domingo, 30 de março de 2025

Entre golpismos e fisiologismos


Entre golpismos e fisiologismos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é brincadeira! A necessidade de reflexão profunda, nesse momento, no Brasil, é urgente! Aliás, as imagens dantescas do 8 de janeiro de 2023 deveriam ter impactado, de fato, a sociedade brasileira. Pena que não foi bem assim.

Membros, apoiadores e simpatizantes da ultradireita e demais espectros da Direita nacional sequer se constrangeram com aquela barbárie. Pelo contrário, seu desprezo pela Democracia, o Estado de Direito e as Instituições da República foi explícito, na medida que se permitiram distorcer os fatos e criar um discurso vitimista para os vândalos golpistas.

Ao menos, agora, sabemos até onde pode chegar o fisiologismo político, no Brasil. Sim, porque em nome da tecitura das relações de poder político, essa gente não se furta a extrapolar quaisquer limites do decoro para satisfazer seus interesses privados, em detrimento do bem comum. Na historicidade brasileira, essa é a primeira vez em que nos deparamos com a construção de uma maioria parlamentar deplorável, carcomida e apodrecida pelos piores valores e princípios humanos.

Pois é, essa gente é parte da representação popular democraticamente eleita.  De modo que a exibição pública da sua falta de ética e de moral, infelizmente, é consequência da escolha do cidadão. Seja por ingenuidade persuadida através de um discurso ardiloso. Seja pela ignorância arraigada pela insatisfação diante da realidade. Seja pela manifestação de um caráter duvidoso que almeja tirar alguma vantagem através do seu voto.  ... Pouco importa. Dentro desse viés de análise, cada cidadão brasileiro, no silêncio da sua consciência, deveria fazer um exame minucioso das suas decisões.

Recentemente, em sessão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), dois ministros, durante a leitura dos seus votos em uma ação, fizeram a importante observação de que “golpe de Estado mata”. Bem, o voto também! Especialmente, quando o fisiologismo político é feroz. Mata, porque não atende as demandas fundamentais dos eleitores. Porque desvia recursos para fins não prioritários e urgentes. Porque obstaculiza o desenvolvimento e o progresso do país. Porque abandona a população à própria sorte. ... Sem contar que pelo voto se pode criar condições para a realização de um golpe de estado.

Entretanto, em razão da sua própria construção histórica, o cidadão brasileiro encontra dificuldade em entender o que seu voto, implicitamente, pode significar. Como manifestou a filósofa Marilena Chaui, “O pensamento de que uns mandam e outros obedecem é o que forma o povo brasileiro. Que é apresentado como um povo cordato, pacífico, trabalhador. Mal sabem os brasileiros o quanto de violência existe por trás disso. A opressão, a condição servil e o esquecimento de que o natural é ser livre”. Por isso, “A democracia pouco significado tem sem uma igualdade econômica aproximada e sem um sistema educativo que tenda a promover a tolerância e a firmeza de espírito” (George Orwell).

Há pouco mais de 500 anos, o Brasil vive sob a seguinte organização: “As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer política” (Marilena Chaui).

Acontece que essa política deformada e equivocada que se constituiu pela apatia, precisa ser rapidamente desconstruída para oportunizar ao país, uma perspectiva de futuro desvencilhado do seu ranço histórico. Caso contrário, o brasileiro permanecerá alimentando o fisiologismo político e fazendo do seu voto um flerte perigoso e, quem sabe, letal, com o golpismo. Lembre-se, “Nossas vidas começam a acabar no dia em que ficamos em silêncio sobre as coisas que importam” (Martin Luther King, Jr.). 

sexta-feira, 28 de março de 2025

Uma marca de batom ...


Uma marca de batom ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quem diria que um artigo da beleza feminina se tornaria a semente da discórdia em questão jurídica! Pois é, aconteceu! Um batom, caro (a) leitor (a)! Picharam a escultura "A Justiça", criada pelo artista mineiro Alfredo Ceschiatti, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, quando da tentativa de Golpe de Estado, em 08 de janeiro de 2023.

Mas, por incrível que pareça, a história não difere muito do célebre caso do “batom na cueca”. A prova irrefutável da traição. Acontece que o flagrante, inegável e incontestável, da referida marca não resume em si mesma a tal ruptura da confiança. Até chegar ali, muita água rolou por debaixo dessa história.

O “batom na cueca” é só o símbolo de um processo que vinha se desenrolando há algum tempo. A traição não foi um fato inesperado, acidental, casual. Quem se dispõe a trair é porque nutre um impulso em fazê-lo. Inclusive, há quem diga que “trair e coçar é só começar”.

Ora, o proibido sempre traz uma sensação de prazer, o qual mexe com as emoções e os sentimentos mais profundos do indivíduo. Seja ele, homem ou mulher. Não é à toa que Eleanor Roosevelt disse, “Se alguém trai você uma vez, a culpa é dele. Se trai duas vezes, a culpa é sua”.

De modo que a traição é uma história e não, uma fotografia. Ela sempre tem início, meio e fim. Dispõe de vários cenários, circunstâncias, personagens, recortes temporais, enfim. O que significa que o tal “batom na cueca” é só um clímax da história. Um descuido, um deslize, de uma série de eventos que vieram se desenvolvendo dentro de um espaço de tempo, breve ou longo.

Por isso, a raiva despertada não é exatamente pelo batom na cueca; mas, pela consciência de todo o processo que culminou naquela marca. O ser traído é levado a mergulhar em um mar profundo de conjecturas e suposições dolorosas e cruéis, quando se depara com o “batom na cueca”. Como se aquele símbolo nefasto esfacelasse um conjunto de promessas voltadas ao respeito, ao cuidado, à cumplicidade, ao afeto, à dedicação, ...

Logo, não se pune pela marca em si; mas, pelas inúmeras camadas imersas na subjetividade do ato traidor. Tudo o que aconteceu e não se viu; pois, estava imerso nas mentiras, nas dissimulações. Uma história oculta, cujos capítulos demostram a total negligência em relação ao outro, aos sentimentos do outro. Afinal, a traição se mostra pela exacerbação do individualismo egoísta e narcísico.

Por essas e por outras, é possível tecer uma analogia entre o caso da pichação da escultura e o caso do “batom na cueca”. Em relação à escultura é preciso destacar que tal atitude representou em si, um crime de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Entretanto, a justiça se fundamenta na construção da história e, por isso, pode apurar o envolvimento da responsável pelo dano em circunstâncias prévias, capazes de serem enquadradas nos crimes de liderança de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

Portanto, já havia por parte dessa pessoa a intenção e a predisposição de agir na contramão da lei. Ainda que, em sua defesa seja alegado o desconhecimento jurídico, desde que se iniciaram os acampamentos em portas de quartéis-generais, manifestações clamando por ruptura institucional e outros despautérios antidemocráticos, diversos veículos de comunicação e de informação já alertavam a respeito da inconstitucionalidade e da configuração criminosa desses comportamentos. Razão pela qual, o batom na estátua não pode sustentar uma tese de natureza tão vitimista.

Já dizia Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”. Por isso, cuidado com o batom! Se olharem só para o que ele é capaz de normalmente produzir, podem tender ao exercício da benevolência, por se tratar de um ato de menor relevância. Mas, se dissecarem as camadas por trás dele, podem entender a gravidade, ali escondida, e não permitir que tais atos deixem de receber a devida repreenda. Assim, lembre-se de que, em um piscar de olhos, o sensual pode se tornar um escândalo. 

quarta-feira, 26 de março de 2025

Sobre (in)tolerâncias


Sobre (in)tolerâncias  

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Geralmente, em casos de ampla visibilidade, ao se tornarem réus, os indivíduos costumam ir a público tecer manifestações em defesa própria. Eis que, hoje, vimos acontecer o contrário, no Brasil. O ex-presidente da República, um dos 8 indivíduos tornados réus pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nessa manhã, optou por uma comunicação, aos veículos de mídia, totalmente desprovida de coerência e senso lógico.

Como ele já se mostrou, diversas vezes, inclusive sob a análise das próprias acusações que o tornaram réu, um estrategista, não creio que a fala tenha se dado de maneira improvisada e repentina. Diante da situação, a opção por manifestar uma insanidade oportuna pode ter sido o caminho escolhido para se defender. Afinal, a robustez dos elementos que instruíram a admissibilidade do caso, pelo STF, é incontestável.

Então, pelo menos em relação aos seus apoiadores e simpatizantes, a aparente insanidade pode desencadear alguma sensibilização. Trata-se da velha práxis de se colocar na posição de vítima das circunstâncias, tentando angariar uma piedade benevolente, a qual ele nunca soube exercer a reciprocidade. Aliás, enquanto esteve no centro do poder, seus comportamentos irresponsáveis, impulsivos, emocionais, explosivos e de risco, já levantavam suspeitas de ele apresentar um quadro de sociopatia. Contudo, nada a respeito foi sequer investigado.

Agora, experenciando uma situação inédita, no curso da sua vida, ele está profundamente desconfortável. Ciente da gravidade e da complexidade das acusações, ele não parece devotar a sua plena confiança à defesa jurídica e, por isso, apela para tentar construir uma defesa popular, com base na persuasão e na tolerância de seus asseclas.

Daí o argumento da insanidade ganhar espaço. Ao surgir em público visivelmente ansioso, demonstrando dificuldade de concentração e raciocínio, às vezes, irritado, ele se mostra afetado pelos acontecimentos na esfera jurídica, os quais se pronuncia injustiçado.

Se a extravagante estratégia vai efetivamente funcionar, só o tempo dirá! Os outros 7 réus também farão suas defesas e muita água pode rolar por debaixo dessa ponte. Aliás, muito esgoto! Porque no afã de se eximirem das responsabilidades que lhes são atribuídas, muita coisa ainda não dita pode vir à tona e gerar um verdadeiro tsunâmi de desdobramentos. Nem tudo foi dito. Há muitos silêncios a serem desvendados. Afinal, estamos falando de cinco crimes: liderança de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Cujas penas podem somar mais de 40 anos de reclusão.

Seja como for, esse é um momento importantíssimo para o Brasil, para a sua construção identitária cidadã. Um tempo de ampla e profunda reflexão sobre nossas crenças, valores e princípios. As terríveis fendas que o movimento ultradireitista, com o apoio de outros matizes da Direita, impôs ao país, nos últimos anos, levou-nos a uma obrigatória reflexão: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles” (Karl Raimund Popper - “Paradoxo da tolerância”,1945).

Portanto, um dos vieses sobre os quais o STF se debruça, nesse caso, diz respeito à disseminação da intolerância, presente em cada uma das 5 acusações apresentadas aos réus. Uma intolerância que não se furtou a afrontar a civilidade, o respeito, o senso coletivo, os direitos humanos, porque, como dizia Umberto Eco, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante intolerância e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo”.  

domingo, 23 de março de 2025

O Brasil no divã

O Brasil no divã

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo Carl Gustav Jung, “Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma melhor compreensão de nós mesmos” 1. Traduzindo em miúdos, quando se aponta o dedo para alguém não se deve esquecer de que seus outros quatro dedos estão apontando para você.

Bem, nas últimas semanas, foi noticiado pela mídia brasileira que apoiadores e simpatizantes da ultradireita estavam “levantando informações sobre os bens dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal)” 2, fora do Brasil. No entanto, o suposto “licenciamento” de um Deputado Federal pelo estado de São Paulo, pertencente à ultradireita brasileira, trouxe à tona a realidade patrimonial que ele dispõe nos EUA, para garantir as condições nababescas em que está vivendo com a família naquele país 3.

Olha só, os quatro dedos aí! Enquanto a ultradireita tenta desqualificar e afrontar, de todas as maneiras, os ministros do STF, diante do governo estadunidense, eis que, como diria Cazuza, “Tuas ideias não correspondem aos fatos...” 4. Quem deveria dar explicações a respeito do vultoso patrimônio acumulado na terra do Tio Sam é o referido deputado e sua família; pois, não é de hoje que muito dinheiro foi sendo levado para lá. Algo que desconstrói por completo o vídeo vitimista divulgado por ele, assim que chegou aos EUA 5.

Não é difícil pensar, então, que o distanciamento do Brasil visou buscar um espaço de influência opositora, sem estar submetido às normas jurídicas brasileiras. Lá fora, eles se sentem seguros para não serem responsabilizados por suas inverdades fantasiosas; pois, os EUA já deixaram claro que certas condutas em seu território não são passíveis de criminalização.

Assim, através das redes sociais, ele pode permanecer atuando junto à sua rede de membros, apoiadores e simpatizantes da ultradireita, no Brasil. Além disso, ele conta com o apoio de elementos ultradireitistas brasileiros, foragidos da justiça, que já residem por lá, para colocar em prática as suas ideias.

E podendo piorar a situação, o presidente da Câmara dos Deputados oficializou o afastamento do referido deputado, após solicitação de licenciamento do mandato. Segundo o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, artigo 235, “O Deputado poderá obter licença para: I - desempenhar missão temporária de caráter diplomático ou cultural; II - tratamento de saúde; III - tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa; IV - investidura em qualquer dos cargos referidos no art. 56, I, da Constituição Federal”.

No entanto, como já é de conhecimento público, não é de hoje que ele busca articular com o governo dos EUA, contra possíveis abusos que estariam acontecendo no Brasil. O que parece não se alinhar à justificativa de “tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa”, que foi apresentada à Câmara dos Deputados. Ora, se tal argumento é aceito, isso significaria que o Legislativo Federal sustenta, então, as hipóteses absurdas que vêm sendo propagadas internacionalmente pelo deputado e seus asseclas, contra o país. E isso é muito grave!

Em cada movimento que a ultradireita estabelece com o apoio do restante do espectro direitista brasileiro, novas peças do ideário golpista, que paira sobre o país, vão se encaixando. Chega a ser curioso como a trilha do chamado “Follow the Money” (siga o dinheiro) lança luz sobre as diversas camadas que compõem esse roteiro nefasto. Como dizem, por aí, “Puxa-se uma pena e vem o galinheiro inteiro”!

Até aqui, quantas notícias a respeito de superfaturamento com lojas de chocolate, imóveis adquiridos com pagamento em espécie e valor inferior ao preço de mercado, repasses de parte dos salários de assessores para o parlamentar ou secretário a partir de acordo como exigência para a função. ... Algo que se junta às recentes informações sobre o vultoso patrimônio acumulado nos EUA, e possibilita questionar sobre um panorama ainda mais incompatível a renda parlamentar.  

Portanto, torna-se imprescindível que as autoridades brasileiras se atentem rapidamente a esses fatos. Afinal, por trás de ações delituosas, quase sempre, se tem uma rede robusta de financiamento para as ações. Ao que parece, o capital que está servindo ao objetivo de atentar contra a soberania nacional 6 se encontra depositado além-mar.



1 Memórias, sonhos, reflexões (1961).

4 O Tempo Não Pára - Cazuza (1988) / Compositores: Agenor De Miranda Araujo Neto / Arnaldo Pires Brandão

6 Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo. (LEI Nº 14.197, DE 1º DE SETEMBRO DE 2021). 

quinta-feira, 20 de março de 2025

O crônico mau humor do mercado...

O crônico mau humor do mercado...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A histeria da ultradireita a fim de tensionar a impressão popular a respeito do governo, é mesmo insana.  O dia em que o mercado aprovar um governo progressista, no Brasil, algo estará realmente fora dos eixos. Afinal, o mercado é um ente historicamente destinado a garantir as regalias e os privilégios econômicos das elites dominantes. Portanto, eles não querem nenhum modelo político que busque mitigar as desigualdades socioeconômicas.

E quem é o mercado? Ele se constituiu concomitantemente à Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Trata-se, portanto, de um sistema econômico cujas decisões a respeito de investimentos, produção e distribuição de bens, produtos e serviços são orientadas por sinais de preços oriundos da lei da oferta e da procura. Nesse sentido, é a presença dos mercados de recursos (mão de obra, capital e terra) que desempenham um papel dominante na alocação de capital e nos fatores de produção.

Diante dessa explicação, não é difícil de entender, por exemplo, qual a razão de o cidadão brasileiro não receber um salário-mínimo, segundo estabelece a Constituição Federal de 1988, ou seja, “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim” (art. 7º, inciso IV). Isso, por si só, já dá materialidade à precarização do trabalho, no Brasil, segundo os interesses do mercado.

O mercado, então, só tem preocupação com seus próprios interesses. Assim, expandindo o olhar para o mundo, a relação dos mercados interfere diretamente na dinâmica econômica dos países. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), no início de 2025, “O crescimento econômico global deve permanecer em 2,8% em 2025, inalterado em relação ao ano passado. O relatório produzido pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (DESA) destaca o impacto duradouro do baixo investimento, da baixa produtividade e dos altos níveis de dívida no desempenho econômico global” 1.

Além disso, “espera-se que muitos países em desenvolvimento enfrentem pressões inflacionárias persistentes, com um em cada cinco experimentando taxas de dois dígitos.  Altos encargos de dívida e acesso limitado a financiamento internacional continuarão a dificultar a recuperação. A inflação dos alimentos continua sendo um problema urgente, com quase metade dos países em desenvolvimento apresentando taxas acima de cinco por cento. Isso agravou a insegurança alimentar, principalmente em países de baixa renda que já enfrentam eventos climáticos extremos, conflitos e instabilidade econômica. O relatório alerta que a inflação persistente dos alimentos, aliada ao lento crescimento econômico, pode levar milhões de pessoas ainda mais à pobreza”.

Daí a importância dos governos não se renderem às pressões do mercado e manterem o seu compromisso com a população; sobretudo, as parcelas mais frágeis e vulneráveis. É fundamental que ações multilaterais ousadas para abordar crises globais interconectadas, incluindo dívida, desigualdade e mudanças climáticas, sejam tomadas. De acordo com o relatório, os governo têm sido instados “a se concentrar em investimentos em energia limpa, infraestrutura e setores sociais essenciais, como saúde e educação”, a fim de que haja um desenvolvimento global mais equitativo e sustentável.

Ocorre que o grande desafio do momento seja a crescente demanda industrial por minerais raros, como lítio e cobalto. Em razão do alto desenvolvimento tecnológico, promovido pela Revolução industrial 4.0, “Para países em desenvolvimento ricos em recursos, esses minerais oferecem potencial de crescimento, criação de empregos e aumento de receitas para acelerar o progresso em direção aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). No entanto, o relatório alerta que a má governança, práticas trabalhistas inseguras e degradação ambiental podem prejudicar os benefícios a longo prazo e agravar as desigualdades”. E a história já mostrou como se comporta a cobiça dos mercados, diante das novidades, e quais as consequências nefastas resultam disso.  

Assim, façamos uma reflexão profunda a respeito do que acontece no planeta e repercute em nossas vidas cotidianas. Como tão bem manifestou Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, “O deus mercado organiza a economia, a vida e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão”.  Por isso, muita atenção às nossas próprias práxis; afinal, “A espécie humana e a economia global podem muito bem continuar crescendo, mas muito mais indivíduos passam fome e privação” (Yuval Noah Harari).

quarta-feira, 19 de março de 2025

Fugindo da realidade


Fugindo da realidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Fugir é sempre um ato de ruptura.  Se por medo, desconforto, contrariedade, ... Não importa o motivo. Acontece que romper com algo ou alguém não deixa de manifestar uma desistência. O que, no fundo, revela a manifestação de um fracasso diante dos obstáculos e desafios impostos pela vida.

E olhando com bastante atenção para a contemporaneidade, cada vez mais os seres humanos estão se tornando inaptos às adversidades, de modo que a fuga tem sido uma estratégia de sobrevivência comum para muitos. No entanto, não é uma fuga qualquer! Estou falando sobre fugir da realidade.

Pois é, a dificuldade em lidar com os nãos, os limites, as regras, e demais instrumentos de regulação da vida social, faz com que os indivíduos se refugiem em suas realidades paralelas. Criam seus próprios mundinhos para satisfazer ao seu narcisismo egóico e não serem jamais perturbados nas suas vontades e quereres.

Trata-se de um comportamento que abdica da realidade factual. Pessoas assim, tiveram sua construção psicoemocional comprometida pela satisfação integral (ou não) dos seus desejos. De modo que a perspectiva da realidade foi desvirtuada da normalidade. Afinal de contas, ninguém tem tudo, ninguém pode tudo. Daqui e dali o ser humano é confrontado por limites, não importa se você pertence a classe A, B, ou C.

O principal problema é que a fuga da realidade leva o indivíduo a se lançar em uma espiral de ilusões, de ficções, de factoides, de absurdos diversos, os quais vão favorecendo a sua frustração, pela impossibilidade de obter o sucesso almejado na sua própria versão da realidade.

Acontece que todo ser humano, goste ou não, está submetido ao mundo real. A realidade factual é soberana. Essa verdade inconteste, apesar de muitas vezes amarga e indigesta, é extremamente importante para o processo de evolução humano. É no modo como se atua diante das aventuras e das desventuras cotidianas, que cada pessoa desenvolve a sua identidade, para atuar no contexto social.

Como a identidade sofre influências múltiplas, tais como a memória, os pensamentos, as crenças, as emoções, o temperamento e o caráter, quando se foge para uma outra realidade tudo isso se altera também. A fuga da realidade impõe o surgimento de uma persona, diferente do seu eu autêntico.

De certa forma, quando Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema O homem; As viagens, por volta da década de 1970, já conseguia desnudar o ser humano ao ponto de vê-lo nessa busca incessante para fugir da realidade. Movido por uma insatisfação crônica, nenhum lugar parecia satisfazer o seu alto grau de idealização. Seus caprichos eram sempre inatingíveis! Como se a grama do vizinho fosse sempre mais verde! Porém, nada disso adianta!

Caro (a) leitor (a), esse é o ponto! Fugir da realidade é inútil. A vida é o que é. Tentar fazer o mundo caber nas próprias idealizações é uma tarefa non sense e profundamente frustrante; pois, é impossível. Infelizmente, a contemporaneidade vendeu a todos uma série de promessas impossíveis de cumprir. A liberdade irrestrita foi uma delas. Ora, se dizem que eu sou livre para fazer o que quiser, ter o que quiser, ... nada pode me contrariar nas minhas aspirações.

Pelo menos em tese, é assim. Porque na prática tudo funciona diferente. Aí as inúmeras fugas da realidade não fazem chegar a lugar nenhum, exceto, a uma montanha de decepções dilacerantes. Descobre-se, talvez, da pior forma, que se é apenas mais um, em uma multidão vestida por completo individualismo narcísico, o que significa um monte de pessoas que não dão a menor bola para os choramingos de ninguém. Nesse momento, então, só resta clamar as pitangas ao som de Maysa, “Meu mundo caiu / E me fez ficar assim / Você conseguiu / E agora diz que tem pena de mim ...” (1958).

Aí, depois de muitas lágrimas e lenços de papel, surge a oportunidade de entender que “A insatisfação por aquilo que não temos é resultado da falta de gratidão por aquilo que temos” (Daisaku Ikeda). Sem contar, que “Muitos dos nossos sentimentos de satisfação ou insatisfação vêm do fato de nos compararmos com as outras pessoas” (David Niven - psicólogo e escritor best-seller estadunidense).  

sábado, 15 de março de 2025

Desumanização ...


DESUMANIZAÇÃO ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito tem se falado sobre a deterioração da Democracia ao redor do planeta. Acontece que esse processo é composto por camadas de violência e de destruição, na maioria das vezes, envoltas pelas sutilezas da banalização, da normalização. E uma dessas camadas diz respeito à desumanização fomentada pela necropolítica.

Na medida em que o uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, permite determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo e quem deve morrer, legitima-se a desumanização social 1. Algo que, em sociedades como a brasileira, por exemplo, cuja historicidade é marcada a ferro pela herança colonial, se torna ainda mais recrudescido.

Basta por os olhos nas manchetes dos veículos de informação e comunicação, diariamente, para perceber como as camadas mais frágeis e vulneráveis da sociedade brasileira estão sendo vitimadas pela desumanização social. Como se o valor da vida tivesse sido alinhado à distribuição humana na pirâmide social, ou seja, algumas valem mais, outras valem nada.

Mas, pondo reparo nesse cenário, descobre-se como o racismo cruza também esse caminho, pelo fato de que as vidas classificadas desimportantes são predominantemente compostas por negros e mestiços. Veja, o apagamento histórico sobre o processo de abolição da escravatura, no Brasil, criou uma dissociação entre o passado e o presente. Tanto que a libertação dos escravos, em 1888, reverbera, ainda hoje, as suas consequências nefastas sobre a vida dos descendentes de negros e mestiços, no Brasil. O que significa que a desestruturação socioeconômica que lhes foi imposta, no século XIX, estabeleceu um gigantesco obstáculo à sua mobilidade e inserção social.

Não só do ponto de vista prático, como subjetivo. Aliás, talvez, na subjetividade, as práxis do racismo, da desumanização, sejam ainda mais abjetas e repugnantes; visto que, elas reafirmam a todo instante uma diversidade de rótulos e estereótipos que inferiorizam e objetificam os cidadãos negros e mestiços. O que os torna extremamente vulneráveis às práxis da necropolítica vigente.

Como disse o   rapper paulistano Emicida, em um programa de TV, “O Brasil aplaude a miscigenação quando clareia, quando escurece ele condena. […] O táxi não para pra você, mas a viatura para, esse é o problema urgente do Brasil” 2. O fundamentalismo eurocêntrico que vigora, em pleno século XXI, no país, legitima sim, a desumanização social. Tornando quaisquer cidadãos, que não se encaixem aos padrões eurocêntricos preestabelecidos, vítimas e algozes de si mesmos, nas mais diferentes circunstâncias do cotidiano.   

Ora, se “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CF de 1988, art. 5º), há algo de muito errado na realidade brasileira! Como cidadãos dotados constitucionalmente pelos mesmos direitos e deveres, por que fechamos os olhos para as desigualdades? Por que compactuamos com a desumanização social? Por que nos silenciamos às práxis necropolíticas?

Com a tentativa, cada vez mais intensa, de reafirmação e consolidação do poder pela ultradireita, não se pode esperar que quaisquer atitudes em favor da desconstrução desse movimento infame e vergonhoso aconteça. Afinal, membros, apoiadores e simpatizantes desse espectro político-partidário fazem parte das camadas superiores da pirâmide social brasileira. Portanto, estão em suas mãos o poder e a influência para decidir; mas, eles não dispõem de vontade ou interesse para fazê-lo. A ideia é justamente manter, a qualquer preço, suas históricas regalias e privilégios. Porém, como a base da pirâmide é bem maior que o topo, ela pode sim, ser o impulso para a mudança.  

Dizia o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes que “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça”. Mas, para que isso aconteça é preciso extinguir essa desumanização impulsionada pela necropolítica. Começando pela compreensão de que “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista” (Angela Davis); pois, o racismo significa a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.).

Portanto, que nossa reflexão seja amparada pelo seguinte princípio: “Age de modo que consideres a humanidade tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro, e sempre como objetivo, nunca como simples meio”; posto que, “A inumanidade que se causa a um outro destrói a humanidade em mim” (Immanuel Kant). Lembre-se, “Justiça é consciência, não uma consciência pessoal mas a consciência de toda a humanidade. Aqueles que reconhecem claramente a voz de suas próprias consciências normalmente reconhecem também a voz da justiça” (Alexander Solzhenitsyn - Prêmio Nobel de literatura em 1970).


sexta-feira, 14 de março de 2025

Inconsciência cidadã... Ausência de decoro... A fragilidade da ética brasileira.


Inconsciência cidadã...  Ausência de decoro... A fragilidade da ética brasileira.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Recentemente um ministro da Suprema Corte brasileira respondeu às afrontas do governo estadunidense, dizendo que o Brasil deixou de ser colônia em 1822. Em tese, sim. Mas, o que vem sustentando essa visão equivocada e distorcida, ao longo desses pouco mais de 500 anos, são as constantes manifestações de extrema subserviência e subordinação, por parte de alguns cidadãos brasileiros.

O mais recente e absurdo exemplo, diz respeito a um dos filhos de um ex-presidente da República, que apesar de eleito Deputado Federal pelo estado de São Paulo, tem explicitamente abandonado suas funções parlamentares no Brasil, para exercer campanha difamatória contra o país, nos EUA.

O que significa que o referido deputado tem cometido flagrante crime de lesa pátria, ou seja, tem buscado submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país, a partir de falsas alegações.

Acontece que esse quadro rançoso dos tempos coloniais brasileiros, custa caro ao erário. Ora, ao abdicar de cumprir seu compromisso legislativo, na Câmara dos Deputados, em Brasília/DF, para tratar de questões infundadas, em outro país, ele deveria ser intimado a se desvincular da função.

Afinal de contas, é profundamente constrangedor à Democracia brasileira que um membro do seu Poder Legislativo cometa crime de lesa pátria e permaneça vinculado ao posto; bem como, desfrutando de todas as regalias e privilégios dele.

Como venho dizendo há tempos, caro (a) leitor (a), são os reflexos nocivos do nosso ranço colonial! Não bastasse o infame comportamento em si, a existência de um corporativismo no ambiente legislativo da República permite que seus pares silenciem de maneira omissa, evitando que as medidas cabíveis sejam aplicadas.

Por essas e por outras que, lá fora, há quem faça pouco da nossa soberania, da nossa democracia, do nosso Estado de Direito, da nossa cidadania. Como se o Brasil fosse um verdadeiro zero à esquerda, na geopolítica do mundo. Consequência infame do viralatismo irremediável exercido por uns e outros.

E por quê isso acontece? Porque o topo da pirâmide social brasileira, na qual estão presentes os representantes político-partidários, não aceita quaisquer mudanças no status quo do país. Não importa que esses indivíduos se sujeitem à mais abjeta subserviência, em relação a outro país. Se eles puderem garantir suas regalias, privilégios, influências e poderes, no ambiente interno, tudo bem.

O que significa que essa é uma luta para a manutenção do imobilismo social, das desigualdades socioeconômicas, do conservadorismo sociocultural, enfim... Em suma, o que querem esses indivíduos é uma neocolonização brasileira e para isso, estão criando todo tipo de estratégia para oferecer o país, de bandeja, aos EUA.

Aliás, sobre esse tipo de comportamento, o antropólogo Darcy Ribeiro traz uma reflexão importante: “Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros” (O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995). Assim, o topo da pirâmide brasileira se apropria do país e passa a decidir sobre seus rumos, à revelia do que pensa ou almeja o restante da população.

Se não prestarmos bastante atenção, ao que acontece bem diante do nosso nariz, esse projeto neocolonialista pode sim, se efetivar. Aí, então, “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador” (Eduardo Galeano), porque estaremos a perpetuar o fato de que “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos” (Eduardo Galeano). Afinal, “Temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio bastante parecido com estupidez” (Eduardo Galeano).

quinta-feira, 13 de março de 2025

A reflexão e o respeito


A reflexão e o respeito

 

Por Alessandra Leles Rocha 

 

Enquanto seres humanos, nada deveria nos separar. Sobretudo, decisões de foro íntimo e pessoal, como é o caso da religião. Aliás, em plena contemporaneidade, quando a discussão da liberdade vive em constante efervescência, do ponto de vista religioso, o Brasil sai na dianteira de muitos países, na medida em que a Constituição Federal de 1988, determina em seu artigo 5º, inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Bom, pelo menos em tese, em relação a essa liberdade de escolha não é preciso se discutir. No entanto, seria de bom tom refletir. Afinal, cada conjunto de princípios, crenças e práticas doutrinárias religiosas, cuja fundamentação se baseia em livros sagrados, possibilita ao indivíduo encontrar ou não o seu alinhamento ideológico, ético e moral, dentro de uma dada religião. Essa não é, portanto, uma decisão que se resume a um rótulo: Cristão, Muçulmano, Espírita, Budista, Protestante, Hindu,... Não, é algo muito mais profundo.

Há tempos venho observando entre certos grupos de seguidores das designações religiosas ligadas ao Cristianismo, um fenômeno de desvirtuamento nas suas práxis religiosas. É importante ressaltar que tais designações, em tese, estão subordinadas   às mesmas escrituras, ao reconhecimento de Jesus como o Cristo, Filho de Deus e Salvador da humanidade. Isso significa que a base da teologia Cristã reside na consciência em um   Reino de Deus, no amor a Deus e ao próximo, no arrependimento, na fé em Cristo, no perdão e na transformação do coração.

Afinal de contas, Jesus Cristo, filho de Deus e a segunda pessoa da Santíssima Trindade, esteve aos cuidados, nesse mundo, de Maria e de José. Nasceu em uma manjedoura, cresceu e viveu até os 33 anos, sob o contexto de uma vida simples e despojada de bens materiais. Porém, as ideias que compartilhava junto ao povo causaram profundo desconforto entre as grandes autoridades religiosas do judaísmo, bem como as autoridades romanas da Palestina. Razão pela qual acabou traído por um de seus discípulos, sendo entregue às autoridades romanas. Foi preso, torturado e crucificado; mas, em momento algum, negou seus princípios, crenças e valores humanos.

Feitas essas breves considerações, retomo a minha observação quanto ao desvirtuamento das práxis cristãs, por certos fiéis e lideranças religiosas. A impressão que se tem é que Jesus empresta seu rosto e seu nome para as designações religiosas ligadas ao Cristianismo; mas, a sua base teológica foi brutalmente corrompida e/ou deturpada à revelia do seu consentimento. As pregações transpiram intolerância sob diferentes formas e conteúdos. Os púlpitos se transformaram em espaços de apologia ao materialismo social e à política. O perdão voltou a ser vendido por muitas igrejas, sob a promessa da prosperidade.  Infelizmente, a deterioração e a deturpação por certas designações religiosas ligadas ao Cristianismo desumanizou a figura do Cristo através da sua monetização. 

Caro (a) leitor (a), no rol das prioridades contemporâneas das religiões Cristãs, Jesus e suas ideias figuram no final da fila. Daqui e dali soam notícias que contrariam a fé em Deus, o amor ao próximo, a compaixão, a honestidade, a justiça, a humildade, a gratidão, o perdão, a caridade, a solidariedade, a tolerância, o respeito, a dignidade humana. Haja vista todos os episódios ofensivos e violentos ocorridos com o Padre Júlio Lancellotti, um dos poucos discípulos de Cristo remanescentes na contemporaneidade brasileira, por seu trabalho como Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua e Pároco da Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em São Paulo. E como dizia Confúcio, pensador e filósofo chinês, “Quem não conhece o valor das palavras não saberá conhecer os homens”.

Escreveu Erasmo de Roterdã, em O Elogio da Loucura, no século XVI, “O cristianismo hoje, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos”. Daí a necessidade imperiosa da reflexão, para não se permitir enredar-se pela espetacularização da religião. Não se deve banalizar e, nem tampouco, brincar com o Sagrado. A escolha por seguir essa ou aquela religião deve ser voluntária e pautada pelo respeito e pela integridade; não, por mero protocolo social ou quaisquer barganhas com o mundo. Por isso, lembre-se: “O lobo talvez mude a pele, mas nunca a alma” (Erasmo de Roterdã 1), ou seja, pertencer a uma designação religiosa não resume, e nem determina, o valor da sua existência.



1 ROTERDÃ, E. de. Adages. Toronto: University of Toronto Press, 1992. 

sábado, 8 de março de 2025

O que querem as mulheres???


O que querem as mulheres???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O que querem as mulheres? Decidi começar a minha reflexão por essa pergunta; pois, ela me causa um profundo desconforto. Paira no ar uma sensação de materialismo, como se as mulheres fossem despojadas da sua natureza humana e, portanto, só pudessem almejar pelo material.

Entretanto, tal perspectiva destoa completamente da realidade. Basta um pouco de atenção, para descobrir que respeito pode sim, ser o ponto de partida para se conhecer as ambições femininas.  São tantas as camadas que revestem o desrespeito às mulheres, que nada mais faz sentido.

O pior é que estamos tratando de uma questão histórica. Ao serem objetificadas, desde sempre, as mulheres foram alijadas da sua condição humana para serem tratadas como um bem de natureza material da família. Sem direito a vez e a voz. Aviltadas na sua dignidade. Parte, então, desse desrespeito, um processo de reverberação das violências, ou seja, física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.   

A ausência, cada vez mais frequente, de respeito às mulheres é decorrência de um padrão comportamental replicado ao longo das gerações. E a razão disso acontecer é simples. A objetificação não só silenciou a mulher, como obstaculizou a sua participação social em pé de igualdade com os homens. Assim, eles não precisavam dividir os espaços de poder com as mulheres.

Diante desse processo de lançá-las à condição de objeto, de coisa, eles puderam garantir o seu status quo na sociedade. Contudo, essa realidade veio sofrendo transformações profundas ao longo do tempo. Lenta e gradativamente, as mulheres vêm se apropriando do seu protagonismo, da sua identidade, e ampliando a sua participação na dinâmica do mundo.

Acontece que esse processo não chegou distante das tensões e das insatisfações masculinas. Aceitar tais mudanças parece incômodo demais para muitos. De modo que o desrespeito ganhou contornos mais exacerbados, em plena contemporaneidade. Tudo o que as mulheres se propõem a realizar é submetido a um nível de escrutínio público, altamente extenuante. Há sempre um senão. Elas dificilmente são reconhecidas no seu talento, na sua competência, na sua capacidade.

E para isso, são utilizadas estratégias diversas de invisibilidade, de desqualificação, de inferiorização, de preconceito. Como se pudessem construir justificativas que ofuscassem quaisquer possibilidades de contestação por desrespeito. Ora, o desrespeito não se apaga dos contextos. Ele não desaparece por mera justificativa. Porque ele se multiplica indiscriminadamente na sociedade. São milhares de casos por dia.

Não é à toa que o assédio moral, sexual e/ou psicológico, nos mais diferentes ambientes da sociedade, dão materialidade ao desrespeito às mulheres. O que significa que, apesar de todos os seus esforços e lutas para se tornarem protagonistas da sua história, na verdade, elas permanecem tão objetificadas quanto no tempo das cavernas. Sim, porque as violências contemporâneas não são menos ofensivas e brutais.

Infelizmente, “Temos um mundo cheio de mulheres que não conseguem respirar livremente porque estão condicionadas demais a assumir formas que agradem aos outros” (Chimamanda Ngozi Adichie). Em uma tentativa desesperada de evitar o desrespeito e suas terríveis consequências. Contudo, isso não adianta. Nem tampouco muda o fato de que “A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos” (Chimamanda Ngozi Adichie).

Ah, não se engane em pensar que o desrespeito só chega pelas mãos dos homens! O desrespeito também aponta para a falta de sororidade, ou seja, o sentimento que une mulheres por uma rede de solidariedade, empatia, proteção e companheirismo. Muitas não se dão conta de que “A linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas crenças, de nossos pressupostos” (Chimamanda Ngozi Adichie), e saem, por aí, legitimando o discurso de certos homens.

Por isso, o melhor presente para uma mulher é o respeito. 365 dias por ano. Um respeito comunicado em atos e palavras. Um respeito que abraça, que acolhe, que a faz sentir importante. Um respeito que nutre as suas emoções e sentimentos. Lembre-se de que “Nada é mais depreciável que o respeito baseado no medo” (Albert Camus). Já dizia Santo Agostinho, “Na essência somos iguais, nas diferenças nos respeitamos”; visto que, não há razão para não ser assim.