A
escravidão que se esconde na violência contra as mulheres
Por
Alessandra Leles Rocha
A visível expansão
da violência na sociedade contemporânea não é justificativa para que, no
Brasil, cerca de 8% das mortes violentas sejam por Feminicídio 1, ou seja, um tipo de crime de ódio
baseado no gênero em razão tanto da violência doméstica quanto da aversão
contra a mulher (Misoginia). Um registro
importante e que bate de frente com a onda conservadora militante no país, na
medida em que o alicerce familiar estabelecido na figura materna está ameaçado
e, por consequência, o esfacelamento da estrutura doméstica repercute em
desdobramentos ruins para a própria sociedade.
Mas para entender a
realidade atual é preciso traçar uma compreensão histórica desse processo. A
evolução humana é, também, a evolução social; então, a partir do Período
Neolítico, quando acontece a sedentarização do homem a partir do
desenvolvimento das práticas agrícolas, o aprimoramento da arquitetura na
elaboração das primeiras cidades e o surgimento da escrita cuneiforme, há um
acirramento na desigualdade da função social entre os gêneros em face da
divisão do trabalho.
O patriarcado se
consolida como discurso e ação, de modo que homens e mulheres passam a ter uma
educação diferenciada, segundo os papeis que iriam assumir na sociedade. De
modo que as mulheres submetidas à autoridade dos homens teriam o papel de
servir, ou seja, cumprir as determinações por eles estabelecidas, sem
contestar, sem se rebelar. A mulher se torna propriedade, um objeto pertencente
e a serviço do universo masculino.
Tanto que o Direito
Romano, base do Direito aplicado no Brasil, excluía a mulher de sua capacidade
jurídica, o que significa, por exemplo, que ela só poderia participar da
religião com autorização do pai ou do marido. O parentesco manifesto pelo
sobrenome, só seria transmitido pelos homens. O pátrio poder era de
exclusividade do marido; o que no caso de viúvas, para exercê-lo, ainda que com
certas limitações, era lhes exigido uma vida ilibada.
Quanto à violência,
essa se firma no inconsciente coletivo da sociedade brasileira ainda nos tempos
coloniais, com o aval da regulação jurídica baseada no sistema metropolitano
português, por meio das Ordenações Filipinas. Com caráter profundamente
conservador essas se pautavam no poder patriarcal da Idade Média e por isso, desconsideravam
a imputação de pena aos maridos que utilizassem de castigos corporais à mulher
e aos filhos.
Aliás, não só o
Catolicismo, mas outras Religiões também cumpriram esse papel castrador, controlador
e condescendente à violência contra as mulheres. Quem nunca ouviu falar, por
exemplo, sobre o livro ou o filme “A
letra escarlate” (The Scarlet Letter),
de Nathaniel Hawthorne 2? A
personagem principal comete adultério e é execrada publicamente pela sociedade,
com base nos preceitos do Puritanismo Norte-Americano. O autor, de certa forma,
faz com esse texto uma provocação reflexiva; pois, os únicos motivos para uma
mulher viver, segundo as Religiões Cristãs, naquela época, deveriam ser o lar e
a igreja. Como ela transgride as regras,
ela “merece” ser punida de maneira exemplar.
Com o passar do
tempo, o sistema jurídico brasileiro foi contribuindo com interferências
pontuais na regulação da desigualdade de gênero. As mulheres puderam estudar em
escolas destinadas à educação feminina, o que significa dizer um ensino voltado
aos seus interesses: trabalhos manuais, domésticos, cânticos e instrução
primária 3. O casamento civil passou a existir no país, o
que levou a ser retirado do marido o direito de impor castigo corpóreo a mulher
e os filhos (conforme pregava as Ordenações Filipinas) 4.
Também surgiu a
possibilidade da emancipação feminina concedida pelo pai ou pela mãe, no caso
de morte paterna 5; mas, havendo
discordância entre os cônjuges prevaleceria a vontade paterna 6 e, em relação ao pátrio poder e à
administração patrimonial 7, o
primeiro era permitido à mulher na falta ou impedimento do marido e o segundo, caberia
ao pai, mas na falta deste a mãe poderia exercê-lo, desde que o filho fosse
varão.
Mas, para que fique
clara a saga de subserviência, dominação e inferiorização, houve um momento em
que a legislação deixou isso formalmente registrado 8,
na medida em que a mulher assumia, pelo casamento, com os apelidos do marido, a
condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família e ficaram
determinados os atos que ela não poderia realizar sem a autorização do marido.
Se no âmbito particular
da família as relações transcorriam nesses termos, imagine pensar em âmbito público
da sociedade. O Brasil só reconhece o voto feminino, aos 21 anos, em 1932 9; o que foi, pela Constituição de 1934,
substituído para 18 anos. Mas, tamanha “ousadia” para a época não estava
atrelada a liberdade de ser, enquanto indivíduo. Mesmo 30 anos depois da
conquista do sufrágio, o papel feminino ainda continuava sob regulação patriarcal
10.
Portanto, todo esse
processo teceu certo tipo de escravidão para a relação entre mulheres e homens,
no que tange a subserviência, a opressão, a violência e a desigualdade. A ideia
de propriedade em relação às mulheres ainda persiste, por conta da relação
patriarcal. Apesar de avanços importantes no campo jurídico, essa visão
objetificada da mulher se sustenta, em grande parte, na desigualdade econômica
que existe entre os gêneros.
Se não é o marido ou
companheiro que impõe obstáculos para auxiliar economicamente a mulher, ou
contribuir na recomposição da sua renda após a separação, para manter-lhe e aos
filhos uma sobrevivência digna, é o próprio Estado, na sua “patriarcalidade”,
que não exige dos meios de produção a equidade e a igualdade salarial entre os
gêneros, no exercício da mesma função, a fim de eliminar essa dependência
cativa. Portanto, há uma omissão velada por trás da violência física, mental e
emocional que vivem milhões de mulheres.
Ao contrário de
buscar reescrever no inconsciente coletivo o papel da mulher e dar-lhe a
dignidade de ser e existir em plano de equidade e igualdade com os homens, a
sociedade cria instrumentos de “punição” ao agressor (criminoso) e “proteção” à
vítima. No fundo, a mensagem subliminar que estampa essa ação é de que a mulher
pode sim, ser agredida; mas, caso isso aconteça haverá resposta judicial aos
culpados, o que não inibe de maneira alguma a violência como mostram as
estatísticas 11. Não há um plano de educação contra a violência
em curso para frear os abusos e a carnificina cometida contra as mulheres.
Um exemplo disso é a
Lei Maria da Penha (Lei n.º 11340, de 07 de agosto de 2006), que trouxe um
avanço importantíssimo no que diz respeito a iluminar a questão da violência contra
as mulheres no país e desenvolver uma cultura de denuncia e manifestação
pública por parte das vítimas. No entanto, ela não foi capaz de coibir as
milhares de ações criminosas contra as mulheres em cada canto do país 12.
Muito embora a
Constituição Federal de 1988 seja bastante clara, quando afirma e reafirma, no
seu discurso que o Estado Democrático de Direito tem como fundamentos “a
dignidade da pessoa humana” 13, “promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” 14, “a prevalência
dos direitos humanos” 15, e que
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” 16, a realidade que vivemos dista e muito
dessas palavras.
Para que se tornem
realidade palpável é fundamental que seja desenvolvida uma consciência social
transformadora, especialmente, em relação aos valores do patriarcado. É nessa
transformação que consiste a redução efetiva desse tipo de violência. Isso não
significa trabalhar uma mudança direcionada única e exclusivamente ao segmento
masculino da sociedade. Na verdade, é imprescindível que homens e mulheres sejam
conclamados a participar desse processo; porque a resistência diante de tudo o
que há de mais terrível nisso esbarra na percepção que cada um de nós tem sobre
a violência.
Ao contrário do que
se imagina, diariamente somos manipulados por discursos diversos, cujas
repetições contínuas, constroem crenças e valores distorcidos em nós;
sobretudo, quando não nos dispomos a parar e a refletir profundamente sobre
cada uma dessas ideias. É exatamente isso o que acontece a respeito das
relações humanas e, indiscutivelmente, quanto à violência contra as mulheres e
o Feminicídio.
De modo que, quase sempre
o nosso modo de enxergar e entender a importância e o papel do outro na
sociedade se encontra revestido de preconceitos, incompreensões, intolerâncias e
desrespeito. São essas “capas” que aprisionam e tornam escravas as pessoas,
porque as impedem de ter acesso ao bem mais importante ao ser humano que é a
liberdade de ser. Com o tempo as pessoas acabam convencidas de que estão abaixo
dos padrões, inferiores, invisíveis.
Por isso, nesse e em
todos os outros dias, não nos esqueçamos de “que
nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria
substância, já que viver é ser livre” 17.
Afinal de contas, parafraseando Angela Davis 18,
não devemos aceitar as coisas que não podemos mudar, e sim, mudar as coisas que
não podemos aceitar.
Trailer Oficial do Filme - https://www.youtube.com/watch?v=wzoFrXEdC74
3 Constituição
de 1824.
4 Decreto n.º
181/1890.
5 Código
Civil de 1916.
6 Código
Civil de 1916, artigo 186.
7 Código
Civil de 1916, artigos 380 e 385.
8 Código
Civil de 1916, artigos 240 e 242.
9 Código
Eleitoral de 1932.
10 Lei n.º
4121/62 (estatuto da Mulher Casada)
13 CF 1988 -
artigo 1º, inciso III.
14 CF 1988 –
artigo 3º, inciso IV.
15 CF 1988 –
artigo 4º, inciso II.
16 CF 1988 –
artigo 5º.
17 Simone de
Beauvoir foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista
política, feminista e teórica social francesa.
18 Angela
Yvonne Davis é uma professora e filósofa socialista norte-americana. Militante
pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial nos EUA.
|