Efeito manada
Por Alessandra Leles
Rocha
Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluido em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado
Mas lá vem eles novamente, eu sei o que vão fazer
Reinstalar o sistema
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado
Mas lá vem eles novamente, eu sei o que vão fazer
Reinstalar o sistema
Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste, viva
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste, viva
Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Não, senhor, sim, senhor
Não, senhor, sim, senhor [...]
Não, senhor, sim, senhor [...]
(Admirável Chip Novo – Pitty)
Nada deveria ser mais deprimente ao ser humano do que a
demonstração explícita da falta de personalidade. Todos os Homo sapiens sobre o
planeta, queiram eles ou não, são seres únicos, singulares, seja pelas milhares
de variantes biológicas ou comportamentais. Cada um tem uma identidade e isso
deveria ser um motivo de orgulho, de exaltação; mas, o que se vê rotineiramente
é uma busca incessante pela massificação, estereotipização, como formas de se
estabelecer uma cultura de igualdade para a desigualdade natural e intrínseca
de todos nós.
Talvez, muitos estejam tão absortos pelo automatismo
da rotina cotidiana, do estresse, que nem chegam a parar e refletir sobre a
gravidade desse fenômeno. Mas, ele é grave sim; especialmente, porque a sua
sistematização leva ao esgarçamento e comprometimento de relações sociais
saudáveis, altruístas, produtivas. O que tantas vezes parece bobagem,
irrelevância, no fundo é o início de uma ferrugem a corroer estruturas
importantes para o bem-estar e o futuro da própria humanidade.
Ora, e não é difícil perceber que atitudes simples como, assumir
a própria identidade, nesse mundo pós-moderno tem se tornado uma transgressão
imperdoável. Ser você mesmo passou a ser considerado “ser alguém diferente”; e,
por isso, necessário de sofrer alguma forma de contenção social, para não
“contaminar” os demais. É como se o mundo, de uma hora para outra, assumisse
como normal que todos os viventes do planeta fossem cópias de um mesmo carimbo,
ou seja, mesma cor e corte de cabelo, mesma roupa, mesma ideologia, mesmo
comportamento, mesmos valores,... tudo para que não houvesse nenhum tipo de
discrepância ou divergência.
Esse silencioso ditame de obediência é que nos tem feito
presenciar as mais perversas arbitrariedades sociais. A menor aresta que se
interponha entre os indivíduos é motivo de segregação, de intolerância, de
violência, de guerra. Há um desrespeito tão intenso as garantias individuais,
que as pessoas estão sendo oprimidas e massacradas a se renderem aos apelos de
uma maioria, caso não queiram viver à margem, exiladas do restante do mundo. E,
lamentavelmente, não há mais o diálogo, no seu sentido pleno, ou seja, uma conversa
franca e aberta, com olhos nos olhos. Aliás, por que dialogar, não é mesmo? Seja,
aja, pense, sinta, compre... como todo mundo. Não queira ser diferente, apenas
acompanhe o fluxo da manada. Assim, você não incomoda ninguém e sua identidade
fica restrita a um número em um cartão.
Quanto às habilidades, as competências, os interesses, tudo
isso também já entrou na conta da massificação mediocrizada. A sociedade parece
conformada em ser medíocre, em se nivelar pelos parâmetros mais baixos e
inexpressivos; como se não pulsasse dentro de cada um, milhares de sonhos,
aspirações e projetos. Como se uma vida blasé pudesse fazer o ser humano
plenamente feliz e, por isso, não fosse necessário despender energia, buscando
fazer o melhor em cada plano do cotidiano. O trivial fosse sempre suficiente, o
bastante. Nada de assumir responsabilidades, de se comprometer com as
obrigações advindas dos direitos,... Assim, a humanidade se permite ser
automatizada e fazer somente aquilo que “o senhor mestre mandar”.
Como se vê, o mundo está fragmentado,
alinhavado por linhas divisórias cada vez mais profundas e absurdas que contam
com a pactuação de todos aqueles que querem ser cada vez mais iguais. E na sua
igualdade paradoxal... eles também se debruçam ao culto das vaidades, do poder,
do status, do dinheiro, para sentirem que habita neles um diferencial sobre os
outros.
Talvez, seja essa a grande neurose que
acompanha a humanidade desde sempre; porque como relatou Anne Frank, em seu
diário escrito entre 1942 e 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, "Criticam
tudo, e quero dizer mesmo tudo, sobre mim: o meu comportamento, a minha
personalidade, as minhas maneiras; cada centímetro de mim, da cabeça aos pés,
dos pés à cabeça, é objeto de mexericos e debates. São-me constantemente
lançadas palavras duras e gritos, embora eu não esteja habituada a isso.
Segundo as autoridades definidas, eu devia sorrir e aguentar". Portanto...