segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

"Não quero a beleza, quero a identidade". Clarice Lispector

Eu...



Por Alessandra Leles Rocha


Assisti ontem ao filme Zelig, escrito e dirigido por Woody Allen, em 1983. Na concepção de um documentário, em preto e branco, a obra propõe uma reflexão interessante sobre a influência da sociedade na percepção da identidade humana, a partir da observação da personagem Leonard Zelig, um homem cujo comportamento camaleônico, desperta a curiosidade das pessoas e o interesse da ciência.
Após a sessão, fiquei por algum tempo com a cabeça fervilhando, milhares de pensamentos e conexões foram se processando. Bem, não poderia deixar de escrever algo sobre tudo isso. Então, partindo de dois pressupostos básicos da essência humana, de que o homem não é uma ilha e deseja ser aceito e pertencer ao círculo social, é possível estabelecer um ponto de conexão à compreensão da incompletude que nos acompanha e conduz aos caminhos da evolução. Nada de absurdo, se pensarmos biologicamente sobre o comportamento mutante dos camaleões, os quais se adaptam de acordo com o ambiente em que estão inseridos. Assim, também são construídas as várias faces da identidade humana, sobretudo no contexto conturbado do mundo contemporâneo.
Na essência de si mesmo, o homem sofre as metamorfoses do tempo e do espaço e, por isso, a identidade do bebê não será a mesma do ancião. A relação entre a cognição e o inconsciente passa por ajustes constantes e o resultado disso imprime novos perfis ao ser humano. A família, o primeiro círculo social estabelece a primeira face da nossa identidade; seja através de valores, ou conceitos, ou comportamentos, ou cultura, enfim. Depois a escola, o trabalho e todos os demais círculos sociais aos quais estaremos expostos. Na busca pela compatibilização “perfeita” entre o que somos e o que o mundo espera de nós evidencia-se o grande desafio.
Então, diante da inexistência da unanimidade, a identidade é posta à prova. A raça humana não é uma massa homogênea; mas, aceitar e lidar com as diferenças também não faz parte do jogo. Daqui e dali há sempre um mecanismo social para nivelar o individuo, não permitindo que sua singularidade salte aos olhos do mundo. Para uma regulação harmônica da própria sociedade é fundamental tornar as semelhanças bem mais visíveis e numerosas do que as diferenças; assim, ela “cria facilitadores” para unir uns aos outros pelas afinidades e os nichos sociais começam a se delinear. Imagine pessoas em constante pé-de-guerra, discutindo sem nenhum prognóstico de senso comum; isso seria totalmente improdutivo, um desperdício de tempo.
Assim, sob lentes de aumento, verifica-se que o coletivo humano é altamente segmentado. Por essa razão, as pessoas começam a desenvolver com mais veemência a necessidade de enquadramento, de fazer com que a sua identidade se encaixe aos padrões do segmento a que pertencem ou desejam pertencer. É o caso, por exemplo, de jovens que fazem milhares de cirurgias plásticas para se tornarem parecidos com bonecos ou celebridades. Assumir aquela determinada identidade representa a aceitação social, o despertar do olhar do mundo para eles; mesmo que isso, possa lhes comprometer a saúde, ou até mesmo a vida.
Ou numa ótica mais impactante, quantas pessoas não têm se alistado a grupos radicais, por exemplo? Segundo o discurso dessas lideranças extremistas, a luta mortal em nome da glória traz a imediata aceitação. Seja para o bem ou para o mal, o ser humano não tem medido esforços para estabelecer, portanto, uma identidade socialmente aceita. É como se houvesse um “vale-tudo” e os fins justificassem mesmo os meios, especialmente entre os mais jovens. Afinal de contas, são na adolescência e na juventude, que as questões de identidade estão mais afloradas e susceptíveis a mais interferências externas. O bullying é um exemplo disso; na medida em que os jovens são induzidos violentamente a se encaixarem a determinados padrões de massificação social e de consumo.
Não é à toa, que a sociedade tem se deparado com o vertiginoso consumo de álcool, anabolizantes, antidepressivos, moderadores de apetite e outras substâncias e práticas nocivas. Tudo em nome da aceitação social, da sua inclusão a esses padrões de identidade. Dessa forma, até mesmo a identidade geográfica, seja das cidades ou do país, se altera quase como um processo simbiótico, repercutindo tanto nas virtudes quanto nos problemas. Novas culturas, novos comportamentos, novas formas de comunicação, novas relações sociais.
O extremismo, o exagero na representação da personagem Leonard Zelig, por Woody Allen, é interessante para nos chamar atenção em torno desse processo que vem nos envolvendo silenciosamente. A Revolução Industrial ocorrida entre os séculos XVIII e XIX e que transformou profundamente a sociedade mundial, sobretudo na ótica de sua identidade; talvez, agora no contexto contemporâneo esteja de fato exibindo as marcas do seu sofrimento, pelo acirramento desse modelo de vida camaleônico, como uma exacerbação destorcida do nosso instinto natural de sobrevivência. Porque é muito doloroso e cansativo administrar com êxito (sempre) uma infinidade de identidades no cotidiano; em uma procura pela “verdade” que o outro enxerga a seu respeito e não, a que você realmente percebe.
Assim, no fundo a identidade humana não é absoluta. Ela está mais para uma farsa, uma imagem espelhada; algo incompleto, como o ser humano também o é. A escolha, então, implica sempre na conquista de parte e não, do todo; sempre restará algo não contemplado por uma dada identidade. Consegue-se a fama, perde-se a privacidade. Consegue-se o dinheiro, perde-se o tempo. … Ao contrário dessa luta frenética pela identidade socialmente aceita, o que o ser humano precisa é pacificar-se na aceitação da sua própria identidade; de ser como é para dar a si mesmo a possibilidade de descobrir o seu lugar no mundo, entre outros cujas afinidades estejam alinhadas a ela.