sábado, 13 de agosto de 2022

O depois da Carta...


O depois da Carta...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Passado o impacto da leitura da Carta à Democracia, ocorrida em diversas cidades brasileiras e no exterior, no último dia 11 de agosto, a efervescência das análises políticas emergiu, traçando perspectivas interessantes e relevantes em alguns casos; mas, também, deixando a desejar quanto à sua profundidade e precisão, em outros. Afinal, todos querem encontrar a medida exata desse acontecimento para os rumos do pleito eleitoral de 2022. Especialmente, no que diz respeito às camadas mais populares.

E foi aí, que percebi um afloramento preconceituoso despontando em muitas frentes. Começando por desqualificar as diferentes perspectivas de interesse em relação à Carta, como se a subjetividade conceitual presente nela não pudesse ser capaz de tocar e permitir quaisquer reflexões, por parte das parcelas menos favorecidas e privilegiadas da população. Como se as suas decisões eleitorais viessem a ser tomadas estritamente pelo ponto de vista das necessidades imediatas do cotidiano, sobretudo no campo financeiro.

Concordo que as velhas práxis do “voto de cabresto” ainda existam no país, repaginadas por outras formas e conteúdos. É claro que a miséria, a fome e as carências sociais pesam na tomada de decisões de muita gente, Brasil afora. No entanto, não se pode lançar sumariamente esses indivíduos a um poço de ignorância e incapacidade reflexiva, porque isso não é verdade. E se muito daquilo que foi escrito e lido nas Cartas à Democracia foge da simplicidade e do conhecimento que está ao seu alcance, em contrapartida eles conseguem sim, estabelecer a importância da liberdade, da escolha, da participação popular.

Simplesmente, porque essas questões lhes são muito caras no seu cotidiano. Haja vista como elas se posicionam quando feridas de algum modo na sua cidadania. Como fazem ouvir seus clamores, sua indignação, diante das barbáries, das violências, das insuficiências cotidianas.

As camadas populares do século XXI não são as mesmas do século XVII, XVIII, XIX ou XX. A duras penas elas avançaram contra a desinformação, a incultura, o obscurantismo social, principalmente, graças ao advento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). De modo que, se não conhecem plena e profundamente seus direitos, conhecem mais do que muitos por aí possam supor.

Vamos e convenhamos, as Cartas também não foram pensadas a priori para promover alterações diretas no cenário eleitoral. Indiretas, talvez. Daí o fato de não conseguirem, de maneira plena, se agregar substancialmente a essas camadas não ser tão ruim como alguns vêm colocando. É preciso olhar além desse horizonte, e perceber que a discussão Democrática não se condiciona ao academicismo ou a teorização para mostrar a sua força social.

Muito pelo contrário. Independentemente das palavras, a sociedade brasileira nos seus mais diferentes estratos sobrevive, nesses últimos quatro anos, aos solavancos de questões práticas que pulsam freneticamente nas consciências e servem de bússola precisa para mostrar-lhes a necessidade de um caminho que lhes possibilite a redenção.

Mais de 680 mil mortos pela COVID-19 e computando. Mais de 2400 casos de varíola dos macacos e computando. Benesses com prazo de validade limitado ao fim de 2022. Ausência de políticas públicas efetivas. Informalidade e precarização do trabalho. Recrudescimento do déficit habitacional. Abandono e sucateamento da Educação nacional. Desassistência médico-hospitalar e farmacêutica. ...

Essas são algumas das afrontas à Democracia brasileira que não exigem maiores explicações; mas, demandam soluções efetivas que não se vislumbram no horizonte. E as camadas populares sabem disso, porque experimentam o amargor delas todos os dias.

Não sei se este é o fundo do poço brasileiro. Talvez, sim. Talvez, não. Mas, esse patamar já se mostra suficiente para gerar descrédito aos discursos rotos e vãos que se tenta impingir à população.

De modo que é a vivência das mazelas que cortam na própria carne o que vai representar o fiel da balança eleitoral. Esse latejar dolorido do inconsciente coletivo minado pelas perdas, pelas deficiências, pelas carências. Por essa Democracia que não precisa de palavras escritas para ser entendida.

O Brasil é uma colcha de pluralidades para se querer construir uma sociedade homogeneizada em todos os sentidos. Pensar dessa maneira é dar murro em ponta de faca, inutilmente! O fundamental nessa história é que cada um ao seu modo se valha das argumentações certas para construir o seu juízo de valor para o exercício do voto.

E as camadas populares têm sim, total condição de realizar esse movimento! A ausência de regalias e privilégios, de desfavorecimento socioeconômico, não pode mais ser sinônimo de ignorância e de baixa intelectualidade. Isso é um preconceito chulo. É só mais um mecanismo para impossibilitar o lugar de fala dessas pessoas.

Como dizia Darcy Ribeiro, “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”. Infelizmente, ele estava certo! Em pleno século XXI, o país continua a enxergar a sua sociedade como o padrão do século XVI, constituindo fronteiras entre os que podem e os que não podem, os que têm direitos e os que não têm, os que têm voz e os que não têm, os que sabem pensar e os que não sabem.

Bem, a teoria nem sempre se reafirma na prática! Portanto, o que importa é não se furtar em romper as bolhas. Temos que falar, dialogar; mas, sobretudo, ouvir atentamente. Temos que construir pontes de comunicação que se nutram das mais diversas perspectivas sociais. Dar vazão as linguagens verbais e não verbais, na disposição de agregar pontos de vista que, muitas vezes, tendem a passar despercebidos pela força invisível e silenciosa dos preconceitos gestados durante o colonialismo brasileiro.