negacionismo, no desmantelamento científico e cultural. O “nós”
considera essas estratégias fundamentais para a sua sobrevivência. A alienação
e a ignorância decorrentes dessas práticas conseguem de algum modo coaptar
seguidores, os quais se tornam disseminadores dos pensamentos próprios do
grupo.
Podem ser considerados como os mensageiros
das “verdades paralelas”; mas, que
lhes fazem algum sentido dada a adequação com que interagem com suas bases de
convicção. As habilidades e competências desses mensageiros para convencer são
amplas porque aprenderam a reconhecer as vulnerabilidades nos outros e, a
partir daí, expressar ideias e opiniões que sejam exatamente o que eles querem
ouvir. De modo que a repetição dessas narrativas vai construindo uma cortina de
fumaça que retira o foco do que acontece ao redor, inclusive, de mais grave.
E esse ponto, talvez, seja
importante destacar, porque não é necessariamente uma questão de contingente
numérico que promove os efeitos destruidores dessas “verdades paralelas”; mas, a
quantidade de vezes em que elas são lançadas sobre a sociedade. O que em tempos
de Tecnologia da Informação foi facilitada pela utilização de “robôs” na
internet para influenciar a opinião pública.
Por esses meios quantas notícias
afastaram pessoas da vacinação infantil contra o Sarampo e outras doenças no
Brasil, ocasionando focos epidêmicos no país? Quantas teorias da conspiração se
disseminaram e afetaram eleições ao redor do planeta? Quantas contestações ideológicas
afetaram a publicação e distribuição literária? Enfim... O mundo foi
apresentado a uma legião de “donos da
verdade”, representantes absolutos do
“nós”.
Como é possível perceber, o “nós” ´só defende ideias próprias,
pontos de vista fundamentados em casuísmos, em achismos que atendam ao seu
interesse e sobrevivência social. Não importa se pessoas podem morrer ou se
prejudicar de alguma forma. Eles se consideram o “lado certo” da história e
ponto final.
João Guimarães Rosa escreveu em “Grande Sertão: Veredas” algo que cabe
perfeitamente bem nessa reflexão: “O mais
importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam”. Então, enquanto tudo isso acontece ao nosso redor, olho para o
mundo e só consigo ver pluralidade. Não encontro possibilidade matemática de
criar dois conjuntos sem uma grande intersecção entre eles ou, quem sabe,
apenas um único conjunto.
Porque a essência da vida é um gigantesco
ponto comum para todos nós. Nascemos, crescemos, morremos, trabalhamos, amamos,
sofremos, adoecemos, ... nossa humanidade é a tecitura amarrada do biológico com
o subjetivo e o comportamental. Portanto, o “Nós”
e “eles” não passa de mera falácia. Ora,
somos frutos da mesma árvore! Esse discurso é somente mais um “jeitinho” de se
fazer diferente, apesar de não ser.