quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O pior dos venenos é ... a cobiça.


O pior dos venenos é ... a cobiça.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É uma pena que o legislativo federal brasileiro esteja entregue a uma discussão tão descabida como essa que pretende alterar a legislação sobre os agrotóxicos no país. Independentemente da nomenclatura dada a esses compostos – agrotóxicos, pesticidas, defensivos agrícolas, praguicidas, biocidas, agroquímicos, produtos fitofarmacêuticos ou fitossanitários -, a questão é que o nível de discussão para uma tomada de decisões a respeito de usá-los (ou não) acontece muito aquém do que realmente importa.

Criados durante a Primeira Guerra Mundial, na verdade, eles só tiveram o seu potencial como defensivos agrícolas ao final da Segunda Grande Guerra. Até então, eles haviam sido usados como armas químicas, portanto, reconhecidamente nocivos à saúde humana. O primeiro produto utilizado em larga escala foi o DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano), responsável por auxiliar significativamente no combate ao mosquito transmissor da Malária. Trata-se de um composto da classe dos organoclorados, o qual, através de estudos posteriores, mostrou uma capacidade de bioacumulação no organismo humano tão grave que pode resultar em efeitos teratogênicos e cancerígenos.

Mas, como sempre acontece nas disputas entre o Bem e o Mal, essas informações vieram sendo invisibilizadas para favorecer os interesses econômicos, não importando o preço a ser pago tanto pela população quanto pelo Meio Ambiente. De modo que outras classes de agrotóxicos foram sendo desenvolvidas e incorporadas à lista de utilização no campo da agricultura, a fim de evitar os ataques de diferentes insetos, roedores, fungos e outros microorganismos.

Acontece que o uso indiscriminado desses produtos, ao contrário de beneficiar uma possível elevação de produtividade, ele sempre esbarrou no efeito comum aos compostos químicos que é a construção de mecanismos de resistência. Algo que não foi percebido ou amplamente divulgado, porque as empresas produtoras diante do menor sinal de baixa da produtividade em razão de resistência das pragas aos produtos, já se colocava a produzir defensivos ainda mais potentes e perigosos.

É o caso, por exemplo, de um herbicida sistêmico de amplo espectro à base de glifosato, muito utilizado em lavouras de soja. A empresa produtora do mesmo chegou, inclusive, a desenvolver sementes que se transformam em plantas geneticamente modificadas para serem tolerantes ao glifosato. E embora o fabricante tenha consciência de que há risco à saúde humana e ambiental, quando não seguidas as orientações de rótulo, a impossibilidade de controle nesse sentido expõe pessoas e animais a um nível de toxicidade letal aguda ou por bioacumulação. Há relatos de que esse produto tenha causado mortalidade significativa de abelhas quando suas colmeias foram atingidas por pulverização.  

Daí a necessidade de entender que fora dos ambientes regulados e controlados dos laboratórios de ciência e tecnologia, as pesquisas no campo da agrociência correm o risco de transitar vulneráveis diante de variáveis de difícil controle, tais como o ar, a água, o relevo, espécies animais nativas de uma dada região, enfim. E para mitigar esses efeitos, na maioria das vezes, quando aplicada em campo essas substâncias são empregadas em quantidades elevadas e em periodicidade mais amiúde. Portanto, esses produtos acabam se dispersando além do próprio alvo e causando desdobramentos e consequências severas ao ambiente e a população direta ou indiretamente exposta a eles.

É ingenuidade acreditar que uma boa lavagem dos produtos alimentícios, antes do consumo, é o suficiente para bloquear os efeitos dos agrotóxicos. Não, eles penetram pelas cascas e se acumulam no interior de frutas, legumes, verduras, sementes, e em alguns casos, sob o efeito de altas temperaturas durante o cozimento, são dispersadas em subprodutos com potencial ainda mais tóxico. Não é à toa que nas últimas décadas as respostas intolerantes a diversos alimentos têm se mostrado recorrentes na população mundial. Reações alérgicas. Distúrbios gastrointestinais. Determinados tumores. Doenças neurodegenerativas. Cuja precisão diagnóstica, da causa objetiva da patologia, é difícil em razão da complexidade química envolvida nesses produtos.

Mas, a Ciência tem se debruçado sobre esse assunto e trazido à luz de todos, resultados elucidativos importantes a esse respeito, os quais coadunam com a percepção visível de que há um movimento de adoecimento populacional em curso; sobretudo, em regiões de cinturões agrícolas importantes. Afinal de contas, quanto mais próximos e expostos aos efeitos desses agrotóxicos sobre os produtos produzidos e sobre os recursos naturais que deram suporte ao seu desenvolvimento, mais acentuadas são as consequências nocivas e mais expressivas as estatísticas comprobatórias da relação contaminação/doença.

Pois é, se tivéssemos prestado atenção ao fiasco do DDT contra a Malária... Afinal, ela continua por aí, firme e forte. Só em 2021, foram 241 milhões de casos e 627 mil óbitos 1. Considerando a América do Sul, por conta da vasta cobertura de floresta tropical, Brasil, Colômbia e Venezuela representam 77% dos casos nas Américas 2. Por sorte, a primeira vacina para a doença foi aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano passado, depois de mais de três décadas de intensa pesquisa. O objetivo a princípio é conter a mortalidade infantil 3.

Mas, não bastasse isso, tantos agrotóxicos na linha de frente para defender o aumento da produtividade agrícola e não erradicamos a fome e a miséria no mundo. Não só porque os alimentos consumidos se tornaram dispersores cada vez mais importantes desses compostos químicos. Grãos, vegetais, leite, ovos, carnes, tudo tem um traço de agrotóxico presente. Seja pela água que irrigou as produções. Seja pelo ar que não reconhece fronteiras e nem limites para trafegá-los.  Seja pelo solo que absorve os volumes dos resíduos e constitui camadas deles, ao longo do tempo, as quais são absorvidas pelas raízes de toda uma flora presente. Portanto, um ciclo contínuo de incorporação química nos organismos.

Como, também, porque os agrotóxicos são produtos caríssimos que movimentam uma indústria de bilhões de dólares, em razão dos royalties e dos processos de importação envolvidos na aquisição de muitos deles. O que aponta para um outro aspecto importante que diz respeito aos grandes latifúndios, ou seja, os sistemas agrícolas de monocultura de commodities. Só eles têm os recursos suficientes para sustentar uma cadeia de produção que utiliza os agrotóxicos em larga escala e consegue absorver as tecnologias desenvolvidas nesse setor agroquímico.

Assim, tendo em vista que as commodities agrícolas são a base da economia nacional desde o período colonial, pois representam um ativo financeiro fundamental para o equilíbrio da balança comercial, o próprio governo constrói mecanismos para acomodar os interesses do setor; mesmo, contrariando o bem-estar, a segurança, a qualidade socioambiental e a nova visão de sustentabilidade do agronegócio.

De modo que essa pretensão em alterar a legislação sobre os agrotóxicos no país, de saída, já se desarticula por completo do marco estratégico da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 2022-2031, o qual contempla a visão de “um mundo sustentável no qual todas as pessoas tenham segurança alimentar, no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, ou seja, melhor produção, melhor nutrição, melhor ambiente, melhor qualidade de vida” 4.

O posicionamento brasileiro, portanto, não deixa dúvidas sobre as suas intenções, ou seja, permanecer confortável nos vieses do seu atraso histórico. Aliás, como apontaram os dados de 2021, da Organização das Nações Unidas (ONU), “US$470 bilhões de recursos destinados à produção agropecuária no mundo são responsáveis por ‘distorcer preços e causar danos ao meio ambiente e à sociedade’” 5, e o Brasil, pelo menos em tese, quer continuar sendo parte integrante desse jogo equivocado,  custe o que custar.

Assim, resta saber se ele já combinou isso com os seus parceiros comerciais ou é apenas mais um fruto exótico da sua imaginação. Caso contrário, o resultado seria catastrófico para a economia que já não anda muito bem! Não nos esqueçamos de que o pior dos venenos é ... a cobiça.