quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Não deixe de ler a crônica de quinta!!!

Os tempos da liberdade... massificada



Por Alessandra Leles Rocha



Nem só pela violência reside a nossa perda de liberdade. A ideia que me parece mais razoável diz respeito a nossa própria liquefação da identidade. Durante muito tempo a humanidade vestiu confortavelmente os padrões da privacidade e conduzia o seu cotidiano com rédeas curtas em relação aos limites da sua autopublicidade. Entretanto, com o trilhar da história alcançando a chamada pós-modernidade1, isso se desfez motivado, principalmente, pela exacerbação do consumo.
De repente, todas as críticas à massificação social perderam o sentido. Não há mais uma real necessidade de manutenção da própria individualidade e privacidade; mas, ao invés disso, há uma competição acirrada a partir de valores e comportamentos altamente massificadores. As opiniões são formadas a partir da ótica de determinadas lideranças que passam a arbitrar o que se deve vestir, consumir, comer, pensar, gostar,... o que significa que a liberdade de escolha, de decisão sobre quem se deseja ser de verdade está mais e mais comprometida.
As pessoas querem ser e ter o que os outros exibem nas redes sociais; pois, o mundo virtual acena com uma idealização perfeita da vida. Todos são felizes, bem sucedidos e aclamados publicamente através do número de likes e seguidores expressos na rede. Naquele pequeno mundinho parece não existir problemas.
Entretanto, graves mazelas afloram a partir daí. Fora da bolha virtual é que vivem os seres humanos e ninguém está isento da realidade dura da vida. Quando as pessoas tentam estreitar os limites entre esse virtual e o real e percebem a impossibilidade em fazê-lo, a frustração é inevitável e a perda da liberdade se torna ainda mais acentuada.
O desgaste físico, psicológico e emocional o qual padecem milhares de pessoas é a forma mais visível que se tem para mensurar o quão cativas elas se tornaram desse “espetáculo” pós-moderno.  A vida como ela é não satisfaz diante dos apelos que o mundo oferece e a luta por alcançar esse “pedaço de céu” é impiedosamente avassaladora. Elas trocam a sua liberdade identitária pela pseudo-segurança do pertencimento e aceitação social, tornando-se cópias mal feitas dos carimbos sociais.
Quando o ser humano chega a esse ponto, de perder a sua liberdade identitária, fica evidente que todas as demais variações da liberdade humana já estão comprometidas. A abstenção de ser é um cheque em branco para as investidas da manipulação social. Muitos não querem ou não se dão conta disso porque consideram cômodo não serem diferentes e não destoarem do coro.
Mas, essa comodidade tem um preço muito alto, na medida em que promove, por exemplo, o silenciamento da sociedade, a obediência não raciocinada, a intolerância às diferenças, a aceitação à violência, a limitação da criatividade. Não é à toa que Clarice Lispector escreveu: “– Ela é tão livre que um dia será presa. – Presa por quê? – Por excesso de liberdade. – Mas essa liberdade é inocente? – É. Até mesmo ingênua. – Então por que a prisão? – Porque a liberdade ofende”.
Por mais que tudo isso pareça estar controlado, as pessoas estejam vivenciando esse processo numa boa, na verdade não estão. O nível de repressão que elas precisam exercer sobre si mesmas para domar a sua liberdade e se enquadrarem aos padrões é muito alto e, querendo ou não, é limitado. Então, chega um ponto que isso pode adoecê-las profundamente. Trata-se de um sofrimento psíquico tão absurdo, que muitos recorrem ao suicídio como única solução.
Essa é uma das consequências da ausência de referências sejam elas positivas e válidas, na qual a pós-modernidade aponta aos seres humanos a sensação de que o mundo está fragmentado e não há projetos estimulantes o bastante para orientá-los e guia-los; de modo que, os sentimentos deveriam ser substituídos arbitrariamente pela aquisição de bens de consumo, ainda que se estabelecesse um imenso vazio existencial.
Portanto, não há nada de descolado ou vanguardista no jeito de ser pós-moderno. As correntes e os cabrestos são invisíveis, mas não menos eficazes do que sempre foram. Enquanto tantos praticam uma verborragia vulgar e ofensiva contra seus pares, como forma de afirmar a sua liberdade, nem percebem o plágio de discursos rotos e démodé a que estão à serviço. No fim, cada um ostenta a coleira que lhe cabe no pescoço nos tempos da liberdade... massificada.  


1 As sociedades modernas são por definição sociedades de constante, rápida e permanente mudança. A modernidade não é apenas uma impiedosa quebra com alguma condição preexistente; mas, por um processo sem fim de rupturas internas e fragmentações dentro dela mesma. Já as sociedade pós-modernas são cortadas através de diferentes divisões sociais e antagonismos sociais os quais produzem uma variedade de diferentes posições de sujeito para os indivíduos, como por exemplo, as identidades.