Telhados
de vidro...
Por
Alessandra Leles Rocha
Finalmente, o Brasil decidiu
escancarar a sua face preconceituosa e intolerante. O “politicamente correto” é,
de fato, difícil de sustentar até que em um dado momento as aparências sucumbem
ao que habita dentro do inconsciente. Já deveríamos saber que não há como “esconder
as sujeiras sob o tapete” por toda a vida.
Éramos bons em impingir a
outras sociedades essa lado triste e infeliz do ser humano, como se fôssemos um
exemplo de civilidade, de respeito, de convivência fraterna, de profunda
naturalidade em relação às diferenças. O fato de o país exibir uma diversidade
sociocultural riquíssima, isso nunca significou a paz entre nós. Sempre existiu
sob o manto nacional das aparências hipócritas um olhar desaprovador,
inquisidor, sobre toda e quaisquer formas de pluralidade – status, gênero,
etnia, credo, escolaridade...
Mas, agora decidimos nos
portar exatamente como aqueles que antes condenávamos. Abdicamos da
racionalidade, da empatia reflexiva, e de quaisquer outros valores e virtudes
humanas para resumirmos todas as nossas insatisfações, frustrações e afins, no
radicalismo do preconceito. Como se a vida não nos confrontasse a todo instante
com demandas existenciais que deveriam estar à frente de todas as prioridades.
Nossa fúria em torno de uma
sociedade ideal chega a ser patológica? Que ideal seria esse, quando cada um pode
pensar e compreender a vida por um prisma diferente? Quem seriam os “escolhidos”
para compor esse ideal? A busca por um equilíbrio, um denominador comum, está
longe de ser o alcance de uma hegemonia. Já dizia Santo Agostinho, “Na essência somos iguais, nas diferenças nos
respeitamos”, porque nisso reside à inexistência de estratificação de importância
entre nós. Nossa obrigação no campo da coexistência é o respeito. É dessa máxima
que se extrai a compaixão, a comunhão, a liberdade, a igualdade e a
fraternidade.
Enquanto desferimos
palavras impiedosas, ferinas, desqualificando e agredindo seres humanos como
nós pelos quatro cantos do planeta, esquecemo-nos de enxergar que em essência,
a verdade é que o ser humano não é bom, independente de quem ele seja. São milênios
tentando domesticar e civilizar essa barbárie indomável que nos habita, por
isso, basta uma centelha de desconforto para tudo se aflorar. No fundo, não sabemos
lidar com a nossa identidade e se não nos aceitamos nos limites da nossa
singularidade, muito menos sabemos lidar com a pluralidade coletiva.
E isso
tem um preço alto. Apegados em irrelevâncias, em achismos, em opiniões terceirizadas,
amparados pelo discurso de defensores da moral, dos “bons costumes”, da família
e etc. esquecemo-nos de nos unir em torno do que é realmente vital. Sim, porque
a violência, a fome, as doenças,... fazem de cada um, uma vítima em potencial em
cada esquina. Engana-se quem pensa estar a salvo das intempéries naturais e
humanas, por viver aqui, ali ou acolá.
Olhar para
a vida de frente é desafiador, eu concordo. Arregaçar as mangas, então, nem se
fala. Mas, a verdade é que isso é inevitável, queira você aceitar ou não. As grandes
mudanças do mundo não acontecem por ações pontuais de uns e outros, mas da
força bruta das conjunturas que nos empurram à revelia. Uma necessidade maior,
acima de nossas cabeças, de nossos quereres, age para nos proteger de nós
mesmos, da nossa inércia comodista, da nossa indiferença perversa, da nossa
insensibilidade latente, do nosso ódio arraigado.
Enquanto você
se esforça bravejando que não gosta disso ou daquilo, desse (a) ou daquele (a),
cerca de 20 milhões de pessoas podem morrer de fome nos
próximos seis meses em quatro países africanos: Iêmen, Nigéria, Somália e Sudão
do Sul. Mas, não precisa ir longe não, segundo dados de pesquisa
publicada em 2014, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
mais de 7 milhões de pessoas convivem com a fome no Brasil. Sem contar, os fenômenos migratórios que ampliam cada vez mais o êxodo de milhões de pessoas pelo mundo e que já batem à nossa porta sem cerimônia, ou os conflitos armados que matam civis e inocentes sem a menor culpa ou remorso, ou as epidemias que atacam e, ao mesmo tempo, exibem a fragilidade dos serviços de saúde e da oferta de medicamentos e profissionais especializados. Enfim...
Quando visto de perto o
mundo não é maravilhoso, como diz a canção 1.
E não é, porque depende do ser humano para isso. Depende das suas escolhas, das
suas vontades, da sua consciência, dos seus princípios... Nós brasileiros deveríamos
pensar a respeito; afinal de contas, quem somos nós, o que diz a nossa
história? Nosso país é resultado de um processo bárbaro de colonização exploratória,
cujos interesses de outros sobrepuseram aos nossos. Houve quem não nos enxergasse,
não nos reconhecesse, apenas nos julgasse inferiores, medíocres,
insignificantes, mera força de trabalho braçal. E hoje temos coragem de reafirmar
essas ações, agindo da mesma forma. Fazendo exatamente o que fizeram conosco. De
nos julgarmos acima do Bem e do Mal. Esquecendo e segregando partes da nossa própria
sociedade.
Como se vê nossa inversão de
valores é tão assustadora que chegamos ao ponto de nos envergonhar das virtudes
e enaltecermos o primitivismo, a barbárie. Ao contrário de continuar exibindo essa
estupidez descomunal em atos intolerantes e preconceituosos, deveríamos nos
restringir a reflexão profunda que exibe com mais nitidez a dimensão de nossos
telhados de vidro.