quarta-feira, 4 de maio de 2011

Crônica do dia!


Sem medo do espelho

Por Alessandra Leles Rocha

            O mundo insistindo em se desfacelar e quantos milhões de seres humanos amedrontados com a possibilidade de se encarar verdadeiramente diante da vida. Mais do que uma ruguinha aqui outra ali, o que esbofeteia sem cerimônia à própria face é a realidade única de quem somos por detrás das alegorias e adereços.
         Sim! O ser mais humano que habita em cada um de nós pode ser aterrorizante. Alguém que foge tantas vezes do modelo descrito por tal convenção protocolar da sociedade. Alguém que não sente vergonha em rir de si mesmo, que adora comer macarrão com feijão e farinha, que só consegue dormir vestindo camiseta de propaganda, que gostaria de mandar muita gente para aquele lugar, que encontra dificuldade em “sorrir amarelo”, que chora em litros para desabafar a alma e desfrutar o melhor sono possível, que... é alguém de carne, osso, muita sensibilidade e milhões de defeitos; enfim, um legítimo representante do Homo sapiens.
         Só que no mundo em que vivemos essa criatura precisa se esconder sob todos os artifícios possíveis se não estiver disposta a declarar guerra ao sistema. Então, muitos decidem enfrentar o desafio de coabitar dois ou mais universos paralelos. O “eu” verdadeiro certamente fica preterido a último plano, bem escondidinho, num lugar para refúgio quando tudo parece insustentável. Nos universos usuais do cotidiano contemporâneo a palavra de ordem é sempre parecer bem: bem sucedido, bem amado, bem influente, bem financeiramente, na crista das melhores ondas do planeta. Haja fôlego para tanto! Manter a agenda diária das obrigações normais de todo ser humano e ainda correr atrás de inúmeros detalhes desse projeto de perfeição é uma busca quase heroica. Lançamos-nos ao ponto de cometer desatinos e incorrer no ridículo para não perder o lugar na primeira fila e nem as luzes dos flashes e holofotes. No final das contas, a imagem resultante é quase sempre um esboço mal acabado do que realmente gostaríamos de ser.
         Mas tudo isso para o quê mesmo? Sei lá! Não sei se nunca soubemos a resposta ou se a esquecemos no meio da loucura do caminho! A verdade é que vez por outra compramos ou vendemos gato por lebre. Entorpecida a nossa razão, os olhos da alma e os olhos de enxergar encontram-se cegos ao que realmente deveria valer a pena. Toda essa fantástica fábrica de sonhos e ilusão nem de longe fascina mais do que a beleza genuína de uma alma desnuda. Curioso como procuramos a essência das coisas – nos carros, a potência dos motores, nas castanhas, o fruto que se esconde sob a rígida casca, no solo, as riquezas e preciosidades -, mas esquecemos de fazê-la, quando se trata de nós mesmos. Cada um de nós reserva encantos e mistérios únicos e capazes de atrair e despertar o interesse dos semelhantes ao nosso redor; desde que para tanto, o individuo seja verdadeiro, cristalino, despojado.
         O tempo se alterna entre idas e vindas, calmarias e tempestades, e nós, os seres humanos, somos parte integrante e incondicional desse processo. Por isso não nos cabe uma rigidez impositiva que nos retire o ar mais vital de nossos pulmões que advém da nossa liberdade existencial; afinal, soam os arautos de Chronos1 o expirar do prazo para romper com os laços da massificação e vagar solto a exibir a insígnia da própria identidade. Em um mundo que configura repetidamente o triste retrato da desolação e do desencanto, como se a verdadeira felicidade fosse artigo de luxo e indisponível no vasto campo comercial, o ser humano precisa olhar-se nos olhos e abstrair ao fundo da retina a imagem do que possui de melhor. Consciente de seu papel, de seu valor, de toda a sua potencialidade em existir é que o ser humano que se preza desbravará o mundo de cabeça erguida; nada de melhores ou piores, mais ou menos importantes, com ou sem espaço, todos sem distinção farão valer a sua presença, o seu trabalho, a sua felicidade. Pelo andar da carruagem que desfila o mundo, narizes ao alto, dedos em riste, olhares de reprovação, ordens sobre o que se pode ou não pensar e agir, estão com os dias contados para configurar no imenso livro de memórias sobre um tempo em que o mundo não conseguia enxergar ou admitir a descomunal força individual que sempre sustentou o vigor da engrenagem coletiva.