Roubaram
o futuro?
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, estão roubando
o presente. É justamente por postergar a vida que a coisa está como está. Ao se
deixar envolver pelas asas de uma esperança que espera sem limites, o ser
humano se abstém da sua responsabilidade diária enquanto cidadão.
Também é bom
lembrar que se estão roubando é porque alguém está permitindo, fechando os
olhos, fazendo “ouvidos de mercador” e silenciando, como se beneficiasse a si
mesmo, ainda que em prejuízo dos demais. Pena, porque é no agora que a vida
acontece. Enquanto abdicamos voluntariamente, ou não, do nosso protagonismo no
mundo, mais um pedacinho do presente se esvai como fumaça.
Pois é, já passou
da hora, então, de estabelecer as conexões que nos permitem entender como a
vida é um imenso emaranhado inter e intradependente de fatos e histórias. Nada é
por um acaso. Nada é sem razão. Por mais ilógico que possa nos parecer há uma
lógica regendo as linhas e as entrelinhas do cotidiano.
Eu até compreendo a
sensação de cansaço que muitas pessoas manifestam diante desse assunto, em
virtude da luta atroz do dia a dia a lhes consumir os parcos fiapos de
vitalidade física e moral. Mas, infelizmente, se o cidadão não se posiciona deixa
um espaço aberto a ser preenchido por alguém cuja esperteza ardilosa é a qualidade
humana mais evidente.
O pior de tudo é
que essa é uma questão mundial. O mundo parece sofrer um franco processo de
esfacelamento sobre a cabeça da humanidade. Instabilidade econômica, guerras e
conflitos bélicos, refúgio forçado, miséria e subnutrição, epidemias, a
violência sob diferentes faces... estão roubando o presente de milhões de
vidas.
E esse roubo
doloso, meticulosamente premeditado ao longo de décadas de omissão e negligência,
se não aponta cenários favoráveis ao agora, desabona quaisquer perspectivas de
futuro. Porque os impactos desse roubo afetam diretamente aos seres humanos, na
medida em que eles estão sendo expostos a uma sucessão de desconstruções da sua
identidade e de seus valores, cujos desdobramentos são sempre uma incógnita,
especialmente no que diz respeito às crianças.
Já se verifica, por
exemplo, o aumento da dificuldade das pessoas em lidar com as perdas. Fazê-las
acreditar em uma possibilidade bem sucedida de reconstrução parece um desafio intransponível,
quando os prognósticos apontam para uma continuidade das rupturas. Para os remanescentes
de guerra nos campos de refugiados isso fica bem evidente.
O cerne dessa discussão gira, portanto, em
torno da dignidade humana através de todos os atos de irresponsabilidade
cometidos contra ela. É na condição de vulnerabilidade do indivíduo que o seu
presente é roubado e ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de impedir o
ir e vir natural do fluxo da vida alheia; seja pela intromissão direta ou pela
sutileza ardilosa das más intenções.
Se assim o fizer, tenha
a certeza de que, à revelia de sua vontade, haverá de reconhecer e assumir a
responsabilidade de arcar com as consequências. Já dizia Caio Fernando Abreu 1, “Não brinque com os outros, o mundo
gira. Hoje você brinca, amanhã é brinquedo!”.
1 Caio Fernando Abreu (1948 -
1996) foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro, considerado um dos
expoentes de sua geração.