quarta-feira, 16 de março de 2022

Os filhos e as filhas da diáspora contemporânea


Os filhos e as filhas da diáspora contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A guerra não é só o horror imediato que se expõe diante dos olhos da humanidade. Abaixo da linha de visão existem camadas de uma barbárie inominável a serem decompostas ao longo do tempo. Questões que, muitas vezes, nem passam pela cabeça da maioria das pessoas, em um primeiro momento; mas, posteriormente, irão se revelar na expressão do cotidiano das mazelas humanas.

Ao ler que a notícia de que “Uma criança vira refugiada a cada segundo na Ucrânia” 1, de acordo com informações do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), fiquei pensando em como se dará o futuro dessas gerações e de quantas outras milhões, existem espalhadas pelo planeta, em razão de conflitos armados tão absurdos quanto esse.

Ora, além da sobrevivência ameaçada, que torna necessário o travamento de uma luta, mesmo que inconsciente, pela vida, o que se sucede depois em seus caminhos, também, é um processo de ressignificações identitárias muito profundo e complexo.

A verdade é que estamos diante de milhões de crianças lançadas abruptamente aos braços do imprevisível, por uma ruptura radical com suas bases de desenvolvimento. O que significa perder, total ou parcialmente, as suas referências humanas – pai, mãe, avós, tios (as), primos (as), amigos (as), as suas referências espaciais – casa, escola, cidade; bem como, seus hábitos e costumes sociais.

Acontece que o tempo de reaprendizado, de readaptação, de reconstrução, é individual, na medida em que cada uma delas sente, percebe, compreende, de maneira própria esse processo. Para algumas é mais simples. Para outras é mais difícil.

Sem contar a existência de todos os componentes externos envolvidos, inclusive, do ponto de vista subjetivo presentes nas sociedades que irão acolhê-las. De modo que a forma e o tempo de espera até conseguir esse acolhimento, essa receptividade, interfere diretamente na ressignificação identitária dos refugiados.

Milhares de crianças nessa situação de refúgio encontram-se, por exemplo, em campos de refugiados localizados na África, na Jordânia, na faixa de Gaza (Palestina), na Índia, no Paquistão.

Elas fazem parte de um imenso contingente de seres humanos em profunda vulnerabilidade e desassistência social, dadas as suas origens, o que tende a não lhes permitir uma facilidade de acesso a uma efetiva ressignificação identitária, a partir de um novo território para viver. Ali, elas estão em trânsito, à espera, no aguardo de um sopro de esperança.

E em paralelo a tudo isso, o mundo continua a girar, a promover seu desenvolvimento nos mais diversos campos das Ciências e das Tecnologias e a evoluir em modos e comportamentos, tornando a sociedade cada vez mais high tech e conectada a um conhecimento construído sobre alicerces de pura inovação.  O que nos coloca frente a frente a um gigantesco abismo de desigualdade humana; sobretudo, infantil.

Pois é, dentro do universo das crianças refugiadas também há fronteiras de desigualdade. Aquelas dos campos de refugiados. Aquelas da Guerra na Ucrânia. Cada qual com suas especificidades objetivas e subjetivas. Entretanto, não podemos nos esquecer de que, apesar desses pesares, todas elas fazem parte indistintamente do que chamamos de futuras gerações.

Isso significa que todas precisam ser preparadas em suas habilidades e competências para desempenhar seu papel em um mundo cada vez mais tecnológico, onde os conhecimentos partem e convergem para esse fim.

Mas, por enquanto, quantas já não se encontram à margem da própria escola? Quantas já não apresentam um déficit educacional profundo em razão da sua situação de refugiada? Quantas?

E quanto mais o tempo passa para elas, mais a inacessibilidade aos direitos que sustentam a dignidade humana se consolida. Grande parte dessas futuras gerações de crianças refugiadas caminha rumo à marginalização, a exclusão, a vulnerabilização social na sua fase adulta, porque foram privadas do seu desenvolvimento humano por guerras, conflitos armados, disputas territoriais, intolerância étnico-religiosa e/ou eventos extremos do clima.

E por mais que se tente recuperar a defasagem dessa formação na fase adulta, os resultados acabam, de um jeito ou de outro, ficando abaixo da necessidade, da expectativa mínima.

Afinal, essa realidade bate o martelo sobre a desigualdade humana. Se o mundo high tech, por si só, já impõe uma mudança profunda nas relações de trabalho, reduzindo significativamente as ofertas de emprego para pessoas qualificadas e adaptadas à realidade tecnológica, imagina o que será da vida de quem está na contramão desse processo? Isso é praticamente uma sentença de exclusão social, na qual desloca sumariamente essas pessoas para as camadas de empobrecimento, dada a escassez de oportunidades de emprego e renda melhores e satisfatórias às suas demandas.

Desse modo, a existência de uma seletivização aos refugiados, de modo que alguns sejam melhor aceitos do que outros, no fundo, acaba irrelevante, quando consideramos o fato de que quaisquer deles “simbolizam, personificam nossos medos”, na medida em que “Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles perderam suas casas, perderam seus trabalhos” 2.

Nesse sentido, sua condição real traduz o fato de que “não são famintos, sem pão ou água. São pessoas que, ontem, tinham orgulho de seus lares, de suas posições na sociedade, que, frequentemente, tinham um alto grau de educação e assim por diante. Mas, agora eles são refugiados. E eles vêm para cá. Quem eles encontram aqui? O precarizado. O precarizado vive na ansiedade. No medo. Nós temos pesadelos. Tenho uma ótima posição social e quero mantê-la” (Zygmunt Bauman, 2018 3).

Portanto, a diáspora contemporânea vem sinalizando um acirramento de tempos sombrios para a humanidade, na proporção de outras expectativas quanto a eventuais desdobramentos beligerantes.  O que aponta para a  possibilidade de estarmos diante de uma nova edição da Teoria do Contrato Social 4, que não só relativiza, muito mais, a liberdade do ser humano, as suas escolhas e decisões; mas, destrói o ideário de bem-estar político e social coletivo, restringindo-o a grupos cada vez mais limitados e pouco representativos, que passam a se julgar no direito de atuar com demasiada opressão sobre os outros.  



1 https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/03/4993265-uma-crianca-vira-refugiada-a-cada-segundo-na-ucrania-afirma-unicef.html

2 https://www.fronteiras.com/artigos/zygmunt-bauman-o-medo-dos-refugiados#:~:text=Estas%20pessoas%20que%20est%C3%A3o%20vindo,E%20eles%20v%C3%AAm%20para%20c%C3%A1.

3 Idem 2.

4 https://www.politize.com.br/contrato-social/