Qual
é o limite tolerável? Ou o patamar aceitável, hein?
Por
Alessandra Leles Rocha
Esse tipo de pergunta sempre me
intrigou. A inquietação a respeito emergiu, quando eu ainda estava fazendo o
meu Mestrado, e as análises a respeito da presença de metais pesados, nas áreas
em que eu monitorava o aterramento com lixo, se baseavam em parâmetros
estabelecidos pela legislação.
No entanto, isso me parecia de um
relativismo absurdo, tendo em vista as inúmeras particularidades e
especificidades existentes no campo biológico de cada ser humano. Ao contrário
do que muita gente pensa, não dá para homogeneizar os indivíduos apenas porque
se deseja fazê-lo. E isso vale para todas as situações da vida.
Pois é, bem-vindos ao mundo real!
Esse é o ponto nevrálgico das relações sociais, o qual nos impede de
naturalizarmos ou trivializarmos os fatos cotidianos. Ainda que o coletivo nos
imponha a necessidade de encontrarmos denominadores comuns que possam
satisfazer as demandas de uma maneira mais produtiva e equilibrada, a verdade é
que as componentes de força e poder acabam satisfazendo mais um lado do que o
outro, pela ação incisiva do desequilíbrio econômico.
Nesse sentido, os chamados “limites toleráveis” ou “patamares aceitáveis” acabam se tornando
conceitos idealizados para satisfazer aos interesses de uns em detrimento de
outros. Mesmo que partam de uma fundamentação teórico-científica, no fundo seu
propósito é sempre uma tentativa de apaziguar as tensões sociais para que a
vida se encaixe perfeitamente bem no conceito de que “os fins justificam os meios”.
Mas, será mesmo que justificam? Por
mais que eu tente, por exemplo, não consigo considerar tolerável (ou aceitável)
que pessoas morram, quando o contexto de suas mortes se dá pela negligência,
pelo descaso, pela omissão, pela desassistência, deixando visivelmente à mostra
o fato de que alguns merecem viver enquanto outros não.
Ou que sejam lançadas às
condições de insegurança alimentar, retirando delas o direito de alcançar uma
expectativa de vida igual ao de seus pares em plena condição de segurança
alimentar. Como se partisse exclusivamente de sua vontade o fato de não dispor
de uma mesa farta e bem distribuída na diversidade dos alimentos necessários ao
seu bem-estar.
Ou que sejam submetidas a níveis
de contaminação, considerados aceitáveis, sem considerar suas reais condições
clínicas de saúde como componentes de interferência direta na sua sobrevivência
em relação à exposição contínua e ininterrupta. Como se todos os corpos
estivessem verdadeiramente aptos a sofrerem um periódico processo de degradação
só porque estabeleceu-se um padrão referencial.
Ou que a quantidade e qualidade
do ensino prestado aos cidadãos seja compatibilizado ao seu pertencimento a
esse ou aquele estrato social, de modo que os resultados obtidos se tornem
satisfatórios dentro daquele determinado parâmetro, desrespeitando quaisquer
princípios de equidade e igualdade. ...
É uma pena, então, que aquilo que
mais se vê na contemporaneidade seja justamente esse tipo de discurso, de
narrativa. Pequenos grupos querendo subjugar outros sob a alegação de que isso
ou aquilo é melhor para “todos”. A
questão é, “Todos” quem, cara pálida?
Esse é só mais um mecanismo de
controle, de manipulação social; mas, que no fundo não exime as relações humanas
de viverem sob constante iminência de conflito. Ora, a vivência prática do
cotidiano expõe para quem quiser enxergar as fraturas impostas à sociedade
pelas desigualdades intrínsecas e extrínsecas a ela.
A atual conjuntura econômica
brasileira, por exemplo, por mais que se esforce jamais vai conseguir apaziguar
a alma daqueles que estão submetidos a comer ossos de boi ou arroz e feijão de
terceira, para não morrerem de fome.
Ou daqueles que por falta de
emprego e/ou de renda suficiente para custear uma moradia, ainda que humilde e
modesta, foram obrigados a viver nas ruas, nas praças, nos espaços públicos ao
relento.
Porque isso não é, e nem nunca foi,
“limite tolerável” ou “patamar aceitável” à dignidade humana,
de quem quer que seja, como prega a Constituição Federal de 1988. De modo que,
a cada dia, o que se percebe nitidamente é a corda arrebentando do lado mais
frágil, com uma naturalidade absurdamente desconcertante.
Na medida em que uns e outros
decidiram enquadrar a vida pelos “limites
toleráveis” ou “patamares aceitáveis”
e, assim, fazer com que a sociedade se divida entre indivíduos importantes
e desimportantes, dignos e indignos, poderosos e insignificantes, vem se garantindo
o imobilismo social e a manutenção de regalias e privilégios.
Resquícios da nossa história
colonial? Pode-se dizer que sim. Porque para esse grupo de pessoas um pouco
mais de 500 anos é tempo insuficiente para se desapegar das zonas de conforto e
permitir arejar e aspirar novos ares, novos pensamentos, novas diretrizes. Elas
estão sempre ávidas em deixar tudo exatamente como sempre esteve.
Então, talvez, isso explique
porque a população nada, nada e acaba morrendo sempre na praia. Nunca alcança a
posição que, de fato, deveria lhe pertencer nesse mundo. Está sempre a léguas
de distância do desenvolvimento, do progresso, da inovação, da vanguarda, na
medida em que caminhamos dando um passo à frente e dez para trás.
Não é à toa que muitos a olham
com desdém. Alguns com repulsa. Outros com pena. Tem até quem não a enxergue de
jeito algum, tamanha a imagem de insignificância que ela permitiu marcar por
aí.
Mas, falando bem sério, é como se
tivéssemos mesmo nos apropriado integralmente dessa base ideológica, em torno
de “limites toleráveis” ou “patamares aceitáveis”, e não
conseguíssemos mais acessar a nossa identidade fora desse contexto.
Assim, passamos os dias, tentando
caber nessa ideia maluca, para não destoar e para poder pertencer de algum modo.
Afinal, esse parece ser o único jeito de “não
cairmos em desgraça”, fazendo das tripas coração para não perder o mínimo
que seja de tudo aquilo que nos possa ser mais caro, mais fundamental, mais
essencial, no imediato e longínquo da vida.