Tudo é... Está tão desigual.
Por Alessandra Leles Rocha
Na semana em que acontece o Fórum Econômico Mundial 1, em Davos, nos Alpes Suíços, foi também
divulgado o relatório de 2018 da Oxfam 2,
o qual aponta que 82% da riqueza mundial gerada no ano de 2017 ficaram com 1%
da população 3. Portanto, nada mais
oportuno do que refletir sobre a redução da pobreza e da desigualdade entre os
seres humanos.
De fato, ninguém é igual a ninguém. Somos diferentes, comportamental
e biologicamente falando; mas, na medida de nossas demandas e aspirações somos
sim, iguais. Queremos nascer, crescer, reproduzir, envelhecer no contexto de um
pacote que inclui dignidade, felicidade, oportunidade, igualdade, liberdade,
fraternidade, enfim... No entanto, o que parece nos afastar dessa possibilidade,
talvez, não seja propriamente a falta de recursos financeiros; mas, a
desigualdade que se aflora na construção das relações humanas.
Ao estabelecer as hierarquias na sociedade, os seres
humanos deram o pontapé inicial da desigualdade. A compreensão de que uns eram
mais ou melhores do que outros permitiu a construção de uma relação desigual, desarmônica
e de violência (algumas vezes, extrema) entre os indivíduos. Partindo da divisão
social do trabalho, a capacidade produtiva e o tipo de função laboral passaram
a designar o grau de importância, de respeito, de poder, de riqueza, o qual
cada ser humano desfrutaria na sociedade; como, se na verdade todos não fossem
igualmente fundamentais.
A grande questão é que poucos, de fato, sentiram-se ou sentem-se
desconfortáveis, incomodados dentro desse modelo. A força do hábito, da práxis,
parece ter banalizado ou trivializado essa desigualdade ao ponto de
invisibilizarmos algumas pessoas, como se elas não pudessem ou não tivessem o
direito de serem computadas no âmbito da sociedade. Lamentavelmente, vive-se em
um mundo onde opera a lei do “vale quanto pesa”.
Reverencia-se o status, o poder, de tal forma que não se questiona
o que eles escondem e/ou omitem; por isso, parece tão difícil romper com o
discurso do fim justificando sempre os meios. Sem que se dê conta de toda a complexidade que
reveste os meandros dessa relação, a sociedade ensandecida não percebe a
perversidade a qual está constantemente submetida, ou seja, ela é cada vez mais
espoliada, humilhada, massacrada em nome do TER.
A noção da
necessidade, da prioridade, perde cada vez mais espaço no contexto da civilização
do consumo. Para consumir é preciso dinheiro. Muito, sempre, cada vez mais. Não
são os sonhos, os ideais, os projetos de vida que movem essa sociedade consumista;
mas, um fastio constante e renovado a novas ofertas de bens e serviços, que vendem
falsas promessas, quinze minutos de fama, ascensão e inclusão social num piscar
de olhos.
Enquanto se deslumbra, a humanidade se torna alvo fácil da
exploração em massa. Quanto mais ela quer, mais o seu poder aquisitivo é
insuficiente. Então, o círculo vicioso se consolida. Sem perceber, milhões de
pessoas trabalham exaustivamente para materializar o TER de uma minoria seleta.
Chegam ao ponto, em alguns casos, de abdicar da própria dignidade, da sobrevivência
humana mais elementar, para correr atrás de satisfazer os ditames impostos na mídia
das celebridades.
Escravos dessa dinâmica social; mesmo assim, arrogantes o
bastante para se colocar na posição de superioridade frente aos seus pares. De medir
com crueza a insignificância de quem está ao seu redor. De sentir prazer em ser
reverenciado por aqueles a quem julga em posição de inferioridade e subserviência.
Resquícios do “beija mão”? Talvez...
O problema é que a inconsciência diante da desigualdade (seja
ela voluntária ou involuntária) ela aponta para um afrontamento aos direitos
humanos. Direitos e deveres passam a não ter o seu caráter igualitário dentro
da sociedade, a partir do estabelecimento de vieses e prerrogativas que fazem
de alguns, exceção. É o próprio coletivo
social que, de repente, se sujeita a aceitar com naturalidade esse tratamento
diferencial, com base em critérios bastante questionáveis.
Você já deve ter ouvido, por exemplo, que, tudo bem,
pessoas capazes de pagar por um plano de saúde tenham assistência médica de
melhor qualidade. Quando, o que se esperaria ouvir é a necessidade de todos
terem a mesma qualidade de assistência médica; inclusive, porque, o atendimento
público é fruto da contribuição tributária de todos os cidadãos. Mas, isso não acontece,
porque uma grande parcela da população vê na possibilidade de poder pagar por
um serviço, uma forma de status, de superioridade social.
Do mesmo modo, acontece com a realidade do sistema
prisional. Não há uma indignação sistêmica contra a realidade do cárcere no
Brasil, onde pessoas são amontoadas de maneira desumana em espaços mínimos,
aguardando o desenrolar de processos que se arrastam no volume das demandas dos
tribunais. No entanto, veem-se manifestações a respeito, quando se tratam de
presos ligados aos chamados “crimes do colarinho branco”, sob a alegação de que
seus direitos humanos estão sendo desrespeitados.
Ou, com a realidade da fome. Enquanto torcem o nariz para
os relatos dramáticos da fome nas regiões mais miseráveis do planeta, onde a população
esquálida vive os horrores da fome e da subnutrição, seres humanos se
voluntariam à neurose da imagem corporal perfeita, mesmo ao custo da imersão nos
graves transtornos alimentares que isso pode causar. A fome, nesse caso, se
relativiza pela beleza, pelo status, pela aceitação social, como se isso
pudesse ser aceitável. E assim, tantos outros episódios no cotidiano, me levam
a pensar que o posicionamento diante da desigualdade é muito parcial.
Desse modo, a desigualdade aponta para uma necessidade
cada vez maior de ídolos. Formando opinião ou influenciando mentes e
comportamentos, há pessoas desfrutando de legiões de seguidores hipnotizados,
robotizados, em busca de ser, ou melhor, de pensar como elas. Na verdade, não se
trata de uma inspiração visando compartilhar aspectos éticos, morais, filosóficos
do indivíduo; mas, uma reprodução (quase caricata) daquele personagem, daquele modelo
de padrão de vida ostentado nas mídias.
Bom, epidemias matam. Fome mata. Miséria mata. Armas matam.
Guerras matam. Ódio mata. Intolerância mata. Ignorância mata. Alienação mata. ...
Enfim, o ser humano mata. Diante dos fatos, creio que a desigualdade é mais um
fruto da nossa razão; exatamente aquilo que nos difere dos animais. Nosso livre
arbítrio sobre o pensamento, nossas escolhas, nossos valores,... parece ser a
pior de todas as ciências e tecnologias de destruição em massa.
De repente, abdicamos de nós, abdicamos do mundo, permitindo
que algo ou alguém nos guiasse e nos transformasse em seu escravo “fiel e
devotado”. Assim, adquirimos a ilusória sensação de não sermos responsáveis pelos
horrores, pelas tragédias, pelos atos e pelas omissões cometidas com o auxilio
voluntário (ou não) de nossas mãos. Apenas, nos agregamos em nossas pseudo castas.
Temos justificativas injustificáveis para tudo. Pena, que
não são capazes de alterar ou de mascarar a visão que nos chega pela janela da
casa ou das tecnologias; nem tampouco, de rebater a nossa inércia em favor da transposição
dos abismos que nos fazem indignos da nossa complexidade humana, da nossa razão.
Afinal, tudo está tão... Desigual.
2 A Oxfam Internacional
foi formada em 1995 por um grupo de organizações não governamentais
independentes. Seu objetivo era trabalhar em conjunto para um maior impacto no
cenário internacional para reduzir a pobreza e a injustiça. https://www.oxfam.org/en/countries/history-oxfam-international