O
pior dos venenos é ... a cobiça.
Por
Alessandra Leles Rocha
É uma pena que o legislativo
federal brasileiro esteja entregue a uma discussão tão descabida como essa que
pretende alterar a legislação sobre os agrotóxicos no país. Independentemente da
nomenclatura dada a esses compostos – agrotóxicos, pesticidas, defensivos
agrícolas, praguicidas, biocidas, agroquímicos, produtos fitofarmacêuticos ou
fitossanitários -, a questão é que o nível de discussão para uma tomada de
decisões a respeito de usá-los (ou não) acontece muito aquém do que realmente
importa.
Criados durante a Primeira Guerra
Mundial, na verdade, eles só tiveram o seu potencial como defensivos agrícolas
ao final da Segunda Grande Guerra. Até então, eles haviam sido usados como
armas químicas, portanto, reconhecidamente nocivos à saúde humana. O primeiro
produto utilizado em larga escala foi o DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano), responsável
por auxiliar significativamente no combate ao mosquito transmissor da Malária. Trata-se
de um composto da classe dos organoclorados, o qual, através de estudos
posteriores, mostrou uma capacidade de bioacumulação no organismo humano tão
grave que pode resultar em efeitos teratogênicos e cancerígenos.
Mas, como sempre acontece nas
disputas entre o Bem e o Mal, essas informações vieram sendo invisibilizadas
para favorecer os interesses econômicos, não importando o preço a ser pago
tanto pela população quanto pelo Meio Ambiente. De modo que outras classes de
agrotóxicos foram sendo desenvolvidas e incorporadas à lista de utilização no
campo da agricultura, a fim de evitar os ataques de diferentes insetos,
roedores, fungos e outros microorganismos.
Acontece que o uso indiscriminado
desses produtos, ao contrário de beneficiar uma possível elevação de
produtividade, ele sempre esbarrou no efeito comum aos compostos químicos que é
a construção de mecanismos de resistência. Algo que não foi percebido ou
amplamente divulgado, porque as empresas produtoras diante do menor sinal de
baixa da produtividade em razão de resistência das pragas aos produtos, já se
colocava a produzir defensivos ainda mais potentes e perigosos.
É o caso, por exemplo, de um herbicida
sistêmico de amplo espectro à base de glifosato, muito utilizado em lavouras de
soja. A empresa produtora do mesmo chegou, inclusive, a desenvolver sementes
que se transformam em plantas geneticamente modificadas para serem tolerantes
ao glifosato. E embora o fabricante tenha consciência de que há risco à saúde humana
e ambiental, quando não seguidas as orientações de rótulo, a impossibilidade de
controle nesse sentido expõe pessoas e animais a um nível de toxicidade letal
aguda ou por bioacumulação. Há relatos de que esse produto tenha causado
mortalidade significativa de abelhas quando suas colmeias foram atingidas por
pulverização.
Daí a necessidade de entender que
fora dos ambientes regulados e controlados dos laboratórios de ciência e
tecnologia, as pesquisas no campo da agrociência correm o risco de transitar
vulneráveis diante de variáveis de difícil controle, tais como o ar, a água, o
relevo, espécies animais nativas de uma dada região, enfim. E para mitigar
esses efeitos, na maioria das vezes, quando aplicada em campo essas substâncias
são empregadas em quantidades elevadas e em periodicidade mais amiúde.
Portanto, esses produtos acabam se dispersando além do próprio alvo e causando
desdobramentos e consequências severas ao ambiente e a população direta ou
indiretamente exposta a eles.
É ingenuidade acreditar que uma
boa lavagem dos produtos alimentícios, antes do consumo, é o suficiente para
bloquear os efeitos dos agrotóxicos. Não, eles penetram pelas cascas e se
acumulam no interior de frutas, legumes, verduras, sementes, e em alguns casos,
sob o efeito de altas temperaturas durante o cozimento, são dispersadas em
subprodutos com potencial ainda mais tóxico. Não é à toa que nas últimas décadas
as respostas intolerantes a diversos alimentos têm se mostrado recorrentes na
população mundial. Reações alérgicas. Distúrbios gastrointestinais. Determinados
tumores. Doenças neurodegenerativas. Cuja precisão diagnóstica, da causa
objetiva da patologia, é difícil em razão da complexidade química envolvida
nesses produtos.
Mas, a Ciência tem se debruçado
sobre esse assunto e trazido à luz de todos, resultados elucidativos
importantes a esse respeito, os quais coadunam com a percepção visível de que há
um movimento de adoecimento populacional em curso; sobretudo, em regiões de cinturões
agrícolas importantes. Afinal de contas, quanto mais próximos e expostos aos
efeitos desses agrotóxicos sobre os produtos produzidos e sobre os recursos
naturais que deram suporte ao seu desenvolvimento, mais acentuadas são as consequências
nocivas e mais expressivas as estatísticas comprobatórias da relação
contaminação/doença.
Pois é, se tivéssemos prestado
atenção ao fiasco do DDT contra a Malária... Afinal, ela continua por aí, firme
e forte. Só em 2021, foram 241 milhões de casos e 627 mil óbitos 1. Considerando a América do Sul, por
conta da vasta cobertura de floresta tropical, Brasil, Colômbia e Venezuela representam
77% dos casos nas Américas 2. Por sorte,
a primeira vacina para a doença foi aprovada pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), no ano passado, depois de mais de três décadas de intensa pesquisa. O
objetivo a princípio é conter a mortalidade infantil 3.
Mas, não bastasse isso, tantos
agrotóxicos na linha de frente para defender o aumento da produtividade agrícola
e não erradicamos a fome e a miséria no mundo. Não só porque os alimentos
consumidos se tornaram dispersores cada vez mais importantes desses compostos químicos.
Grãos, vegetais, leite, ovos, carnes, tudo tem um traço de agrotóxico presente.
Seja pela água que irrigou as produções. Seja pelo ar que não reconhece fronteiras
e nem limites para trafegá-los. Seja
pelo solo que absorve os volumes dos resíduos e constitui camadas deles, ao
longo do tempo, as quais são absorvidas pelas raízes de toda uma flora
presente. Portanto, um ciclo contínuo de incorporação química nos organismos.
Como, também, porque os
agrotóxicos são produtos caríssimos que movimentam uma indústria de bilhões de
dólares, em razão dos royalties e dos
processos de importação envolvidos na aquisição de muitos deles. O que aponta
para um outro aspecto importante que diz respeito aos grandes latifúndios, ou seja, os sistemas agrícolas de monocultura de commodities. Só eles têm os recursos suficientes para sustentar uma
cadeia de produção que utiliza os agrotóxicos em larga escala e consegue
absorver as tecnologias desenvolvidas nesse setor agroquímico.
Assim, tendo em vista que as commodities agrícolas são a base da
economia nacional desde o período colonial, pois representam um ativo
financeiro fundamental para o equilíbrio da balança comercial, o próprio governo
constrói mecanismos para acomodar os interesses do setor; mesmo, contrariando o
bem-estar, a segurança, a qualidade socioambiental e a nova visão de
sustentabilidade do agronegócio.
De modo que essa pretensão em alterar
a legislação sobre os agrotóxicos no país, de saída, já se desarticula por
completo do marco estratégico da Organização das Nações Unidas para a Alimentação
e a Agricultura (FAO), 2022-2031, o qual contempla a visão de “um mundo sustentável no qual todas as
pessoas tenham segurança alimentar, no contexto da Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável, ou seja, melhor produção, melhor nutrição, melhor
ambiente, melhor qualidade de vida” 4.
O posicionamento brasileiro,
portanto, não deixa dúvidas sobre as suas intenções, ou seja, permanecer
confortável nos vieses do seu atraso histórico. Aliás, como apontaram os dados
de 2021, da Organização das Nações Unidas (ONU), “US$470 bilhões de recursos destinados à produção agropecuária no mundo
são responsáveis por ‘distorcer preços e causar danos ao meio ambiente e à
sociedade’” 5, e o Brasil, pelo
menos em tese, quer continuar sendo parte integrante desse jogo equivocado, custe o que custar.
Assim, resta saber se ele já
combinou isso com os seus parceiros comerciais ou é apenas mais um fruto exótico
da sua imaginação. Caso contrário, o resultado seria catastrófico para a
economia que já não anda muito bem! Não nos esqueçamos de que o pior dos
venenos é ... a cobiça.
1 https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-12/relatorio-contabiliza-241-milhoes-de-casos-de-malaria-no-mundo-em-2020
2 https://www.cnnbrasil.com.br/saude/brasil-colombia-e-venezuela-acumulam-77-dos-casos-de-malaria-nas-americas/