segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Mais um lance de bola fora ...

Mais um lance de bola fora ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Detesto “mais ou menos”. Especialmente, sentimentos e emoções. Sendo assim, me incomoda profundamente deparar com uma indignação mais ou menos. Os veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, repercutiram o lamentável episódio no meio futebolístico, em que o atleta brasileiro mais incrível dos últimos tempos, um verdadeiro gênio da bola, foi preterido à Bola de Ouro 2024 1. O motivo: o racismo e o modo como ele vem lidando com o assunto.

Bem, esse é o ponto de reflexão. Qualquer um, com o mínimo senso de humanidade, de empatia, tem sim, que se indignar com todas as afrontas, desrespeitos e violências, as quais esse jovem talento do futebol vêm sofrendo, desde que foi jogar na Espanha. Mas, essa indignação tem que ser ampla e irrestrita. Tem que ser capaz de abrir os olhos e as mentes em relação ao que acontece, também, no cotidiano global.

Não só, porque o racismo é crime; mas, porque ele emerge de crenças, valores e princípios históricos e passa a compor um conjunto de práxis perversas e cruéis que legitimam as desigualdades no planeta. Simplesmente, porque ele é um conceito estabelecido pelas classes dominantes, ao longo de séculos, a fim de definir critérios de superioridade e de inferioridade, de importância e de desimportância social, de pertencimento e de não pertencimento, ...

Com o único propósito de preservar regalias, privilégios e poderes, acumulados historicamente, e sustentados com base no eurocentrismo, para designar a centralidade e a superioridade da visão europeia sobre as outras visões de mundo, dentro de diferentes aspectos. Desse modo, o racismo permanece exercendo o seu papel sem encontrar a devida resistência a respeito. A explicação é simples: as heranças do colonialismo e do imperialismo (neocolonialismo) que não se dissiparam com o tempo.  

O poder, em todas as suas instâncias, está, como sempre esteve, nas mãos daqueles que, consciente ou inconscientemente, transpiram o conceito de eugenia 2, de aporofobia, de misoginia, de sexismo, de xenofobia, de intolerância religiosa e tantas outras formas de discriminação e preconceito.  As chamadas classes dominantes, ou elites, ou oligarquias, não importa a denominação, são as responsáveis pela contínua reafirmação e disseminação desses pensamentos.

E elas têm tanta certeza de que não serão jamais incomodadas no seu espaço social, no seu protagonismo, que manifestam as suas ideias e atitudes abjetas sem quaisquer sinais de constrangimento ou incômodo. Elas se apropriam, a tal ponto, desse lugar de autoridade, que sequer temem as consequências dos seus comportamentos. Se julgam realmente acima do Bem e do Mal.

José Saramago escreveu na epígrafe do seu “Ensaio sobre a Cegueira” (1995), “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Pois é, nosso grande problema é não levar esse sábio conselho a sério! Inadvertidamente, saímos por aí, distribuindo cordialidades, apoios e simpatias para muitos que não passam de nossos piores algozes. Gente que, meia dúzia de palavras, já seria o suficiente para destilar toda a sua ausência de empatia, de solidariedade, de respeito, de humanidade.

Mas, por incrível que pareça, continuamos mantendo laços sociais, como se nossa indignação pudesse, por alguma razão qualquer, ser flexibilizada, relativizada.  Como se fosse impossível admitir a dimensão brutal desses comportamentos e palavras, sendo preferível  abster-se de uma atitude mais efetiva. Algo que, talvez, esteja associado inconscientemente às memórias da hierarquização colonial, quando existiam dominados e dominadores, explorados e exploradores, e um sentimento de medo silenciava quem estava em desvantagem social.

Lamento, mas é essa nossa indignação mais ou menos que alimenta a perpetuação histórica do racismo e de quaisquer outras formas de discriminação e preconceito, mundo afora. Quando não nomeamos corretamente as injúrias, as ofensas, as violências cotidianas, que partem como flechas orientadas do topo da pirâmide social. Quando silenciamos diante de todo tipo de indignidade humana.

Nelson Mandela dizia que “Nascemos para manifestar a glória do Universo que está dentro de nós. Não está apenas em um de nós: está em todos nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. E conforme nos libertamos do nosso medo, nossa presença, automaticamente, libera os outros”. Portanto, se encolher, se invisibilizar, se calar, ... nada disso vai impedir que você seja quem é e/ou que as classes dominantes desconstruam seus retrógrados paradigmas.

Não nos esqueçamos de que a luta contra qualquer discriminação ou preconceito começa na afirmação legítima do ser humano, seja ele quem for, esteja ele onde estiver. Pois, segundo Angela Davis, “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, ou seja, assumir uma postura social de ação contra o ódio, o preconceito, o racismo sistêmico e a opressão estrutural de grupos marginalizados racial e etnicamente. Afinal, de contas, “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu).

domingo, 27 de outubro de 2024

Mais do mesmo...

Mais do mesmo...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, por favor, nada das dicotomias clichês! Vencedores. Perdedores. Não há momento melhor, do que ao final de um pleito eleitoral, para dissecar as camadas dos acontecimentos e apurar o grau de avanço e de transformação que conseguiu-se imprimir ou não, ao processo.

E nesse ponto, surpresa zero! O trânsito do tempo, no Brasil, infelizmente, não é capaz de romper com seus ranços coloniais. Tudo parece permanecer sob a mesma lógica, com as descendências da metrópole ditando os rumos do país. Como se tal protagonismo lhes coubesse como herança.

Não só do ponto de vista do ideário propositivo; mas, de práxis que se acreditava estarem extintas do cenário nacional. O Brasil, em 2024, reencenou com tintas fortes o Brasil da Velha República (1889 a 1930). Muito voto comprado. Muita violência política. Muito conservadorismo de fachada. ... Enfim.

Apesar de uma estrutura judiciária dedicada a cuidar dos trâmites e do cumprimento à legislação eleitoral vigente, nunca se viu tanto desrespeito, tanta afronta, tanto crime configurado, sem que as medidas cabíveis e esperáveis fossem tomadas efetiva e rapidamente.

E se o silêncio do judiciário ecoa, quando não deveria, precedentes perigosos são abertos para a manutenção da Democracia. Deveríamos nos lembrar do que dizia José Saramago: “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”.

Bem, mas não foram somente as instituições que silenciaram. Houve um outro tipo de silêncio que repercutiu do próprio eleitor. Ele foi tão ruidoso que deixou atônitos os candidatos, os staffs partidários, os jornalistas, os analistas, os pesquisadores. Todos tentando compreender o que quer o eleitor?

Não sei se ele próprio saberia responder. Mas, considerando que muitas faces do comportamento do eleitor brasileiro não difere de outros, mundo afora, penso que o ponto de partida seja olhar com atenção para a contemporaneidade.

Afinal, foi ela quem fez emergir e exacerbar o individualismo, o egoísmo e o narcisismo, como pilares de sustentação da chamada sociedade de consumo. Todos querem a satisfação dos seus desejos e delírios, o tempo todo, como se isso fosse realmente possível. Acontece que não é.

Então, há tempos, pode-se observar um crescimento da incapacidade humana em lidar com os fracassos, as negativas, as impossibilidades. De modo que o não se tornou intolerável, enquanto a insubordinação, a rebeldia, a desordem e o conflito tornaram-se os instrumentos de substituição da civilidade, em seus mais diversos aspectos.

Apesar da grande massa do eleitorado não dispor da possibilidade de satisfazer suas vontades mediante o poder capital, por motivos óbvios estampados em um leque de desigualdades históricas, no país, seus pretensos representantes político-partidários conhecem o caminho das pedras para nutrir seus sonhos e esperanças.

E esse é o ponto. Nem só de promessas vive a política contemporânea!  Ela precisou se unir e tecer alianças com outros segmentos sociais capazes de manipular e persuadir seus eleitorados, a partir de uma construção discursiva acessível e objetiva.

A política foi, então, alçada aos mais diferentes espaços, reais e virtuais, pelos quais transitam seu público-alvo. Um processo de verdadeira exaustão repetitiva, de informações distorcidas, enviesadas e/ou adulteradas, realizado por quem tem vasto domínio nesse tipo de comunicação.

Diante de um recorte temporal em que a pressa, o imediatismo, a impaciência, vigoram como palavras de ordem, a importância da verdade e da realidade foi sumariamente desconsiderada. Sobretudo, quando as informações chegam a partir de indivíduos que ocupam algum tipo de autoridade social.  

Inclusive, essas pessoas são estimuladas a defender a sua liberdade, o seu poder de escolha, quando, na verdade, estão subjugadas a mais profunda alienação política, que visa atender a determinado interesse político-partidário. Elas são simplesmente massa de manobra de um projeto político, muitas vezes, alheio as suas próprias demandas.

Portanto, nada diferente do que tem ocorrido na história brasileira, há pouco mais de 500 anos. Desde sempre, as escolhas, as decisões, o futuro do país, é realizado nos bastidores, na surdina, pelas oligarquias detentoras do poder. O voto, o símbolo maior da Democracia, não passa de instrumento legitimador da manutenção oligárquica, no país. Não há, então, a materialização da representatividade popular, no que diz respeito aos seus anseios e necessidades.  

Assim, “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Mais um pleito eleitoral e uma história requentada.  O pior é saber que há desejosos por alianças, por frentes-amplas, que no fundo só fazem garantir a manutenção de membros das oligarquias nos governos, a fim de que suas regalias e privilégios não sejam minimamente perturbadas ou interrompidas. Haja vista, o exemplo que se tem, nesse momento, no Congresso da República.   

sábado, 26 de outubro de 2024

Escolhas ...

Escolhas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Amanhã será o 2º turno das eleições, em diversos municípios brasileiros. Mais um momento de reafirmação democrática, a partir da escolha representativa popular. Algo que esconde, para uma imensa maioria, a dimensão da importância e da complexidade desse ato. Afinal de contas, entre o ideal e a realidade, as marcas da historicidade nacional impossibilitam a inexistência de uma profunda frustração.

Começando, pelo fato de que em muitos lugares a representatividade político-partidária conserva elementos de um ranço colonial que contraria flagrantemente certos valores prezados pela democracia, como é o caso da liberdade e da autonomia no exercício do voto. Reafirmando, então, um sentimento de subserviência e de obediência às forças de dominância do poder local.

Depois, há de se considerar um quadro histórico de inércia repetitiva que aponta para a incapacidade de transformação social através do voto. De modo que, até mesmo, o cidadão menos letrado, consegue ver a ineficácia da sua escolha representativa, quando essa não consegue materializar, seja no legislativo ou no executivo, nenhum sinal de melhoria para a sua condição social. Em suma, ter um representante político-partidário não significa ser efetivamente representado nas esferas do poder.

Tanto que, em pleno século XXI, há quem barganhe o voto, como último recurso para materializar alguma melhoria na sua condição social. Alguns recebem dinheiro para votar em um determinado candidato. Outros recebem benefícios, tais como cesta básica, pintura da casa, atendimento médico-odontológico, ... Outros aguardam por alguma oportunidade no serviço público. Como se o voto pudesse valer o tamanho da necessidade do eleitor.

Assim, a percepção em relação ao exercício democrático do voto se distancia do que ele realmente representa na dinâmica da vida cotidiana. O cidadão passa a não estabelecer uma associação entre as suas escolhas representativas e as suas expectativas quanto aos ganhos ou prejuízos decorrentes delas. Há, portanto, um sentimento descompromissado em relação ao voto, que tende a legitimar todo o processo deteriorativo da política nacional.

Não é à toa que há quem fale em votar no menos pior. Outros, em anular o voto. E aqueles que simplesmente decidem por se abster em comparecer à sessão eleitoral. Tamanho o descaso que marca o inconsciente coletivo nacional, quando se trata da escolha de um representante político-partidário. Mas, não para por aí. Com o advento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), o descaso ganhou outros vieses.

A propagação de inverdades, a distorção de fatos, a destruição de reputações, a violência cibernética, ... por meio das mídias sociais, vem comprometendo a integridade do exercício democrático. Há um desvirtuamento completo em relação ao papel da construção política para o cotidiano da população. Muitos não entendem que más escolhas podem sim, repercutir terrivelmente sobre suas vidas.

Desse modo, lamentavelmente, chegamos a um nível de deformação de nossa incipiente consciência cidadã, que se pode dizer, em termos políticos, que o peso de ideias pré-fabricadas tem tido mais importância do que a resolução de problemas graves e reais, os quais assolam as unidades da Federação diariamente.   

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade?

Qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade? 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Fim de linha para o modelo social contemporâneo? Ao que tudo indica, sim. Não há possibilidade de se manter em cima do muro; sobretudo, quando o assunto é a Democracia. E isso não significa que alguém irá cobrar por um posicionamento a respeito. Na verdade, é no silêncio da consciência de cada indivíduo que as conjunturas se propuseram ressoar para a manifestação de uma escolha.

Enquanto, um empresário multimilionário, naturalizado norte-americano, pretende distribuir milhões de dólares por votos ao partido Republicano 1, nas eleições à Presidência dos EUA, em novembro, José Mujica, ex-Presidente do Uruguai, conhecido mundialmente por seu estilo de vida simples e suas ideias progressistas, fez, talvez, seu último discurso durante um comício do candidato uruguaio 2, no último sábado.

Duas figuras diametralmente opostas, cujas recentes manifestações públicas nos impõem uma das mais importantes reflexões contemporâneas, ou seja, qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade?  Pode ser que uns e outros, por aí, considerem essa pergunta complexa ou difícil de responder, pelo quão desafiadora ela é, no sentido de nos confrontar com nossos mais profundos valores, crenças, princípios, emoções e sentimentos.

Algo que inevitavelmente abre um leque de ponderações entre o TER e o SER, sob perspectivas diversas. Porque o TER transita pela materialidade capital da aquisição e da manutenção da Democracia, abdicando da liberdade de escolha que é o primeiro passo da construção democrática.

Já o SER, representa a genuína apropriação do caráter democrático pelo indivíduo, incapaz de se render a quaisquer apelos materialistas para existir. Há uma clareza indiscutível no ser democrático, porque ele é, ele não está. Ele não depende de nada além da própria consciência.

De modo que esse panorama nos provoca quanto à nossa resistência em não ceder às conveniências imediatistas, aos apelos ilusórios, aos efeitos manada do mundo. O que se espera é uma consciência do papel social da Democracia, verdadeiramente plena.

Ao contrário de uma mera interpretação pessoal e enviesada. Porque isso, caro (a) leitor (a) não só não é Democracia, como abre precedentes perigosos em relação a outras questões importantes para o equilíbrio da convivência e da coexistência social.

A defesa da Democracia pede uma convicção absoluta sobre o que ela realmente significa, ou seja, um sistema político pautado pelo respeito aos princípios que regem a liberdade humana, baseando-se em uma governança majoritária; mas, ao mesmo tempo, observando o equilíbrio em relação aos direitos individuais e minoritários.

Pois é, a Democracia não se orienta pelo individualismo, pelo egoísmo, pelo narcisismo, tão comuns na contemporaneidade. Ela tem um olhar social coletivo, plural, multifacetado. O que explica porque a Democracia é tão desafiadora.

Ora, equilibrar as diferenças em busca de um denominador comum, não é tarefa para qualquer indivíduo. A Democracia pede uma disposição dialógica incomensurável, um exercício argumentativo aguerrido, uma capacidade de negociar inimaginável. E tudo isso é sim, bastante desafiador, para certas personalidades humanas.

Reconhecer que há limites, que há pontos de vista diferentes, que há necessidade de observância das realidades, ... não deveria ser; mas, acaba se tornando um gigantesco obstáculo para a Democracia. Especialmente, quando o contexto contemporâneo tem buscado legitimar o arraigamento das posições, das escolhas, das decisões.

Daqui e dali criam-se polos de divergência, tentando sobrepor ideias e opiniões a qualquer preço. Fazendo com que a Democracia esteja constantemente sob ataque nas trincheiras de conflitos e guerras, na medida em que a ideologia antidemocrática se utiliza de crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança.  

Por essas e por outras, é que os dois exemplo citados acima, do empresário multimilionário e do ex-Presidente do Uruguai, tornam-se verdadeiras provocações ao senso democrático contemporâneo. Na materialidade de suas biografias, de suas atitudes e comportamentos, cada um nos permite traçar uma análise crítica e reflexiva sobre os nossos próprios parâmetros democráticos.  

Qual deles está mais próximo ou distante de nós? É, um exercício bastante revelador! Mas, como dizia o escritor e poeta gaúcho, Mario Quintana, “Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um”. Afinal de contas, “A democracia é atividade criadora dos cidadãos e aparece em sua essência quando existe igualdade, liberdade e participação” (Marilena Chauí).

sábado, 19 de outubro de 2024

A estarrecedora monetização da vida

A estarrecedora monetização da vida

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De fato, é estarrecedor como a monetização da vida, em seus mais diferentes vieses, tem contribuído para a deterioração da ética e da moral social. Os recentes casos que estamparam as páginas dos veículos de comunicação e de informação, um falando sobre erros em exames de DNA e outro de pelo menos 6 pacientes infectados por HIV, após receberem um transplante de órgãos, exemplificam bem a situação.

Fala-se muito de humanização da saúde; mas, vira daqui e mexe dali, se esbarra, na verdade, com muita monetização. Algo que parece contribuir na materialização da necropolítica no país, tendo em vista que, tamanho absurdo, quase sempre, ocorre sob o guarda-chuva das políticas públicas.

De saída, então, já se percebe que a importância da vida de um cidadão é medida pelo seu status econômico. Fomentando um lamentável equívoco quanto ao pagamento pela prestação de um atendimento de saúde. Ora, seja na rede pública ou na rede privada, o cidadão brasileiro está pagando pelos serviços! No Sistema Único de Saúde (SUS), através dos seu impostos. Na rede privada, de forma particular ou via plano de saúde.

O que nos faz perceber que a saúde é um dos bens que já estão monetizados na contemporaneidade. De modo que a sua rapidez, eficiência e excelência, também, são diretamente proporcionais a essa monetização. O serviço prestado acaba por acontecer, inevitavelmente, de acordo com as possibilidades de recurso financeiro dos pacientes e seus familiares.

E aí, não há como negar, que a rede pública transita por muito mais desafios e obstáculos do que a rede privada. Não me refiro apenas ao gargalo de serviços, por carência de profissionais, infraestrutura, equipamentos e insumos; mas, pela insuficiência de investimentos públicos que sejam capazes de equacionar uma demanda de serviços que vem se ampliando, no país, nas últimas décadas.

Caro (a) leitor (a), não se pode esquecer, por exemplo, se não fomos capazes de tratar efetivamente doenças tropicais que assolam a população, desde os primórdios da colonização, o que dizer das novas patologias que exigem tratamentos, muitas vezes, multidisciplinares e medicações de elevadíssimo custo? Além disso, essa monetização da saúde está imersa, também, em uma teia burocrática que impõe, amiúde, a judicialização.

Erro em licitações e contratos. Superfaturamento de serviços e insumos. Desvios de verbas. Insuficiência de leitos; sobretudo, em unidades de tratamento intensivo.  Indisponibilidade de serviços. ... Obrigam os usuários da rede pública a buscarem solução junto ao judiciário, para suas demandas, em sua maioria, de urgência.  

E quando se pensa que já se chegou ao fundo do poço gerado pela monetização, nos deparamos com o mais absoluto grau de irresponsabilidade técnica, nos recentes casos de erros em exames de DNA e de pacientes infectados por HIV, após receberem um transplante de órgãos.

No cerne do problema, clínicas privadas prestadoras de serviço para a rede pública. Dois exemplos do que não poderia acontecer, em hipótese alguma. Mas, contrariando os artigos 196 e 197, da Constituição Federal de 1988, aconteceram.

Embora, não haja o que possa reparar os prejuízos das pessoas que tiveram suas vidas afetadas por um erro dessa dimensão, é preciso que haja não só a responsabilização de todos os envolvidos; mas, uma reformulação das práxis em saúde.  

É preciso deixar claro aos cidadãos o que pesa mais para a saúde brasileira: a humanização ou a monetização? Porque a dúvida tem levado a uma reafirmação, cada vez mais profunda, do viés necropolítico, o qual estabelece parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada, no país.

Há uma lógica conexão entre vida e saúde. Se há defesa para a vida, é fundamental que haja para a saúde, também. Segundo a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença”, portanto, a humanidade está bem mais doente do que imagina.

A continuar na sua obsessão em monetizar a vida, em seus mais diferentes vieses, ela tende a acabar sucumbindo pelo seu adoecimento físico, mental e social. Não nos esqueçamos, “O maior erro que um homem pode cometer é sacrificar a sua saúde a qualquer outra vantagem” (Arthur Schopenhauer).  

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Quando o progressismo precisa se fazer entender ...


Quando o progressismo precisa se fazer entender ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A recente eleição municipal, no Brasil, tem fomentado diversas discussões sobre o desempenho da ala progressista no país, considerando um êxito aquém das expectativas. Bem, é preciso considerar, de antemão, tanto as razões da historicidade colonial brasileira, quanto à alienação ideológica, caracterizada por um forte sentimento anticomunista, estabelecida pelos EUA, por aqui, para tecer qualquer análise a respeito.

Desde que mundo é mundo, ou seja, a partir da consolidação das estruturas sociais no planeta, que a relação entre dominadores e dominados se distribui pela população a partir de uma franca expressão de desigualdade, sob diferentes formas e conteúdos. E isso acontece porque aqueles que mandam, não têm quaisquer pretensões de dividir ou compartilhar seus poderes, regalias e/ou privilégios.

Assim, ainda que a camada social de dominados seja muito maior do que de dominadores, quaisquer tentativas de ascensão, por parte de seus membros, é brutalmente reprimida. Seja pela violência física, ou pela desqualificação identitária, ou pela supressão de direitos básicos. Algo facilmente perceptível pela resistente presença histórica da escravização ou práticas análogas a ela, no mundo.

Como a voz da discursividade dominadora sempre soou mais alto na sociedade, em razão da sua apropriação dos poderes, isso levou a um processo de inibição subserviente das vozes dominadas. A política do medo, da repressão, da violência, gera um estado de banalização e trivialização do silêncio. As minorias sociais se constrangem, se intimidam, diante do temor a que são constantemente submetidas.

Os seus esforços, as suas habilidades e competências, que traduzem diariamente o desenvolvimento e o progresso, não são exaltados, respeitados e recompensados, a contento. Como uma forma de demonstrar o espaço social que lhes é cabível, ou seja, não adianta reivindicar, questionar, porque não há pretensão de mudanças por parte dos dominadores. Então, quando alguém insurge diante dessa realidade ele é estereotipado pelo extremismo, pelo radicalismo, pela insubordinação. Torna-se persona non grata.

Portanto, uma ameaça ao equilíbrio das conjunturas sociais que, apesar de severamente desiguais, aos olhos de muitos parece ser a única via de sobrevivência. Foi nesse viés, que o anticomunismo foi implantado no mundo. Imagina, aqueles que já dispõem de tão pouco, ter que dividir seus bens materiais com os outros? De modo que a constante reafirmação desse discurso de medo reverbera em pleno século XXI, como uma verdade inconteste.

Assim, ficaram estereotipados todos os cidadãos que venham a defender ideias de caráter progressista, ou seja, que defendam a igualdade de direitos, às minorias, uma justa distribuição da renda, melhores condições de trabalho, ... Como se parâmetros de justiça social fossem uma expressão de extremismo ou de radicalismo. Uma ameaça a perturbação da lei e da ordem social, segundo a cartilha dos dominadores. Ninguém para e observa que tais ideias emergiram, no mundo, justamente, durante a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, em razão das péssimas condições experenciadas pelos trabalhadores.

A impressão que se tem, observando o século XXI, é que o nível de alienação social foi tão profundamente perverso e cruel, com a grande massa da população, que estamos diante da materialização da Parábola do Elefantinho Acorrentado 1.  O poder da discursividade dominadora conseguiu modular o pensamento dos dominados, a tal ponto de impedi-los de exercer sua liberdade, sua autonomia, seu protagonismo. E desconstruir essa pseudoverdade é demasiadamente desafiador.

A opressão histórica chegou a um nível que se for para insurgir contra os dominadores, que seja para defender a sua própria ascensão. A ideia de defender a igualdade de direitos, às minorias, uma justa distribuição da renda etc.etc.etc., parece não fazer justiça às pretensões contemporâneas dos dominados. Eles querem algo que vire o jogo, que os coloque diante das mesmas regalias, privilégios e, quiçá, poderes, dos dominadores.

Afinal de contas, a realidade social está, cada vez mais, marcada pela influência das tecnologias, de modo que são elas que ditam as aspirações, os desejos, o comportamento social da população. O que significa trazer à tona uma reafirmação de um padrão individualista, narcisista e, profundamente, egoísta, entre a maioria significativa dos indivíduos. Então, qualquer diálogo que as frentes progressistas queiram estabelecer com as camadas dominadas precisa levar tudo isso em consideração.

Os velhos discursos não cabem mais. A compreensão do que foi feito pelos dominadores já é facilmente traduzível pela percepção dos dominados, ou seja, de que “O velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal desapareceu. Estamos permanentemente disponíveis, sempre no posto de trabalho” (Zygmunt Bauman – Modernidade Líquida, 2001). Acontece que essa situação não é mais atrativa, sob nenhum aspecto. Os dominados querem uma realidade, no mínimo, próxima, daquela desfrutada pelos dominadores.

Portanto, segundo Zygmunt Bauman, “Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem”.  Nesse sentido, o ponto de partida para a transformação do ideário progressista é não negar a realidade social contemporânea. Basta, de fomentar o pensamento dos heróis e dos vilões! Dos bons e dos maus. Do nós e eles. Das dicotomias inúteis. Afinal, “A incapacidade de escolher entre atração e repulsão, entre esperanças e temores, redunda na incapacidade de agir” (Zygmunt Bauman), o que desfavorece consideravelmente às suas pretensões.   

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Reflexões à luz de velas...

Reflexões à luz de velas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pois é, não adianta tentar se manter à margem de certos acontecimentos, porque a força das conjunturas é, realmente, implacável. Mais uma vez atingida pelo apagão elétrico, durante uma tempestade, a região metropolitana de São Paulo, através do seu sofrimento, nos confronta com uma verdade, um tanto quanto, indigesta.  

Desde a 1ª Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, o cotidiano global foi moldado pela utilização da eletricidade. Em nome de certas facilidades, ou comodidades, a humanidade se rendeu a um modo de vida totalmente dependente da energia elétrica, trilhando um caminho sem volta, nesse sentido.

Acontece que ultrapassamos um patamar bem superior ao da satisfação das necessidades básicas. Cada novo delírio de consumo, na contemporaneidade, implica diretamente em uma sobrecarga de energia e, portanto, de dependência desse recurso.

O que nos coloca diante de um cenário de apagões que podem acontecer por decorrência de algum evento extremo do clima; mas, também, pela insuficiência da oferta de energia elétrica para atender a todas as demandas contemporâneas.

O modo como tornamos nosso dia a dia subserviente à eletricidade parece não ter se dado conta, por exemplo, do impacto da escassez hídrica sobre as usinas hidrelétricas e de uma produção de energia eólica e solar incipiente, no país, ainda que sua capacidade venha sendo gradativamente expandida. Portanto, o panorama atual pede cautela quanto ao afã consumista de eletricidade.

Além disso, muito se falou, nos últimos dias, sobre a necessidade urgente do aterramento dos fios elétricos nos centros urbanos. Mas, se não houver um recuo na expansão consumista de eletricidade, os custos dessa engenhosa obra tendem a se tornar totalmente inviáveis.

Vejam, a expansão dos espaços urbanos implica, inevitavelmente, em mais consumo de energia, em mais estrutura de fornecimento elétrico, em uma melhor zeladoria ambiental da cidade, ... enfim. De modo que essa não pode ser uma discussão restrita aos gabinetes gestores.

Para se encontrar uma solução adequada e compatível às diversas demandas socioeconômicas do município é preciso que todos os envolvidos participem efetivamente do processo. Justamente porque o problema é complexo, não se pode desconsiderar a participação das diferentes representações sociais, ou seja, quem produz e participa da cidade.

E me parece que essa lacuna de comunicação é sempre a ponta do iceberg. Quando se desconsideram uns em detrimento de outros, os problemas tendem rapidamente a emergir e a se desdobrar em cenários bastante caóticos. Simplesmente, porque a dialogia é inexistente, obstaculizada ou interrompida, não permitindo que se chegue a um senso comum e equilibrado das questões.

O fato, por exemplo, do sistema democrático estabelecer a representatividade popular, a partir de indivíduos eleitos pelo voto, não significa que esses possam se eximir, na tomada de decisões, das opiniões de seus eleitores.

Afinal, na maioria das vezes, são eles os mais, diretamente, afetados. Sem contar, que tais atitudes parecem configurar uma apropriação descabida do poder gerado pela atribuição do cargo público.

Daí ser compreensível a indignação, a revolta, a frustração, dos milhões de paulistanos que tiveram suas vidas, nos últimos dias, consumidas pela escuridão do apagão elétrico. Prejuízos materiais e imateriais que não tendem a ser, de algum modo, ressarcidos a contento.  

Mas, cujo cerne está em acordos e decisões que não foram tomadas com base no bem-estar e na melhoria social; mas, nos jogos de interesse e poder historicamente presentes na realidade brasileira.

Como dizia Ulysses Guimarães, “Todos os nossos problemas procedem da injustiça. O privilégio foi o estigma deixado pelas circunstâncias do povoamento e da colonização, e de sua perversidade não nos livraremos, sem a mobilização da consciência nacional”.

Sendo assim, se o apagar da luzes não fizer acender a cólera, o enraivecimento e a ira do cidadão, diante dos acontecimentos, ao menos, ela contribui para retirar dele o véu da inação crítico-reflexiva, impondo a necessidade de ver o que acontece bem diante dos seus olhos.  

Portanto, não nos esqueçamos do que escreveu Bertolt Brecht, “Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence” (Privatizado).

Consequência terrível de um mal que assola, há tempos, a grande massa brasileira. Sim, porque “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo” (Bertolt Brecht)