domingo, 14 de março de 2021

O individualismo explica muito...


O individualismo explica muito...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Me solidarizo a todos que se sentem incomodados e perplexos com a insensibilidade alheia, nesses tempos pandêmicos. É mesmo difícil de acreditar tamanha ausência de espírito coletivo, fraterno, humanitário. Mas, a vida não segue seu curso orquestrada com eximia maestria. Há muitos fora do tom, atravessando a melodia e interrompendo o compasso.

E por quê? Parei para pensar a respeito e, de repente, o individualismo iniciou a resposta. O senso de coletividade foi algo que se perdeu com o tempo; mais precisamente, a partir da Revolução Industrial. Grandes quantidades de produtos fabricados simultaneamente demandaram contingentes cada vez maiores de consumidores. Assim, as demandas passaram a ser analisadas individualmente para serem satisfeitas pelo comércio. Até que se chegou ao ponto em que as pessoas pararam de considerar as relações sociais pelo prisma do grupo, do conjunto de indivíduos, para centrar em um por um.

Foi dessa forma que o individualismo surgiu sob a face que conhecemos e vem prosperando ao longo dos três últimos séculos, ou seja, XIX, XX e XXI. O pior é que não para na necessidade. De maneira consciente ou inconsciente, as pessoas promovem entre si todo um ritual exibicionista que fomenta o consumo. “Eu tenho e você não tem”. “Se ele compra eu preciso comprar também”. ... E essa roda de desejos e aspirações de consumo vai enredando as classes sociais a construírem suas vidas alicerçadas nesse propósito.

Isso significa que a vida passou a existir em função do consumo, do individualismo e dos desdobramentos sociais que ele representa. Já ouviu dizer, por exemplo, que o lixo diz muito sobre quem o produz? Verdade. Pelo tipo de resíduos descartados é possível traçar um perfil socioeconômico das pessoas, partindo de marcas, quantidades, volume total, tipos de produtos etc. E esse processo se tornou uma teia que absorve as nossas atenções para o mundo, do ponto de vista de uma sociedade que convive e coexiste no mesmo espaço; mas, não plenamente.

Nos tornamos fabulosos “adoradores do próprio umbigo”. Nada que não esteja nesse raio de visão instituído individualmente é percebido. Os seres humanos se permitiram encapsular, se isolar uns dos outros, mantendo uma relação social mínima; até mesmo, no ambiente familiar. Cada um tem sua própria TV. Cada um tem seu próprio meio de transporte.  Cada um tem seu próprio celular, tablete ou computador. ... E o cotidiano segue dentro de uma “normalidade” que, no fundo, é muito estranha.

Talvez, agora, isso comece a ser novamente compreendido. Tendo em vista que a conjuntura da Pandemia tem imposto uma restrição social cada vez mais rígida, em razão das novas cepas variantes com alta transmissibilidade. O isolamento vem deixando de ser, então, uma opção para ser a única solução disponível. Os núcleos familiares vêm sendo novamente imersos em um cotidiano coletivo, como se as tais “bolhas do individualismo tivessem, de algum modo, sofrido alguma ranhura que as fez romper, pelo menos em parte.

No entanto, essa foi uma mudança tão abrupta que nem todos conseguiram se reenquadrar a nova realidade. Há muita gente convictamente individualista e que não está disposta a ceder de maneira alguma. O apego que elas dispensam a esse modo de viver é incapaz de fazê-las perceber que o mundo já se concentra sob uma nova ordem. Acostumadas a viver sob as leis de seus respectivos “casulos”, elas buscam, então, resistir pela afronta, pelo desrespeito, pela briga, pelo tumulto, ... Como se isso fosse adiantar.

Sabemos pelas páginas da história que o mundo individualista sobreviveu durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, talvez fosse oportuno procurar entender o modo como conseguiram dentro daquela conjuntura arrasadora. Porque o mundo ficou em escombros materiais e humanos. Não sei se diante de 60 a 80 milhões de vidas perdidas naquela ocasião houve ânimo suficiente para pensar somente em si mesmo, nas próprias vontades e quereres imediatos. Sem contar nos milhões de famintos, doentes, desabrigados, desalentados, desempregados, vagando sem rumo em busca de uma gota de esperança.

De modo que para recomeçar foi necessário um espírito altruísta coletivo gigantesco. Depois, quando a vida começou a se realinhar e as gerações começaram a se substituir, é que o individualismo pode reascender a sua chama, graças as novas Revoluções Industriais e a consolidação do consumo pelas vias estratégicas do marketing. Até o ponto em que nos tornamos parte dessa história.

O Pós-Pandemia diferentemente do Pós-Guerra (1939-1945) é, por enquanto, uma expectativa sem data para se consolidar. A humanidade ainda vive a apreensão do aumento dos mais de 2,6 milhões de mortos e de uma vacinação lenta e não homogênea em curso. As cepas variantes são graves e há prognóstico de que outras possam surgir ainda mais agressivas, a fim de garantir sua permanente circulação entre nós. Portanto, ainda não temos o rescaldo. O que significa que o individualismo, ao tentar manter-se ativo, torna-se um pensamento totalmente desconectado dos fatos.

É preciso que se entenda que a individualidade humana foi é e sempre será importante, porque ela é simplesmente a identidade de cada indivíduo. Mas, o individualismo, esse é profundamente questionável, na medida em que ele se traduz sob uma forma fundamentalmente egoísta de ser e estar nas relações sociais. Ele é o desejo de ser e ter sempre o primeiro, o único, o mais importante, ... em quaisquer situações.

Aí, é que entra a questão do consumo, enquanto cerne dessa insensibilidade circulante entre nós, como explicou Zygmunt Bauman: “Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo ... Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade ... Mas os desejos são infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas” (entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia).

Portanto, é essa dinâmica que tem trazido uma ideia irreal de diferenciação, de singularização, de poder; porque, em essência, os seres humanos são o que são.  Nada do que possam comprar, fazer, conquistar ... será capaz de mudar sua sina. Continuarão nascendo, crescendo, envelhecendo e morrendo. Vulneráveis, susceptíveis, indefesos diante das surpresas da vida. De modo que até as rebeldias perdem o seu caráter “charmoso”, quando se percebe a dimensão de sua inutilidade.

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