sábado, 11 de novembro de 2017

"Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são". William Shakespeare

Telhados de vidro...



Por Alessandra Leles Rocha




Finalmente, o Brasil decidiu escancarar a sua face preconceituosa e intolerante. O “politicamente correto” é, de fato, difícil de sustentar até que em um dado momento as aparências sucumbem ao que habita dentro do inconsciente. Já deveríamos saber que não há como “esconder as sujeiras sob o tapete” por toda a vida.
Éramos bons em impingir a outras sociedades essa lado triste e infeliz do ser humano, como se fôssemos um exemplo de civilidade, de respeito, de convivência fraterna, de profunda naturalidade em relação às diferenças. O fato de o país exibir uma diversidade sociocultural riquíssima, isso nunca significou a paz entre nós. Sempre existiu sob o manto nacional das aparências hipócritas um olhar desaprovador, inquisidor, sobre toda e quaisquer formas de pluralidade – status, gênero, etnia, credo, escolaridade...
Mas, agora decidimos nos portar exatamente como aqueles que antes condenávamos. Abdicamos da racionalidade, da empatia reflexiva, e de quaisquer outros valores e virtudes humanas para resumirmos todas as nossas insatisfações, frustrações e afins, no radicalismo do preconceito. Como se a vida não nos confrontasse a todo instante com demandas existenciais que deveriam estar à frente de todas as prioridades.
Nossa fúria em torno de uma sociedade ideal chega a ser patológica? Que ideal seria esse, quando cada um pode pensar e compreender a vida por um prisma diferente? Quem seriam os “escolhidos” para compor esse ideal? A busca por um equilíbrio, um denominador comum, está longe de ser o alcance de uma hegemonia. Já dizia Santo Agostinho, “Na essência somos iguais, nas diferenças nos respeitamos”, porque nisso reside à inexistência de estratificação de importância entre nós. Nossa obrigação no campo da coexistência é o respeito. É dessa máxima que se extrai a compaixão, a comunhão, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Enquanto desferimos palavras impiedosas, ferinas, desqualificando e agredindo seres humanos como nós pelos quatro cantos do planeta, esquecemo-nos de enxergar que em essência, a verdade é que o ser humano não é bom, independente de quem ele seja. São milênios tentando domesticar e civilizar essa barbárie indomável que nos habita, por isso, basta uma centelha de desconforto para tudo se aflorar. No fundo, não sabemos lidar com a nossa identidade e se não nos aceitamos nos limites da nossa singularidade, muito menos sabemos lidar com a pluralidade coletiva.
E isso tem um preço alto. Apegados em irrelevâncias, em achismos, em opiniões terceirizadas, amparados pelo discurso de defensores da moral, dos “bons costumes”, da família e etc. esquecemo-nos de nos unir em torno do que é realmente vital. Sim, porque a violência, a fome, as doenças,...  fazem de cada um, uma vítima em potencial em cada esquina. Engana-se quem pensa estar a salvo das intempéries naturais e humanas, por viver aqui, ali ou acolá.
Olhar para a vida de frente é desafiador, eu concordo. Arregaçar as mangas, então, nem se fala. Mas, a verdade é que isso é inevitável, queira você aceitar ou não. As grandes mudanças do mundo não acontecem por ações pontuais de uns e outros, mas da força bruta das conjunturas que nos empurram à revelia. Uma necessidade maior, acima de nossas cabeças, de nossos quereres, age para nos proteger de nós mesmos, da nossa inércia comodista, da nossa indiferença perversa, da nossa insensibilidade latente, do nosso ódio arraigado.
Enquanto você se esforça bravejando que não gosta disso ou daquilo, desse (a) ou daquele (a), cerca de 20 milhões de pessoas podem morrer de fome nos próximos seis meses em quatro países africanos: Iêmen, Nigéria, Somália e Sudão do Sul. Mas, não precisa ir longe não, segundo dados de pesquisa publicada em 2014, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 7 milhões de pessoas convivem com a fome no Brasil. Sem contar, os fenômenos migratórios que ampliam cada vez mais o êxodo de milhões de pessoas pelo mundo e que já batem à nossa porta sem cerimônia, ou os conflitos armados que matam civis e inocentes sem a menor culpa ou remorso, ou as epidemias que atacam e, ao mesmo tempo, exibem a fragilidade dos serviços de saúde e da oferta de medicamentos e profissionais especializados. Enfim... 
Quando visto de perto o mundo não é maravilhoso, como diz a canção 1. E não é, porque depende do ser humano para isso. Depende das suas escolhas, das suas vontades, da sua consciência, dos seus princípios... Nós brasileiros deveríamos pensar a respeito; afinal de contas, quem somos nós, o que diz a nossa história? Nosso país é resultado de um processo bárbaro de colonização exploratória, cujos interesses de outros sobrepuseram aos nossos. Houve quem não nos enxergasse, não nos reconhecesse, apenas nos julgasse inferiores, medíocres, insignificantes, mera força de trabalho braçal. E hoje temos coragem de reafirmar essas ações, agindo da mesma forma. Fazendo exatamente o que fizeram conosco. De nos julgarmos acima do Bem e do Mal. Esquecendo e segregando partes da nossa própria sociedade.
Como se vê nossa inversão de valores é tão assustadora que chegamos ao ponto de nos envergonhar das virtudes e enaltecermos o primitivismo, a barbárie.  Ao contrário de continuar exibindo essa estupidez descomunal em atos intolerantes e preconceituosos, deveríamos nos restringir a reflexão profunda que exibe com mais nitidez a dimensão de nossos telhados de vidro.