Mais um
lance de bola fora ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Detesto “mais ou menos”. Especialmente,
sentimentos e emoções. Sendo assim, me incomoda profundamente deparar com uma indignação
mais ou menos. Os veículos de comunicação e informação, nacionais e
estrangeiros, repercutiram o lamentável episódio no meio futebolístico, em que
o atleta brasileiro mais incrível dos últimos tempos, um verdadeiro gênio da
bola, foi preterido à Bola de Ouro 2024 1.
O motivo: o racismo e o modo como ele vem lidando com o assunto.
Bem, esse é o ponto de reflexão. Qualquer
um, com o mínimo senso de humanidade, de empatia, tem sim, que se indignar com
todas as afrontas, desrespeitos e violências, as quais esse jovem talento do
futebol vêm sofrendo, desde que foi jogar na Espanha. Mas, essa indignação tem
que ser ampla e irrestrita. Tem que ser capaz de abrir os olhos e as mentes em
relação ao que acontece, também, no cotidiano global.
Não só, porque o racismo é crime;
mas, porque ele emerge de crenças, valores e princípios históricos e passa a
compor um conjunto de práxis perversas e cruéis que legitimam as desigualdades
no planeta. Simplesmente, porque ele é um conceito estabelecido pelas classes
dominantes, ao longo de séculos, a fim de definir critérios de superioridade e
de inferioridade, de importância e de desimportância social, de pertencimento e
de não pertencimento, ...
Com o único propósito de
preservar regalias, privilégios e poderes, acumulados historicamente, e
sustentados com base no eurocentrismo, para designar a centralidade e a
superioridade da visão europeia sobre as outras visões de mundo, dentro de
diferentes aspectos. Desse modo, o racismo permanece exercendo o seu papel sem
encontrar a devida resistência a respeito. A explicação é simples: as heranças
do colonialismo e do imperialismo (neocolonialismo) que não se dissiparam com o
tempo.
O poder, em todas as suas instâncias,
está, como sempre esteve, nas mãos daqueles que, consciente ou
inconscientemente, transpiram o conceito de eugenia 2,
de aporofobia, de misoginia, de sexismo, de xenofobia, de intolerância religiosa
e tantas outras formas de discriminação e preconceito. As chamadas classes dominantes, ou elites, ou
oligarquias, não importa a denominação, são as responsáveis pela contínua
reafirmação e disseminação desses pensamentos.
E elas têm tanta certeza de que
não serão jamais incomodadas no seu espaço social, no seu protagonismo, que
manifestam as suas ideias e atitudes abjetas sem quaisquer sinais de
constrangimento ou incômodo. Elas se apropriam, a tal ponto, desse lugar de autoridade,
que sequer temem as consequências dos seus comportamentos. Se julgam realmente
acima do Bem e do Mal.
José Saramago escreveu na
epígrafe do seu “Ensaio sobre a Cegueira” (1995), “Se podes
olhar, vê. Se podes ver, repara”. Pois é, nosso grande problema é não levar
esse sábio conselho a sério! Inadvertidamente, saímos por aí, distribuindo cordialidades,
apoios e simpatias para muitos que não passam de nossos piores algozes. Gente que,
meia dúzia de palavras, já seria o suficiente para destilar toda a sua ausência
de empatia, de solidariedade, de respeito, de humanidade.
Mas, por incrível que pareça,
continuamos mantendo laços sociais, como se nossa indignação pudesse, por
alguma razão qualquer, ser flexibilizada, relativizada. Como se fosse impossível admitir a dimensão
brutal desses comportamentos e palavras, sendo preferível abster-se de uma atitude mais efetiva. Algo que,
talvez, esteja associado inconscientemente às memórias da hierarquização colonial,
quando existiam dominados e dominadores, explorados e exploradores, e um
sentimento de medo silenciava quem estava em desvantagem social.
Lamento, mas é essa nossa
indignação mais ou menos que alimenta a perpetuação histórica do racismo e de quaisquer
outras formas de discriminação e preconceito, mundo afora. Quando não nomeamos
corretamente as injúrias, as ofensas, as violências cotidianas, que partem como
flechas orientadas do topo da pirâmide social. Quando silenciamos diante de
todo tipo de indignidade humana.
Nelson Mandela dizia que “Nascemos
para manifestar a glória do Universo que está dentro de nós. Não está apenas em
um de nós: está em todos nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. E conforme
nos libertamos do nosso medo, nossa presença, automaticamente, libera os outros”.
Portanto, se encolher, se invisibilizar, se calar, ... nada disso vai
impedir que você seja quem é e/ou que as classes dominantes desconstruam seus retrógrados
paradigmas.
Não nos esqueçamos de que a luta
contra qualquer discriminação ou preconceito começa na afirmação legítima do ser
humano, seja ele quem for, esteja ele onde estiver. Pois, segundo Angela Davis,
“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser
antirracista”, ou seja, assumir uma postura social de ação contra o ódio, o
preconceito, o racismo sistêmico e a opressão estrutural de grupos
marginalizados racial e etnicamente. Afinal, de contas, “Se você fica neutro
em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu).