sexta-feira, 5 de março de 2021

Entre flagelos e esmolas


Entre flagelos e esmolas

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Pessoas dotadas de consciência humanitária e bom senso não duvidam da importância dos programas de renda mínima para populações em alto grau de vulnerabilidade. No entanto, elas sabem também que isso não é tudo, que os problemas não se extinguem nesse ponto. Sem o pensamento voltado para a ruptura com as desigualdades sociais, a partir da promoção de oportunidades e o acesso aos direitos fundamentais básicos, ao invés de caminhar para o desenvolvimento, o país permanece sempre “arrastando correntes” para o atraso.

Isso porque é natural o crescimento populacional tender a superar as possibilidades assistenciais de quaisquer governos. Quanto mais indivíduos dependentes desse suporte social, mais insuficientes eles serão para garantir-lhes a satisfação elementar de suas demandas mais essenciais e urgentes. Por isso, permitir que as pessoas construam sua autonomia cidadã deve ser parte de qualquer projeto de política socioeconômica com viés atual e inovador.  

Mas, para alcançar esse propósito é necessário dispor de uma visão não somente quantitativa dessa promoção de oportunidades e acesso aos direitos fundamentais básicos; mas, também, qualitativa. Infelizmente, as propostas que costumam permear essas cartas de intenção humanitárias não se preocupam muito com a qualidade do que se propõe a oferecer. Não é à toa, por exemplo, os recorrentes episódios de insuficiência e ineficiência dos serviços públicos, tais como Educação, Saúde e Moradia.

Há uma visível distorção em relação ao significado do que seja público e assim, constrói-se uma percepção equivocada de mero atendimento aos cidadãos menos favorecidos; o que não é verdade. Tudo o que é público advém da contribuição de impostos e tributos, os quais são convertidos pelo Estado em favor da população como um todo, não apenas para alguns.

Entretanto, aqueles que se consideram privilegiados dentro da sociedade, que não dependem diretamente desses serviços, quase sempre não se preocupam ou se interessam por eles, por considerarem uma questão que não lhes diz respeito. Como se a obrigação de exigir por qualidade e quantidade fosse de quem os utiliza exclusivamente. Só que ao se esquecerem de que em cada item ali está um pouco do seu sacrifício fiscal, abrem um flanco imenso para os ataques vorazes da corrupção e do desperdício. O que extingue eventuais possibilidades de combate maciço as desigualdades.

É preciso entender que a pujança de uma nação não está nas mãos de uns ou de outros; mas, da coletividade que abarca a todos. As nações mais importantes do planeta são justamente aquelas que praticam essa consciência. O desenvolvimento e o progresso se ampliam na medida em que as desigualdades diminuem, ou até desaparecerem.  Porque ao se sentir integrante e integrada na sua cidadania, a população se envolve e participa ativamente das melhorias, das conquistas, dos avanços.

Mas ao ser colocada sempre a margem, sempre excluída daquilo que é mais fundamental, nenhuma população desperta ânimo suficiente para colaborar com o mínimo que seja. O que fatalmente gera uma paralisia social. Aqueles que têm tudo pensam que não precisam fazer nada. Os outros que não têm, já perderam a força de lutar. E o país gira em círculos indefinidos, porque não tem onde se apegar.

É incrível como os séculos de existência nacional conseguiram transformar as desigualdades sociais em uma indústria de flagelados, cujo custeio é alto e reclamado constantemente; sem, contudo, haver motivação para transformar. Como se o país se comprouvesse com a distribuição de esmolas.  

Tendo em vista que a vida não obedece aos scripts, que de uma hora para outra o imponderável bate à porta, essa realidade pode sempre piorar. Deixar ao sabor do acaso, sem vontade efetiva, é simplesmente compactuar com a desgraça que não contribui e só intensifica as mazelas. Haja vista todas as linhas de violência que passam a enovelar a sociedade, subjetiva e objetivamente, de maneira asfixiante.

É preciso reconstruir as relações sociais sobre outros pilares e paradigmas que estejam, de fato, alinhadas as demandas das conjunturas atuais. Só assim, o país pode resistir aos impactos das intempéries sociais e ao mau humor dos desafios político-econômicos.  Afinal, como diz a canção “[...] Se o país não for pra cada um / Pode estar certo / Não vai ser pra nenhum [...]” 1.