O
individualismo explica muito...
Por
Alessandra Leles Rocha
Me solidarizo a todos que se
sentem incomodados e perplexos com a insensibilidade alheia, nesses tempos pandêmicos.
É mesmo difícil de acreditar tamanha ausência de espírito coletivo, fraterno,
humanitário. Mas, a vida não segue seu curso orquestrada com eximia maestria. Há
muitos fora do tom, atravessando a melodia e interrompendo o compasso.
E por quê? Parei para pensar a
respeito e, de repente, o individualismo
iniciou a resposta. O senso de coletividade foi algo que se perdeu com o
tempo; mais precisamente, a partir da Revolução Industrial. Grandes quantidades
de produtos fabricados simultaneamente demandaram contingentes cada vez maiores
de consumidores. Assim, as demandas passaram a ser analisadas individualmente
para serem satisfeitas pelo comércio. Até que se chegou ao ponto em que as
pessoas pararam de considerar as relações sociais pelo prisma do grupo, do
conjunto de indivíduos, para centrar em um por um.
Foi dessa forma que o individualismo surgiu sob a face que
conhecemos e vem prosperando ao longo dos três últimos séculos, ou seja, XIX,
XX e XXI. O pior é que não para na necessidade. De maneira consciente ou
inconsciente, as pessoas promovem entre si todo um ritual exibicionista que
fomenta o consumo. “Eu tenho e você não tem”. “Se ele compra eu
preciso comprar também”. ... E essa roda de desejos e aspirações de consumo vai enredando as classes
sociais a construírem suas vidas alicerçadas nesse propósito.
Isso significa que a vida passou
a existir em função do consumo, do individualismo e dos desdobramentos
sociais que ele representa. Já ouviu dizer, por exemplo, que o lixo diz muito
sobre quem o produz? Verdade. Pelo tipo de resíduos descartados é possível
traçar um perfil socioeconômico das pessoas, partindo de marcas, quantidades, volume
total, tipos de produtos etc. E esse processo se tornou uma teia que absorve as
nossas atenções para o mundo, do ponto de vista de uma sociedade que convive e
coexiste no mesmo espaço; mas, não plenamente.
Nos tornamos fabulosos “adoradores do próprio umbigo”. Nada que
não esteja nesse raio de visão instituído individualmente é percebido. Os seres
humanos se permitiram encapsular, se isolar uns dos outros, mantendo uma
relação social mínima; até mesmo, no ambiente familiar. Cada um tem sua própria
TV. Cada um tem seu próprio meio de transporte. Cada um tem seu próprio celular, tablete ou
computador. ... E o cotidiano segue dentro de uma “normalidade” que, no fundo,
é muito estranha.
Talvez, agora, isso comece a ser novamente
compreendido. Tendo em vista que a conjuntura da Pandemia tem imposto uma
restrição social cada vez mais rígida, em razão das novas cepas variantes com
alta transmissibilidade. O isolamento vem deixando de ser, então, uma opção
para ser a única solução disponível. Os núcleos familiares vêm sendo novamente
imersos em um cotidiano coletivo, como se as tais “bolhas do individualismo”
tivessem, de algum modo, sofrido alguma ranhura que as fez romper, pelo menos
em parte.
No entanto, essa foi uma mudança
tão abrupta que nem todos conseguiram se reenquadrar a nova realidade. Há muita
gente convictamente individualista e
que não está disposta a ceder de maneira alguma. O apego que elas dispensam a
esse modo de viver é incapaz de fazê-las perceber que o mundo já se concentra
sob uma nova ordem. Acostumadas a viver sob as leis de seus respectivos “casulos”, elas buscam, então, resistir
pela afronta, pelo desrespeito, pela briga, pelo tumulto, ... Como se isso fosse
adiantar.
Sabemos pelas páginas da história
que o mundo individualista sobreviveu
durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, talvez fosse oportuno procurar entender
o modo como conseguiram dentro daquela conjuntura arrasadora. Porque o mundo
ficou em escombros materiais e humanos. Não sei se diante de 60 a 80 milhões de
vidas perdidas naquela ocasião houve ânimo suficiente para pensar somente em si
mesmo, nas próprias vontades e quereres imediatos. Sem contar nos milhões de
famintos, doentes, desabrigados, desalentados, desempregados, vagando sem rumo
em busca de uma gota de esperança.
De modo que para recomeçar foi
necessário um espírito altruísta coletivo gigantesco. Depois, quando a vida
começou a se realinhar e as gerações começaram a se substituir, é que o individualismo pode reascender a sua
chama, graças as novas Revoluções Industriais e a consolidação do consumo pelas vias estratégicas do marketing. Até o ponto em que nos
tornamos parte dessa história.
O Pós-Pandemia diferentemente do
Pós-Guerra (1939-1945) é, por enquanto, uma expectativa sem data para se
consolidar. A humanidade ainda vive a apreensão do aumento dos mais de 2,6 milhões
de mortos e de uma vacinação lenta e não homogênea em curso. As cepas variantes
são graves e há prognóstico de que outras possam surgir ainda mais agressivas,
a fim de garantir sua permanente circulação entre nós. Portanto, ainda não
temos o rescaldo. O que significa que o individualismo,
ao tentar manter-se ativo, torna-se um pensamento totalmente desconectado
dos fatos.
É preciso que se entenda que a individualidade humana foi é e sempre
será importante, porque ela é simplesmente a identidade de cada indivíduo. Mas,
o individualismo, esse é
profundamente questionável, na medida em que ele se traduz sob uma forma fundamentalmente
egoísta de ser e estar nas relações sociais. Ele é o desejo de ser e ter sempre
o primeiro, o único, o mais importante, ... em quaisquer situações.
Aí, é que entra a questão do
consumo, enquanto cerne dessa insensibilidade circulante entre nós, como
explicou Zygmunt Bauman: “Não se pode escapar
do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir; é o desejo
insaciável de continuar consumindo ... Desde o paleolítico os humanos perseguem
a felicidade ... Mas os desejos são infinitos. As relações humanas são
sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas” (entrevista
ao jornal espanhol La Vanguardia).