sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

"Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido". Charles Chaplin (Filme O GRANDE DITADOR )

Tudo é... Está tão desigual.



Por Alessandra Leles Rocha



Na semana em que acontece o Fórum Econômico Mundial 1, em Davos, nos Alpes Suíços, foi também divulgado o relatório de 2018 da Oxfam 2, o qual aponta que 82% da riqueza mundial gerada no ano de 2017 ficaram com 1% da população 3. Portanto, nada mais oportuno do que refletir sobre a redução da pobreza e da desigualdade entre os seres humanos.  
De fato, ninguém é igual a ninguém. Somos diferentes, comportamental e biologicamente falando; mas, na medida de nossas demandas e aspirações somos sim, iguais. Queremos nascer, crescer, reproduzir, envelhecer no contexto de um pacote que inclui dignidade, felicidade, oportunidade, igualdade, liberdade, fraternidade, enfim... No entanto, o que parece nos afastar dessa possibilidade, talvez, não seja propriamente a falta de recursos financeiros; mas, a desigualdade que se aflora na construção das relações humanas.
Ao estabelecer as hierarquias na sociedade, os seres humanos deram o pontapé inicial da desigualdade. A compreensão de que uns eram mais ou melhores do que outros permitiu a construção de uma relação desigual, desarmônica e de violência (algumas vezes, extrema) entre os indivíduos. Partindo da divisão social do trabalho, a capacidade produtiva e o tipo de função laboral passaram a designar o grau de importância, de respeito, de poder, de riqueza, o qual cada ser humano desfrutaria na sociedade; como, se na verdade todos não fossem igualmente fundamentais.
A grande questão é que poucos, de fato, sentiram-se ou sentem-se desconfortáveis, incomodados dentro desse modelo. A força do hábito, da práxis, parece ter banalizado ou trivializado essa desigualdade ao ponto de invisibilizarmos algumas pessoas, como se elas não pudessem ou não tivessem o direito de serem computadas no âmbito da sociedade. Lamentavelmente, vive-se em um mundo onde opera a lei do “vale quanto pesa”.
Reverencia-se o status, o poder, de tal forma que não se questiona o que eles escondem e/ou omitem; por isso, parece tão difícil romper com o discurso do fim justificando sempre os meios.  Sem que se dê conta de toda a complexidade que reveste os meandros dessa relação, a sociedade ensandecida não percebe a perversidade a qual está constantemente submetida, ou seja, ela é cada vez mais espoliada, humilhada, massacrada em nome do TER.
 A noção da necessidade, da prioridade, perde cada vez mais espaço no contexto da civilização do consumo. Para consumir é preciso dinheiro. Muito, sempre, cada vez mais. Não são os sonhos, os ideais, os projetos de vida que movem essa sociedade consumista; mas, um fastio constante e renovado a novas ofertas de bens e serviços, que vendem falsas promessas, quinze minutos de fama, ascensão e inclusão social num piscar de olhos.
Enquanto se deslumbra, a humanidade se torna alvo fácil da exploração em massa. Quanto mais ela quer, mais o seu poder aquisitivo é insuficiente. Então, o círculo vicioso se consolida. Sem perceber, milhões de pessoas trabalham exaustivamente para materializar o TER de uma minoria seleta. Chegam ao ponto, em alguns casos, de abdicar da própria dignidade, da sobrevivência humana mais elementar, para correr atrás de satisfazer os ditames impostos na mídia das celebridades.
Escravos dessa dinâmica social; mesmo assim, arrogantes o bastante para se colocar na posição de superioridade frente aos seus pares. De medir com crueza a insignificância de quem está ao seu redor. De sentir prazer em ser reverenciado por aqueles a quem julga em posição de inferioridade e subserviência. Resquícios do “beija mão”? Talvez...
O problema é que a inconsciência diante da desigualdade (seja ela voluntária ou involuntária) ela aponta para um afrontamento aos direitos humanos. Direitos e deveres passam a não ter o seu caráter igualitário dentro da sociedade, a partir do estabelecimento de vieses e prerrogativas que fazem de alguns, exceção.  É o próprio coletivo social que, de repente, se sujeita a aceitar com naturalidade esse tratamento diferencial, com base em critérios bastante questionáveis.
Você já deve ter ouvido, por exemplo, que, tudo bem, pessoas capazes de pagar por um plano de saúde tenham assistência médica de melhor qualidade. Quando, o que se esperaria ouvir é a necessidade de todos terem a mesma qualidade de assistência médica; inclusive, porque, o atendimento público é fruto da contribuição tributária de todos os cidadãos. Mas, isso não acontece, porque uma grande parcela da população vê na possibilidade de poder pagar por um serviço, uma forma de status, de superioridade social.
Do mesmo modo, acontece com a realidade do sistema prisional. Não há uma indignação sistêmica contra a realidade do cárcere no Brasil, onde pessoas são amontoadas de maneira desumana em espaços mínimos, aguardando o desenrolar de processos que se arrastam no volume das demandas dos tribunais. No entanto, veem-se manifestações a respeito, quando se tratam de presos ligados aos chamados “crimes do colarinho branco”, sob a alegação de que seus direitos humanos estão sendo desrespeitados.  
Ou, com a realidade da fome. Enquanto torcem o nariz para os relatos dramáticos da fome nas regiões mais miseráveis do planeta, onde a população esquálida vive os horrores da fome e da subnutrição, seres humanos se voluntariam à neurose da imagem corporal perfeita, mesmo ao custo da imersão nos graves transtornos alimentares que isso pode causar. A fome, nesse caso, se relativiza pela beleza, pelo status, pela aceitação social, como se isso pudesse ser aceitável. E assim, tantos outros episódios no cotidiano, me levam a pensar que o posicionamento diante da desigualdade é muito parcial.
Desse modo, a desigualdade aponta para uma necessidade cada vez maior de ídolos. Formando opinião ou influenciando mentes e comportamentos, há pessoas desfrutando de legiões de seguidores hipnotizados, robotizados, em busca de ser, ou melhor, de pensar como elas. Na verdade, não se trata de uma inspiração visando compartilhar aspectos éticos, morais, filosóficos do indivíduo; mas, uma reprodução (quase caricata) daquele personagem, daquele modelo de padrão de vida ostentado nas mídias.
Bom, epidemias matam. Fome mata. Miséria mata. Armas matam. Guerras matam. Ódio mata. Intolerância mata. Ignorância mata. Alienação mata. ... Enfim, o ser humano mata. Diante dos fatos, creio que a desigualdade é mais um fruto da nossa razão; exatamente aquilo que nos difere dos animais. Nosso livre arbítrio sobre o pensamento, nossas escolhas, nossos valores,... parece ser a pior de todas as ciências e tecnologias de destruição em massa.
De repente, abdicamos de nós, abdicamos do mundo, permitindo que algo ou alguém nos guiasse e nos transformasse em seu escravo “fiel e devotado”. Assim, adquirimos a ilusória sensação de não sermos responsáveis pelos horrores, pelas tragédias, pelos atos e pelas omissões cometidas com o auxilio voluntário (ou não) de nossas mãos. Apenas, nos agregamos em nossas pseudo castas.
Temos justificativas injustificáveis para tudo. Pena, que não são capazes de alterar ou de mascarar a visão que nos chega pela janela da casa ou das tecnologias; nem tampouco, de rebater a nossa inércia em favor da transposição dos abismos que nos fazem indignos da nossa complexidade humana, da nossa razão.  Afinal, tudo está tão... Desigual.



2 A Oxfam Internacional foi formada em 1995 por um grupo de organizações não governamentais independentes. Seu objetivo era trabalhar em conjunto para um maior impacto no cenário internacional para reduzir a pobreza e a injustiça. https://www.oxfam.org/en/countries/history-oxfam-international