sábado, 8 de janeiro de 2022

Qual é o limite tolerável? Ou o patamar aceitável, hein?


Qual é o limite tolerável? Ou o patamar aceitável, hein?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Esse tipo de pergunta sempre me intrigou. A inquietação a respeito emergiu, quando eu ainda estava fazendo o meu Mestrado, e as análises a respeito da presença de metais pesados, nas áreas em que eu monitorava o aterramento com lixo, se baseavam em parâmetros estabelecidos pela legislação.

No entanto, isso me parecia de um relativismo absurdo, tendo em vista as inúmeras particularidades e especificidades existentes no campo biológico de cada ser humano. Ao contrário do que muita gente pensa, não dá para homogeneizar os indivíduos apenas porque se deseja fazê-lo. E isso vale para todas as situações da vida.

Pois é, bem-vindos ao mundo real! Esse é o ponto nevrálgico das relações sociais, o qual nos impede de naturalizarmos ou trivializarmos os fatos cotidianos. Ainda que o coletivo nos imponha a necessidade de encontrarmos denominadores comuns que possam satisfazer as demandas de uma maneira mais produtiva e equilibrada, a verdade é que as componentes de força e poder acabam satisfazendo mais um lado do que o outro, pela ação incisiva do desequilíbrio econômico.

Nesse sentido, os chamados “limites toleráveis” ou “patamares aceitáveis” acabam se tornando conceitos idealizados para satisfazer aos interesses de uns em detrimento de outros. Mesmo que partam de uma fundamentação teórico-científica, no fundo seu propósito é sempre uma tentativa de apaziguar as tensões sociais para que a vida se encaixe perfeitamente bem no conceito de que “os fins justificam os meios”.

Mas, será mesmo que justificam? Por mais que eu tente, por exemplo, não consigo considerar tolerável (ou aceitável) que pessoas morram, quando o contexto de suas mortes se dá pela negligência, pelo descaso, pela omissão, pela desassistência, deixando visivelmente à mostra o fato de que alguns merecem viver enquanto outros não.

Ou que sejam lançadas às condições de insegurança alimentar, retirando delas o direito de alcançar uma expectativa de vida igual ao de seus pares em plena condição de segurança alimentar. Como se partisse exclusivamente de sua vontade o fato de não dispor de uma mesa farta e bem distribuída na diversidade dos alimentos necessários ao seu bem-estar.

Ou que sejam submetidas a níveis de contaminação, considerados aceitáveis, sem considerar suas reais condições clínicas de saúde como componentes de interferência direta na sua sobrevivência em relação à exposição contínua e ininterrupta. Como se todos os corpos estivessem verdadeiramente aptos a sofrerem um periódico processo de degradação só porque estabeleceu-se um padrão referencial.

Ou que a quantidade e qualidade do ensino prestado aos cidadãos seja compatibilizado ao seu pertencimento a esse ou aquele estrato social, de modo que os resultados obtidos se tornem satisfatórios dentro daquele determinado parâmetro, desrespeitando quaisquer princípios de equidade e igualdade.  ...

É uma pena, então, que aquilo que mais se vê na contemporaneidade seja justamente esse tipo de discurso, de narrativa. Pequenos grupos querendo subjugar outros sob a alegação de que isso ou aquilo é melhor para “todos”. A questão é, “Todos” quem, cara pálida?

Esse é só mais um mecanismo de controle, de manipulação social; mas, que no fundo não exime as relações humanas de viverem sob constante iminência de conflito. Ora, a vivência prática do cotidiano expõe para quem quiser enxergar as fraturas impostas à sociedade pelas desigualdades intrínsecas e extrínsecas a ela.

A atual conjuntura econômica brasileira, por exemplo, por mais que se esforce jamais vai conseguir apaziguar a alma daqueles que estão submetidos a comer ossos de boi ou arroz e feijão de terceira, para não morrerem de fome.

Ou daqueles que por falta de emprego e/ou de renda suficiente para custear uma moradia, ainda que humilde e modesta, foram obrigados a viver nas ruas, nas praças, nos espaços públicos ao relento.

Porque isso não é, e nem nunca foi, “limite tolerável” ou “patamar aceitável” à dignidade humana, de quem quer que seja, como prega a Constituição Federal de 1988. De modo que, a cada dia, o que se percebe nitidamente é a corda arrebentando do lado mais frágil, com uma naturalidade absurdamente desconcertante.

Na medida em que uns e outros decidiram enquadrar a vida pelos “limites toleráveis” ou “patamares aceitáveis” e, assim, fazer com que a sociedade se divida entre indivíduos importantes e desimportantes, dignos e indignos, poderosos e insignificantes, vem se garantindo o imobilismo social e a manutenção de regalias e privilégios.

Resquícios da nossa história colonial? Pode-se dizer que sim. Porque para esse grupo de pessoas um pouco mais de 500 anos é tempo insuficiente para se desapegar das zonas de conforto e permitir arejar e aspirar novos ares, novos pensamentos, novas diretrizes. Elas estão sempre ávidas em deixar tudo exatamente como sempre esteve.

Então, talvez, isso explique porque a população nada, nada e acaba morrendo sempre na praia. Nunca alcança a posição que, de fato, deveria lhe pertencer nesse mundo. Está sempre a léguas de distância do desenvolvimento, do progresso, da inovação, da vanguarda, na medida em que caminhamos dando um passo à frente e dez para trás.

Não é à toa que muitos a olham com desdém. Alguns com repulsa. Outros com pena. Tem até quem não a enxergue de jeito algum, tamanha a imagem de insignificância que ela permitiu marcar por aí.

Mas, falando bem sério, é como se tivéssemos mesmo nos apropriado integralmente dessa base ideológica, em torno de “limites toleráveis” ou “patamares aceitáveis”, e não conseguíssemos mais acessar a nossa identidade fora desse contexto.

Assim, passamos os dias, tentando caber nessa ideia maluca, para não destoar e para poder pertencer de algum modo. Afinal, esse parece ser o único jeito de “não cairmos em desgraça”, fazendo das tripas coração para não perder o mínimo que seja de tudo aquilo que nos possa ser mais caro, mais fundamental, mais essencial, no imediato e longínquo da vida.