sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Crônica

Lembre-se...

Por Alessandra Leles Rocha

            Dizem que quem vive de passado é museu; uma forma rude e inadequada para desdenhar as lembranças. Pés postados sobre a Terra e o que seria de nós se não fossem os registros mágicos e etéreos de uma saga curiosa, chamada Vida?
            Por mais que possam se parecer nenhum dia é igual ao outro. Desde o raio de sol que atravessa a cortina ao fechar os olhos arrebatados pelo sono, tudo, cada segundo é único e determinante. Sim! Alternamos os matizes, os paladares, a intensidade dos ruídos e construímos o inesquecível; mas, também, o imprescindível a ser esquecido.
            Lembranças despertam, corroem, apaziguam, enlouquecem a alma; mas não há como não construí-las. Lembranças sinalizam, reavaliam, dimensionam erros e acertos, nos catapultam para a inércia segura e pacificadora ou para a ousadia insana de provar a vida até a última gota. Lembranças atestam que estamos vivos, nos acalentam quando tudo parece perdido, nos reabastecem de energia e esperança, são oásis de água pura na imensidão do deserto moderno, no qual tantas vezes somos submetidos a vagar sozinhos por longas jornadas. Há quem prefira apagá-las e se deixar conduzir apenas pelo hoje, o agora; talvez, medo de cair nas teias do saudosismo melancólico e não ver mais graça ou beleza na vida.
            Em um dia como este, em que a chuva se derrama sem cerimônia sobre os telhados e rege a sinfonia delicada do barulhinho a tilintar a vidraça, por mais que se tente frear os impulsos da lembrança, a rapidez do seu visgo é sempre mais forte a nos laçar. Não lembramos apenas através do cérebro; guardamos as lembranças em todo o nosso ser e por isso conseguimos acordá-las do seu sonho profundo pelo toque das mãos, o perfume dissipado no ar, as letras desenhadas no cartão, a música que penetra os ouvidos e faz o corpo se mover,...
            Muitos nem desconfiam; mas, só tem lembranças quem se deixa viver, aproveita cada instante, desbrava as horas tentando extrair as raras e doces gotas de felicidade. Lembranças afloram sorrisos e lágrimas, amor e raiva, perdas e ganhos,... mas são sem dúvida alguma a melhor companhia em dias de chuva, noites enluaradas, arco-íris, sol, neblina,... em qualquer dia, hora e lugar.