O remédio
e o veneno. Um olhar contemporâneo sobre a saúde da humanidade.
Por Alessandra
Leles Rocha
Desde o século XVIII, o mundo
vive às voltas com o liberalismo econômico e seus impactos terríveis e inevitáveis
sobre a vida do cidadão comum. E por conta desse ideário capitalista, milhões
de brasileiros foram, mais uma vez, surpreendidos pelo reajuste, em até 4,5%,
dos medicamentos, a partir de ontem 1.
A autorização foi concedida pela
Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), ligada à Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária). E já deveríamos estar acostumados com tantos
reajustes daqui e dali. Há sempre uma justificativa para respaldá-los, dentro
da lógica do mercado.
Mas, o que surpreende é o modo
como os processos acontecem. Vejam, ontem, foi domingo de Páscoa. Desde quinta-feira
da semana passada, milhares de brasileiros estavam com sua atenção voltada para
esse feriado religioso. Aí, em plena segunda-feira, a novidade amarga recai
sobre a consciência do cidadão.
Não sei se há uma dose de
escárnio ou de pura perversidade, nesse tipo de atitude antiética. Sobretudo,
considerando o flagrante envelhecimento populacional mundial. Segundo os dados
do Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), “o total de pessoas com 65 anos ou mais no país (22.169.101) chegou
a 10,9% da população, com alta de 57,4% frente a 2010, quando esse contingente
era de 14.081.477, ou 7,4% da população” 2.
Ora, esse é um detalhe crucial
nesse contexto. Ainda que a expectativa de vida e qualidade da saúde dos idosos
tenha melhorado, em razão de todo o desenvolvimento científico e tecnológico nas
ciências médicas, o Brasil continua marcado por um conjunto de desigualdades socioeconômicas
atrozes.
Mesmo com a existência de
políticas públicas, tais como o Programa Farmácia Popular 3
e o Programa de Saúde da Família 4, muitos
cidadãos permanecem distantes aos mesmos ou de ter o acesso a medicamentos e tratamentos
que atendam integralmente as suas demandas.
No caso do Programa Farmácia
Popular, o governo federal, por exemplo, “disponibiliza medicamentos gratuitos
para o tratamento de diabetes, asma, hipertensão, e a partir de junho de 2023,
também para osteoporose e anticoncepcionais. O programa também oferece medicamentos
de forma subsidiada para dislipidemia, rinite, doença de Parkinson, glaucoma e
fraldas geriátricas. Nesses casos, o Ministério da Saúde paga parte do valor
dos medicamentos (até 90% do valor de referência tabelado) e o cidadão paga o
restante, de acordo com o valor praticado pela farmácia. Ao todo, o Farmácia
Popular contempla o tratamento para 11 doenças” 5.
Mas, apesar do esforço
governamental, em diferentes países, a humanidade vive a realidade de um amplo
e múltiplo adoecimento, o qual ultrapassa as possibilidades de caber numa mínima
e restrita lista de patologias.
E com o cidadão brasileiro não é
diferente! Em muitos casos, ele não tem outra escolha senão pagar, por conta
própria, por medicamentos e tratamentos, em razão da gravidade e urgência. O que significa que qualquer aumento, por
mínimo que se apresente, repercute diretamente no seu orçamento cotidiano.
No caso específico da população
idosa, ela de fato tem que manejar, da melhor maneira possível, os seus
recursos, para não comprometer a dignidade da sua sobrevivência. Afinal, se muitos
deles são aposentados, outros dependem diretamente da família.
Aliás, é importante ressaltar que
“existem no Brasil 23.034.648 aposentados. Desse total, 11.238.991 são
homens e 11.795.657 são mulheres, segundo dados extraídos do Sistema Único de
Informações de benefício (Suibe)” 6.
Portanto, queiram ou não admitir,
a realidade contemporânea, aqui e no mundo, está impondo a necessidade de
reavaliação das conjunturas, das práxis, dos comportamentos, em nome de uma
saúde verdadeiramente humanizada.
Isso significa que todos os
atores envolvidos nesse processo, seja direta ou indiretamente, precisam embasar
a sua participação em parâmetros de qualidade, de estrutura e de ética. A monetização
e a mercantilização não podem sobrepor a humanização; visto que, o ser humano é
o ponto de partida de qualquer discussão sobre saúde.
De modo que o indivíduo não pode
ser desumanizado, despido da sua dignidade, em nenhuma hipótese, a fim de que
só os interesses econômicos sejam preservados. Doenças novas, raras, antigas, epidemias,
pandemias, estão surgindo a todo instante e adoecendo pessoas, em todo o
planeta.
Com elas chega, também, a terrível
realidade de tratamentos caríssimos e distantes, muitas vezes, da oferta pelos serviços
públicos e planos privados. Nem mesmo, a judicialização dos casos, torna-se uma
garantia de atendimento.
Então, quando pensamos na dinâmica
dos reajustes dos medicamentos, na verdade, precisamos abrir espaço para uma
reflexão ainda mais profunda. Afinal, estamos cada vez mais próximos desse
limite muito tênue em relação à necropolítica.
O que, segundo Michel Foucault, com
base na ideia de biopoder e em todas as tecnologias de controle populacional, é
o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer.
De modo que tudo isso representa
um importante indicativo para nos debruçarmos sobre uma reavaliação da
compreensão ética, moral e social contemporânea; particularmente, em relação ao
verdadeiro valor atribuído à preservação da nossa espécie.