Eu,
Trabalhador
Por
Alessandra Leles Rocha
Certamente, em diversos lugares
do planeta centenas de milhares de pessoas estarão celebrando o Dia do Trabalho.
Para os que não estão, o ato pode parecer pequeno, ou desnecessário, ou sem
sentido.
Estão certos? Estão errados? Para
responder é necessário dissecar as camadas que compõem esse assunto, ir fundo
ao cerne da questão. A começar pelo modo com que a humanidade percebe e se
relaciona com o trabalho.
Olhando para história milenar que
trouxe nas suas páginas a presença constante da escravização, como algo natural
e trivial da desigualdade social, não é de se espantar que o trabalho tenha se
tornado um elemento de inferiorização na sociedade. A correlação é direta:
trabalha quem precisa.
A ideia do trabalho está,
portanto, atrelada diretamente ao servir, à subserviência, à subordinação, à obediência,
a fim de obter meios de garantir a própria sobrevivência.
É claro que, com o passar do
tempo, da evolução social, os trabalhos foram, também, sendo estratificados
socialmente; sobretudo, a partir da necessidade de conhecimentos, habilidades e
competências demandadas para sua realização.
Criou-se, então, uma valoração
materializada pela valorização de sua importância dentro do contexto social. Quanto
mais complexas as atividades profissionais, mais relevantes elas se tornaram. Inclusive,
pelo fato da existência de um contingente menor para supri-las.
No entanto, no fundo, nada disso
muda no âmbito do inconsciente coletivo, a velha ideia do servir, da subserviência,
da subordinação, em relação ao trabalho. Quando se analisa, por exemplo, o
comportamento social em função da sua distribuição entre o público e o privado,
percebe-se que pouca diferença há no trato dos profissionais.
No caso do cenário público,
muitos profissionais são maltratados, humilhados, no exercício do seu ofício
sob a justificativa de serem “pagos com dinheiro
público”, o que os torna “funcionários
da própria população”. Então, não é incomum a exacerbação de um pseudopoder
daqueles que se encontram na posição de utilizar os serviços.
No caso do privado, o que muda é
a justificativa. A máxima de que “o
cliente sempre tem razão” possibilita a muitas pessoas exacerbarem as tais manifestações
de pseudopoder. Além disso, nesses ambientes a facilidade de acesso aos
superiores e chefia, vulnerabiliza, sobremaneira, os profissionais,
colocando-os em constante posição de vigilância e punição.
Ora, mas que raios de pseudopoder
é esse, hein? Onde está escrito esse absurdo? Como se diz na gíria do futebol, “Ninguém joga nas onze, meu amigo! ”. Até
para nascer, o cidadão precisa do outro. De modo que, no cotidiano da vida, é
natural que sejamos uns pelos outros nas mais diferentes circunstâncias.
Ninguém faz tudo sozinho. Olhe para
a sua residência, os seus móveis e utensílios, seus materiais de limpeza, as
suas roupas, os seus calçados, os seus materiais de higiene pessoal, a sua
comida, o seu meio de transporte, ... Pois é, aqui, ali e acolá há milhões de
trabalhadores implícitos.
Gente que você nunca viu, não
sabe quem é, não conhece a história. E você, na sua pose de “último refrigerante do deserto”,
achando que faz e acontece, no mundo, sozinho! Faz não!
Nem precisa olhar no espelho,
para que a sua consciência grite bem alto que você, também, é mais um na legião
dos trabalhadores. Que segue o riscado daquela canção do Chico Buarque, “Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me
sacode às seis horas da manhã [...]” 1.
Lamento, mas você não tem lastro
para pseudopoderes, para fazer pouco de ninguém, para destratar ou ofender
nenhum trabalhador, para julgar quaisquer celebrações, reivindicações e/ou
movimentos de classe, porque você está nesse mesmo barco.
Só uma ínfima; mas, muito ínfima
mesmo, parcela da população, não exerce quaisquer atividades laborais porque se
beneficia e constrói suas redes de regalias e privilégios a partir do trabalho
dos outros. É por isso, que para cada um que você olha de cima para baixo há
pelo menos dois fazendo o mesmo com você. Já pensou nisso?
Sem contar que, apesar dessa dinâmica,
um tanto quanto esquisita, a verdade é que a realidade contemporânea faz todo
mundo temer a perda do seu trabalho. Faz todo mundo entrar em pânico diante dos
números aterrorizantes do desemprego, do desalento, do empobrecimento e da miséria.
Afinal, depois do grande salto da
mecanização, as edições da Revolução Industrial impuseram a tecnologização que
provocou uma redução drástica na necessidade da mão de obra humana. Isso significa
que, se o trabalho “inferioriza” de
muitas maneiras os indivíduos, a ausência dele pode ser fatal à sua sobrevivência.
Daí muitos preferirem o rótulo da
inferiorização, advindo do exercício laboral, seja ele qual for, do que do
cancelamento social gerado pelo desemprego.
Acontece que as atuais conjunturas
globais – tecnologia, pandemia, violências, entre outras - estão extinguindo de
maneira avassaladora as perspectivas de ingresso e sobrevivência no mercado de
trabalho.
Segundo a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), “As
previsões indicam que o desemprego global permanecerá acima dos níveis pré-pandemia
até, pelo menos, 2023. O nível de desemprego para 2022 está estimado em 207 milhões,
comparado com 186 milhões em 2019. O relatório da OIT também alerta que o
impacto geral sobre o emprego é significativamente maior do que o representado
por esses números, uma vez que muitas pessoas deixaram a força de trabalho. Em 2022,
a taxa global de participação da força de trabalho deverá permanecer 1,2 ponto
percentual abaixo da de 2019” 2.
É preciso, urgentemente, mudar o
olhar da humanidade sobre o trabalho, porque, como escreveu George Orwell, “Ver aquilo que temos diante do nariz
requer uma luta constante” 3.
O trabalho não inferioriza ninguém.
Está na inconsciência, na negligência,
no desrespeito da sociedade, todas as atitudes que precarizam e degradam o
trabalho no mundo. Que submetem a diversidade humana às mais terríveis condições
de indignidade laboral, tantas vezes, beirando as práticas análogas à escravidão.
Sim. É imperioso entender, também,
o fato de a sobrevivência ter sido tão intimamente engendrada ao trabalho, a
tal ponto em que as pessoas foram induzidas a viver para e pelo trabalho, sem quaisquer
possibilidades de desfrutar de tudo o que é importante e fundamental para a sua
condição humana.
Engana-se quem pensa que só a
legislação trabalhista vem sendo dilapidada e desconstruída. Não. O trabalhador
vem perdendo a sua saúde física e mental, o seu bem-estar social, a qualidade
da sua alimentação, o seu tempo de lazer e de prática desportiva, o seu
desenvolvimento cultural, o seu aprimoramento educacional.
Nesse sentido, ainda que
recebesse atenção do empregador, de que adiantaria? Ele está cada vez mais
sobrecarregado, cansado, esgotado, exaurido. Para dar conta do recado, dos
compromissos econômicos e financeiros do cotidiano, ele precisa se desdobrar em
muitas atividades laborais. Ele vive no limite. No limite de todos os aspectos
que compõem a sua sobrevivência.
Como escreveu Bertolt Brecht, “Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua
hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em
frente, seu pão e seu salário. E agora não contentes querem privatizar o conhecimento,
a sabedoria, o pensamento, que só à Humanidade pertence”.
Por isso, toda vez que você ousar
lançar um olhar desdenhoso e cruel sobre um ser humano, um trabalhador, faça a
seguinte reflexão: “Ser pela liberdade não é apenas tirar as correntes de alguém, mas
viver de forma que respeite e melhore a liberdade dos outros” (Nelson Mandela).
1 Cotidiano
(Chico Buarque) - https://www.youtube.com/watch?v=plDmRyYjXgQ
3 ORWELL, G. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.