Não
perturbe!
Por Alessandra Leles Rocha
A maioria das pessoas só se lembra do crescimento
populacional quando as estatísticas são divulgadas pelos veículos de
informação. Mas isso é uma pena, porque esse “não pensar a respeito” cria
diversos obstáculos para nossa compreensão cotidiana, especialmente em relação
aos comportamentos sociais.
Diante dos números não há como contestar. Somos muitos,
milhões, bilhões de pessoas sobre a Terra a disputar espaço em todos os
sentidos. Justamente por isso, temos vivido amontoados uns sobre os outros, em verdadeiros
“pombais” humanos, cujas áreas cada vez menores são planejadas para abrigar um
número de pessoas incompatível; afinal, aquele espaço há de abrigar gente, pets,
móveis, utensílios etc.; portanto, a chance de nos sentirmos como “sardinhas em
lata” é imensa.
Na verdade, mais um reflexo da propaganda moderna sobre “o
bom, bonito e barato” que inebria as mentes e dificulta a reflexão real sobre
os fatos. Então, ao adquirirem o seu “lar”, as pessoas iniciam uma saga de coexistência
com seus pares, nem sempre muito sensata e cordial.
A começar pelo fato de que os espaços pequenos demandam,
ainda mais, a aplicação das chamadas “regras da boa convivência” tão esquecidas
na modernidade e, as quais precisam urgentemente voltar ao centro das atenções.
Isso porque, não bastasse a limitação de área disponível para viver, em nome da
otimização de recursos e tempo as edificações são cada vez mais estruturadas de
maneira menos preocupada com a acessibilidade1
e o conforto acústico2, por
exemplo.
Alguns atribuem esse conjunto de displicências/negligências ao
fato de que a população tem passado menos tempo em casa, o que não é uma
justificativa consistente. Se pensarmos
nas grandes distâncias percorridas pela população nos centros urbanos, no
volume de atividades a serem cumpridas diariamente, os níveis de stress ao qual
o ser humano tem sido submetido, tudo isso faz com que ele deseje mais e mais um ambiente tranquilo e confortável para repor as energias.
É nesse ponto que a questão das “regras da boa convivência” começa
a emergir. Primeiro, porque a natureza humana traz consigo um senso de
liberdade e espaço que diante dessa nova realidade precisa reaprender a se
posicionar frente às limitações. É um tal de esbarra daqui, derruba dali,
tropeça, deixa cair,... a qualquer hora do dia ou da noite; afinal, tudo isso
acaba sendo um movimento inconsciente em busca dessa adaptação. Mas precisamos
entender que isso tende a acontecer não apenas em um lar; mas, em vários,
simultaneamente e todos os dias.
Não é à toa que esse
tipo de comportamento é regulado juridicamente tanto pelo artigo 42, do Decreto
Lei n.º 3888/1941 3 quanto o artigo 1227 do
Código Civil (2002) 4. Inclusive,
ao contrário do que muitas pessoas imaginam, barulhos exagerados em qualquer
hora do dia ou da noite podem ser enquadrados dentro dessas normas.
O senso de liberdade, de individualidade que tem vigorado na
modernidade parece manifestar uma outorga de desigualdade entre as pessoas,
como se uns fossem mais ou menos importantes; o que não é absolutamente
verdade. O ordenamento jurídico é claro nesse sentido e visa, justamente,
recobrar a razão daqueles que ainda insistem em perturbar a ordem.
Por um minuto pare e pense se você gostaria de passar horas ouvindo o
latido ininterrupto de um cachorro, ou o toc-toc-toc
dos sapatos dos vizinhos no andar de cima, ou a música no último volume porque
a pessoa decidiu curar as mágoas durante a madrugada, ou o arrastar de móveis
de um lado para outro, ou a furadeira e o martelo que não tem descanso, ou a
falação fora de hora,... Sem contar outras perturbações, de ordem menos
ruidosa, tais como ter a fumaça da churrasqueira alheia invadindo e amanteigando
os seus móveis, ou encontrar o lixo alheio na sua porta, ou alguém ocupando a sua
vaga na garagem sem consentimento prévio, enfim...
Como disse Rubem Alves, “Não é
bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso que haja silêncio
dentro da alma”. O mundo já vive em constante agitação, independentemente
da nossa vontade, e isso além de repercutir no adoecimento do corpo e da alma,
por meio das sucessivas
usurpações de direito que assistimos diariamente, nos impede o silêncio da alma
para refletir e compreender. Estamos, inclusive, desaprendendo a ouvir, a nos
comunicar adequadamente. Vivemos como o Sr. Coelho, da história de
Alice no País das Maravilhas 5, em
constante pressa sem ao menos saber, exatamente, por que.
O fato de termos que dividir espaços cada vez menores entre
mais pessoas exige-nos, portanto, uma postura muito mais humanizada e
responsável. Especialmente, se pensarmos que o envelhecimento da sociedade já é uma realidade presente em diversos
países, incluindo o Brasil, o que conduz a uma significativa preocupação sobre
a capacidade de se enfrentar os desafios associados à mudança demográfica.
Portanto, viva; mas, não perturbe, não incomode os outros com sua
excessiva necessidade de autoafirmação. Você não está sozinho e todos aqueles
que precisam saber, já sabem que você existe. Além disso, o rodopiar do mundo
ensina que se você perturba hoje, certamente será perturbado amanhã; então, dê
o primeiro passo para quebrar essa corrente.