segunda-feira, 1 de abril de 2024

O remédio e o veneno. Um olhar contemporâneo sobre a saúde da humanidade.


O remédio e o veneno. Um olhar contemporâneo sobre a saúde da humanidade.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desde o século XVIII, o mundo vive às voltas com o liberalismo econômico e seus impactos terríveis e inevitáveis sobre a vida do cidadão comum. E por conta desse ideário capitalista, milhões de brasileiros foram, mais uma vez, surpreendidos pelo reajuste, em até 4,5%, dos medicamentos, a partir de ontem 1.

A autorização foi concedida pela Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), ligada à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). E já deveríamos estar acostumados com tantos reajustes daqui e dali. Há sempre uma justificativa para respaldá-los, dentro da lógica do mercado.

Mas, o que surpreende é o modo como os processos acontecem. Vejam, ontem, foi domingo de Páscoa. Desde quinta-feira da semana passada, milhares de brasileiros estavam com sua atenção voltada para esse feriado religioso. Aí, em plena segunda-feira, a novidade amarga recai sobre a consciência do cidadão.  

Não sei se há uma dose de escárnio ou de pura perversidade, nesse tipo de atitude antiética. Sobretudo, considerando o flagrante envelhecimento populacional mundial. Segundo os dados do Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “o total de pessoas com 65 anos ou mais no país (22.169.101) chegou a 10,9% da população, com alta de 57,4% frente a 2010, quando esse contingente era de 14.081.477, ou 7,4% da população” 2.

Ora, esse é um detalhe crucial nesse contexto. Ainda que a expectativa de vida e qualidade da saúde dos idosos tenha melhorado, em razão de todo o desenvolvimento científico e tecnológico nas ciências médicas, o Brasil continua marcado por um conjunto de desigualdades socioeconômicas atrozes.

Mesmo com a existência de políticas públicas, tais como o Programa Farmácia Popular 3 e o Programa de Saúde da Família 4, muitos cidadãos permanecem distantes aos mesmos ou de ter o acesso a medicamentos e tratamentos que atendam integralmente as suas demandas.

No caso do Programa Farmácia Popular, o governo federal, por exemplo, “disponibiliza medicamentos gratuitos para o tratamento de diabetes, asma, hipertensão, e a partir de junho de 2023, também para osteoporose e anticoncepcionais. O programa também oferece medicamentos de forma subsidiada para dislipidemia, rinite, doença de Parkinson, glaucoma e fraldas geriátricas. Nesses casos, o Ministério da Saúde paga parte do valor dos medicamentos (até 90% do valor de referência tabelado) e o cidadão paga o restante, de acordo com o valor praticado pela farmácia. Ao todo, o Farmácia Popular contempla o tratamento para 11 doenças” 5.

Mas, apesar do esforço governamental, em diferentes países, a humanidade vive a realidade de um amplo e múltiplo adoecimento, o qual ultrapassa as possibilidades de caber numa mínima e restrita lista de patologias.

E com o cidadão brasileiro não é diferente! Em muitos casos, ele não tem outra escolha senão pagar, por conta própria, por medicamentos e tratamentos, em razão da gravidade e urgência.  O que significa que qualquer aumento, por mínimo que se apresente, repercute diretamente no seu orçamento cotidiano.

No caso específico da população idosa, ela de fato tem que manejar, da melhor maneira possível, os seus recursos, para não comprometer a dignidade da sua sobrevivência. Afinal, se muitos deles são aposentados, outros dependem diretamente da família.

Aliás, é importante ressaltar que “existem no Brasil 23.034.648 aposentados. Desse total, 11.238.991 são homens e 11.795.657 são mulheres, segundo dados extraídos do Sistema Único de Informações de benefício (Suibe)” 6.

Portanto, queiram ou não admitir, a realidade contemporânea, aqui e no mundo, está impondo a necessidade de reavaliação das conjunturas, das práxis, dos comportamentos, em nome de uma saúde verdadeiramente humanizada.

Isso significa que todos os atores envolvidos nesse processo, seja direta ou indiretamente, precisam embasar a sua participação em parâmetros de qualidade, de estrutura e de ética. A monetização e a mercantilização não podem sobrepor a humanização; visto que, o ser humano é o ponto de partida de qualquer discussão sobre saúde.

De modo que o indivíduo não pode ser desumanizado, despido da sua dignidade, em nenhuma hipótese, a fim de que só os interesses econômicos sejam preservados. Doenças novas, raras, antigas, epidemias, pandemias, estão surgindo a todo instante e adoecendo pessoas, em todo o planeta.

Com elas chega, também, a terrível realidade de tratamentos caríssimos e distantes, muitas vezes, da oferta pelos serviços públicos e planos privados. Nem mesmo, a judicialização dos casos, torna-se uma garantia de atendimento.

Então, quando pensamos na dinâmica dos reajustes dos medicamentos, na verdade, precisamos abrir espaço para uma reflexão ainda mais profunda. Afinal, estamos cada vez mais próximos desse limite muito tênue em relação à necropolítica.

O que, segundo Michel Foucault, com base na ideia de biopoder e em todas as tecnologias de controle populacional, é o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer.

De modo que tudo isso representa um importante indicativo para nos debruçarmos sobre uma reavaliação da compreensão ética, moral e social contemporânea; particularmente, em relação ao verdadeiro valor atribuído à preservação da nossa espécie.