Os
tempos da liberdade... massificada
Por
Alessandra Leles Rocha
Nem só pela violência reside a
nossa perda de liberdade. A ideia que me parece mais razoável diz respeito a
nossa própria liquefação da identidade. Durante muito tempo a humanidade vestiu
confortavelmente os padrões da privacidade e conduzia o seu cotidiano com rédeas
curtas em relação aos limites da sua autopublicidade. Entretanto, com o trilhar
da história alcançando a chamada pós-modernidade1,
isso se desfez motivado, principalmente, pela exacerbação do consumo.
De repente, todas as críticas à
massificação social perderam o sentido. Não há mais uma real necessidade de manutenção
da própria individualidade e privacidade; mas, ao invés disso, há uma
competição acirrada a partir de valores e comportamentos altamente massificadores.
As opiniões são formadas a partir da ótica de determinadas lideranças que
passam a arbitrar o que se deve vestir, consumir, comer, pensar, gostar,... o
que significa que a liberdade de escolha, de decisão sobre quem se deseja ser
de verdade está mais e mais comprometida.
As pessoas querem ser e ter o que
os outros exibem nas redes sociais; pois, o mundo virtual acena com uma
idealização perfeita da vida. Todos são felizes, bem sucedidos e aclamados publicamente
através do número de likes e
seguidores expressos na rede. Naquele pequeno mundinho parece não existir
problemas.
Entretanto, graves mazelas
afloram a partir daí. Fora da bolha virtual é que vivem os seres humanos e
ninguém está isento da realidade dura da vida. Quando as pessoas tentam
estreitar os limites entre esse virtual e o real e percebem a impossibilidade
em fazê-lo, a frustração é inevitável e a perda da liberdade se torna ainda
mais acentuada.
O desgaste físico, psicológico e
emocional o qual padecem milhares de pessoas é a forma mais visível que se tem
para mensurar o quão cativas elas se tornaram desse “espetáculo” pós-moderno. A vida como ela é não satisfaz diante dos
apelos que o mundo oferece e a luta por alcançar esse “pedaço de céu” é
impiedosamente avassaladora. Elas trocam a sua liberdade identitária pela
pseudo-segurança do pertencimento e aceitação social, tornando-se cópias mal
feitas dos carimbos sociais.
Quando o ser humano chega a esse
ponto, de perder a sua liberdade identitária, fica evidente que todas as demais
variações da liberdade humana já estão comprometidas. A abstenção de ser é um
cheque em branco para as investidas da manipulação social. Muitos não querem ou
não se dão conta disso porque consideram cômodo não serem diferentes e não
destoarem do coro.
Mas, essa comodidade tem um preço
muito alto, na medida em que promove, por exemplo, o silenciamento da
sociedade, a obediência não raciocinada, a intolerância às diferenças, a
aceitação à violência, a limitação da criatividade. Não é à toa que Clarice
Lispector escreveu: “– Ela é tão livre que um dia será presa. – Presa por quê? –
Por excesso de liberdade. – Mas essa liberdade é inocente? – É. Até mesmo
ingênua. – Então por que a prisão? – Porque a liberdade ofende”.
Por mais que tudo isso pareça
estar controlado, as pessoas estejam vivenciando esse processo numa boa, na
verdade não estão. O nível de repressão que elas precisam exercer sobre si
mesmas para domar a sua liberdade e se enquadrarem aos padrões é muito alto e,
querendo ou não, é limitado. Então, chega um ponto que isso pode adoecê-las profundamente.
Trata-se de um sofrimento psíquico tão absurdo, que muitos recorrem ao suicídio
como única solução.
Essa é uma das consequências da ausência
de referências sejam elas positivas e válidas, na qual a pós-modernidade aponta
aos seres humanos a sensação de que o mundo está fragmentado e não há projetos
estimulantes o bastante para orientá-los e guia-los; de modo que, os
sentimentos deveriam ser substituídos arbitrariamente pela aquisição de bens de
consumo, ainda que se estabelecesse um imenso vazio existencial.
Portanto, não há nada de
descolado ou vanguardista no jeito de ser pós-moderno. As correntes e os cabrestos
são invisíveis, mas não menos eficazes do que sempre foram. Enquanto tantos praticam
uma verborragia vulgar e ofensiva contra seus pares, como forma de afirmar a
sua liberdade, nem percebem o plágio de discursos rotos e démodé a que estão à serviço. No fim, cada um ostenta a coleira que
lhe cabe no pescoço nos tempos da liberdade... massificada.
1 As sociedades modernas são por
definição sociedades de constante, rápida e permanente mudança. A modernidade
não é apenas uma impiedosa quebra com alguma condição preexistente; mas, por um
processo sem fim de rupturas internas e fragmentações dentro dela mesma. Já as
sociedade pós-modernas são cortadas através de diferentes divisões sociais e
antagonismos sociais os quais produzem uma variedade de diferentes posições de
sujeito para os indivíduos, como por exemplo, as identidades.