quarta-feira, 4 de maio de 2022

O medo da verdade


O medo da verdade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Cada dia mais eu me convenço de que não é o medo do desconhecido o que vem cegando a humanidade; mas, o medo que ela tem em admitir os seus próprios erros e fracassos na condução do cotidiano. Por trás das crenças, dos valores, dos comportamentos há sim, uma consciência que determina todas as ações na cena da vida.

Portanto, não há como negar ou fingir que nas suas entrelinhas transpira algo de deteriorado, de mofado, de carcomido, que precisa ser rapidamente descartado. Porém, isso não acontece em razão da ausência de uma coragem genuína que ousa romper definitivamente com certos paradigmas. Ah! As zonas de conforto ... Como parecem quentinhas, aconchegantes, atraentes!

Por isso, elas não impedem a explosão de justificativas desprezíveis, do tipo “Por que mudar se sempre foi assim? ”, que não têm outra função a não ser naturalizar, banalizar ou trivializar, aquilo que, na verdade, não cabe (e nem nunca coube, de fato) nessa condição. Tudo isso para não se permitir enxergar e, por consequência, ter que lidar com certas situações. Um certo toque de pseudoignorância serve sim, como escudo para a inação!

É o caso, por exemplo, do recente frisson causado pelo vazamento de informações da Suprema Corte, nos EUA, a respeito de uma possível reversão do direito constitucional ao aborto, naquele país 1. Pelo fato de se tratar de uma jurisprudência da Suprema Corte e não, de uma lei criada pelo Congresso norte-americano, caso seja revertida tende a abrir um precedente para que outras questões, na mesma situação jurídica, possam eventualmente ter o mesmo fim, o mesmo questionamento. 

Mas, sejamos honestos, que nada disso estaria acontecendo se, simplesmente, a sociedade, por um instante sequer, tivesse se colocado em uma posição de total isenção ideológica e olhado o cidadão pela perspectiva da sua dignidade humana e do seu acesso aos direitos sociais e fundamentais.

Pois é, não haveria essa discussão em nenhum tempo, em nenhum lugar. Pelo simples fato de que a vida na sua totalidade de etapas estaria sendo enaltecida e resguardada no sentido de uma preservação plena, ou seja, desde a concepção até o envelhecimento e a morte. Mas, não é isso o que acontece.

Não haveria razões para se debater sobre a prática do aborto, com exceção das situações individualizadas, nas quais há risco de vida para a mulher por decorrência gestacional, ou a gravidez é consequência de estupro, ou se o feto for anencefálico.  

A discussão que se amplia sobre o aborto emerge, na medida em que os cidadãos percebem que o Estado é incapaz de garantir às atuais e as suas futuras gerações a efetividade do seu bem-estar físico, mental, social, educacional e laboral. Que há falhas gritantes em relação ao princípio da igualdade. Nem todos têm acesso aos seus direitos mais elementares.

Queiram ou não admitir, a verdade é que milhares de crianças e adolescentes nascidas mediante esse desamparo social tendem a se tornar o retrato mais cruel e perverso dos maus tratos, da violência doméstica e sexual, da miséria, do abandono, do consumo e tráfico de drogas e/ou da negligência. Portanto, elas se tornam uma legião de desafortunados que materializam um conjunto de erros e de fracassos que a sociedade lhes impõe à sua revelia.

Não se deixe enganar pelo fato de que os EUA são o país da liberdade, da democracia e das oportunidades. Lá, como em qualquer lugar do planeta, há espaço para as desigualdades sociais e todos os seus desdobramentos e consequências desastrosos.

Há muitos bons filmes tratando dessa realidade, de como tantos absurdos oneram e fomentam o ciclo de desajustamento social, como, por exemplo, “A cor púrpura” (1985), “Vem Dançar” (2006), “Escritores da Liberdade” (2007), “A vida secreta das abelhas” (2008), “Preciosa” (2009) e “O ódio que você semeia” (2018).

Mas, esse é só um exemplo dentre tantos outros, que se multiplicam por aí.  Na última segunda-feira, por exemplo, aqui no Brasil, um “caso de agressão de mulher branca contra uma mulher negra no Metrô de SP foi registrado como injúria racial”.

Elas estavam sentadas no mesmo vagão e a mulher branca  pediu que a mulher negra “tomasse cuidado com o cabelo, pois ‘poderia passar alguma doença’” 2. Pois é, Racismo. Em pleno século XXI. No Brasil. Apesar de muita gente dizer que isso não existe por aqui.

E o que dizer, então, dessa outra notícia: “’Perdi vaga de emprego porque estudei no EJA’: o estigma relatado por quem não completou o ensino na idade regular” 3. De repente, não mais que de repente, essas palavras soam como o mais absoluto escárnio.

Porque, quando consideramos a realidade de um desemprego que atinge 12 milhões de brasileiros e que vocifera amiúde a ausência de mão de obra qualificada, esta é uma frágil justificativa. Pois é, um viés da Aporofobia. Em pleno século XXI. No Brasil. Apesar de muita gente dizer que isso não existe por aqui.

Não adianta negar, de um jeito ou de outro, o ciclo do medo construído pela humanidade escapa ao seu controle e mostra a verdade nua e crua. Revela através da polemização desnecessária de certos assuntos o medo que ela tem em admitir quem realmente é diante da condução do cotidiano, ou seja, toda a sua inação, a sua negligência, o seu descaso, a sua desumanidade.

Aborto, Aporofobia, Xenofobia, Intolerância Religiosa, Sexismo, Misoginia, Homo e Transfobia, Etarismo, Gordofobia, fazem parte desse repertório repetitivo, em todos os lugares, em todos os tempos, porque a humanidade se acovarda em agir de maneira respeitosa, digna e resolutiva para com os seus membros.

Isso explica, de certa forma, porque não importa a existência de leis para mediar os eventuais conflitos que orbitam essas discussões. A questão não é meramente jurídica. Ela é social.  É comportamental. É ideológica. É identitária.

E ninguém se atreve a ir ao cerne do problema que é eliminá-lo, é combatê-lo, é rechaçá-lo, de uma vez por todas. Por isso, a fim de invisibilizar e de silenciar o assunto, essas questões são lançadas ao fogo de uma certa padronização, homogeneização social. Ora, mas, por quê?

Porque na medida em que se estabelecem padrões, rótulos, fórmulas e afins, tudo o que foge disso pode ser considerado uma infração, uma transgressão, aos modos e valores daquilo que, em algum momento da história, se entendeu e se estabeleceu como sendo o ideal para o senso comum.

Trata-se, então, de uma licença impiedosa que a humanidade desenvolveu para destilar os seus ódios, as suas frustrações, as suas deformidades éticas e morais, mais profundas. Para encobrir o medo que habita o mais profundo da sua essência.

Desse modo, ela explica; mas, não justifica. Ela apenas encontra uma legitimação enviesada e estapafúrdia para não ter que agir, não ter que “meter o pé na porta” e deixar a transformação entrar. É mais fácil, mais simples e menos desgastante, permitir que tudo permaneça envolto por uma névoa espessa de hipocrisia, de falsidade em estado bruto.

Mesmo que, lá no fundo do fundo da inconsciência, todos saibam que toda a inconveniência está bem ali, não se desfez como um passe de mágica, não deixou de existir, foi apenas colocada sob o manto da hipocrisia. Razão pela qual as mazelas se cronificam ad aeternum, pelos cenários humanos do mundo. Razão pela qual continua se discutindo mais do mesmo, para não se chegar a lugar algum.