sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Na busca, na luta por uma consciência negra, humana, plural


Na busca, na luta por uma consciência negra, humana, plural

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é só mais um feriado para o país. O Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, é um marco para a ação de aprimoramento da cidadania, importantíssimo. A começar pela expressão “dia da consciência” que é bastante revelador, por dar início ao processo de desconstrução de crenças e valores retrógrados e infundados.

Ora, ainda que não admita ou reconheça publicamente, todo ser humano aprende desde muito cedo a identificar e compreender o balizamento social entre o certo e o errado. Ao ponto de perceber e reconhecer como determinadas falas e atitudes conseguem promover repercussões negativas sobre os outros. De modo que, quando isso acontece, não pode haver gradação de pior ou menos pior, porquê dessa maneira se abre o precedente para justificar e legitimar esses maus comportamentos.

A pergunta, então, que não quer calar é: por que razão isso persiste? O transitar pela história da humanidade, na observância da sua própria evolução, mostrou que ao se impor através de palavras, gestos e comportamentos, sobre determinados grupos sociais e impactá-los negativamente, poderia ser útil como instrumento de poder, de dominação e de controle. Afinal, quase sempre, quem recebe a injúria, o desrespeito, a agressão, a manifestação de uma violência, perde, mesmo que apenas momentaneamente, a capacidade de reação, de contestação, deixando clara a afirmação de que aquele processo a atingiu de diferentes maneiras, tanto objetiva quanto subjetivamente.

Desse modo fica evidente que as injustiças e violências sociais promovidas secularmente contra a população negra partiram de uma escolha racionalizada. A discriminação pela cor da pele e todos os desdobramentos perversos, cruéis e bárbaros que se sucederam a partir dela, se resumem como pretextos que, de algum modo, parecem legitimar a população branca a agir dessa maneira.

Tendo em vista que historicamente o homem branco sempre apareceu como detentor do poder, da dominação e do controle social, ele partiu de uma diferença que pudesse facilmente ser visualizada por qualquer pessoa para dizer, sem quaisquer respaldos éticos, morais ou biológicos, que por aquele motivo o outro era menos, era inferior e, portanto, desmerecedor de reconhecimento, de respeito e de dignidade.

Daí a importância da palavra “consciência”. Quaisquer medidas a fim de romper com todas as injúrias raciais e o racismo, propriamente dito, contra a população negra precisa ter como foco principal a transformação ideológica. Só assim, é possível desconstruir e ressignificar o inconsciente coletivo a respeito desse assunto, estabelecendo uma compreensão humanitária, inclusiva e equitativa.

A dívida histórica que foi edificada junto à população negra, em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, não diz respeito, então, apenas à exploração do trabalho escravo. O cerne da questão é muito mais profundo, porque diz respeito a uma incapacidade de convivência e coexistência tecida, ao longo do tempo, pela população branca, a qual estereotipiza o negro como sub-raça, como intelectualmente deficitário, como alguém que deve permanecer à margem da sociedade. Então, é nesse ponto que precisa haver uma grande transformação.

Não adianta que as pessoas digam não serem racistas e aqui, ali e acolá permaneçam destilando sua injúria racial a torto e a direito, sob a desculpa de que não foi por querer, foi sem pensar, foi só uma brincadeira. Porque, mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF), por oito votos a um, tendo recentemente estabelecido que “O crime de injúria racial é espécie do gênero racismo. Portanto, é imprescritível, conforme o artigo 5º, XLII, da Constituição” 1, se o inconsciente de uma parcela significativa da população brasileira não se transformar esses e tantos episódios, ainda mais graves, vão permanecer acontecendo.

Infelizmente, a existência de uma legislação firme, contundente, não tem em si uma capacidade educadora com alcance tão profundo. Ela pode inibir, pode frear, pode constranger; mas, lá no fundo da (in) consciência humana tudo permanece como sempre esteve. Isso ocorre, porque geralmente as pessoas mantêm um círculo de convivência e coexistência que compartilha dos mesmos pontos de vista, das mesmas ideologias, das mesmas crenças e valores, o que dificulta uma renovação do pensamento para abrigar outras perspectivas de análise, de entendimento, de conhecimento.

De modo que esse modelo pouco plural, pouco diversificado, o qual tem sido cada vez mais defendido pelas alas conservadoras e ultraconservadoras da sociedade pode ser considerado como um “tendão de Aquiles” nesse contexto. Não é à toa que eles trabalham tão intensamente para invisibilizar e desqualificar as iniciativas e as discussões presentes, principalmente, no Dia da Consciência Negra. Como se as considerações e reivindicações não fossem devidas. Como se as marcas dolorosas da história nunca tivessem sido criadas ou existido. Como se os brancos não tivessem quaisquer tipos de responsabilidade nos acontecimentos e nas repercussões temporais.

Assim, embora o racismo encontre as suas especificidades dentro de cada nação, em síntese as suas manifestações acabam muito semelhantes. Se você procurar pela mídia, nos veículos de informação e comunicação, vai perceber isso claramente. Mas, não para por aí. O cinema, por exemplo, tem buscado promover essas discussões e reflexões de maneira muito impactante. De cada filme produzido é possível extrair e traçar compreensões muito profundas a respeito do racismo e tudo o que está direta ou indiretamente ligado a ele.

Dentre os títulos mais emblemáticos na minha opinião, em razão de suas abordagens tão distintas, estão “Mississipi em chamas” (1988), “Conduzindo Miss Daisy” (1989), “Amistad” (1997), “À espera de um milagre” (2000), “Va, vis et deviens” (2006), “Escritores da liberdade” (2007), “Entre les murs” (2008), Invictus (2009), “Um sonho possível” (2009), “Histórias cruzadas” (2012), “Raça” (2016), e, “O ódio que você semeia” (2018).

É importante ressaltar que apesar de uma vasta literatura, que vem sendo construída com mais impulso nas últimas décadas, incluindo os livros em que se basearam muitos desses filmes, a linguagem do cinema, talvez, ainda seja o caminho mais acessível para uma compreensão imediata e suficientemente capaz de elucidar as tramas que fazem do racismo uma nódoa estrutural na humanidade. Daí a importância de destacá-lo como ferramenta de debate e análise crítica.

Portanto, cada vez mais há menos motivos para se permitir esconder debaixo do escapismo, da ignorância voluntária, ou da inação, quando o assunto é o racismo. Ideias de que “O negro só é livre quando morre” (Carolina Maria de Jesus – escritora) ou “O Brasil aplaude a miscigenação quando clareia. Quando escurece, ele condena. O táxi não para pra você, mas a viatura para” (Emicida – rapper paulistano), não podem mais caber na sociedade, não podem mais ser aceitas. Simplesmente porque isso afetaria o que se entende por Direitos Humanos.

Ora, eles não podem existir contemplando exceções. Quando se diz humano, raça humana, não se está definindo um parâmetro por isso ou aquilo. Humanidade se define por uma pluralidade de indivíduos dotados de capacidade cognitiva e intelectual. Gente que sabe verbalizar, oralizar, expressar sentimentos, emoções, ideias, com lógica, com nexo, com sentido, através de um sistema cerebral delicadamente complexo. É isso e pronto. Nenhum detalhe a mais importa.

No fim das contas, o que importa, o que realmente deve importar, acima de qualquer coisa, é o entendimento mais profundo e sublime de que “Nenhum ser humano é uma ilha... por isso não perguntem por quem os sinos dobram. Eles dobram por cada um, por cada uma, por toda a humanidade. Se grandes são as trevas que se abatem sobre nossos espíritos, maiores ainda são as nossas ânsias por luz. [...] As tragédias dão-nos a dimensão de inumanidade de que somos capazes. Mas também deixam vir à tona o verdadeiramente humano que habita em nós, para além das diferenças de raça, de ideologia e de religião. E esse humano em nós faz com que juntos choremos, juntos nos enxuguemos as lágrimas, juntos oremos, juntos busquemos a justiça, juntos continuemos a paz e juntos renunciemos à vingança” (Leonardo Boff – teólogo, escritor e filósofo brasileiro).