Entre
o necessário e o supérfluo ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Atenta ao que trazem os veículos de
informação e comunicação, nada mais oportuno do que despender alguns minutos,
no dia de hoje, a refletir sobre São Francisco de Assis. Símbolo do
despojamento material e de uma devoção incondicional aos pobres, miseráveis e
desafortunados de sua época, o trabalho de São Francisco emerge uma discussão
profundamente importante entre o necessário e o supérfluo, em tempos contemporâneos,
em tempos de Pandemia.
Desse modo, antes que alguém
pense que essas considerações têm caráter de apologia à pobreza e à miséria, já
digo que não. Francisco de Assis tornou-se a figura que o mundo conhece por
escolha, por livre e espontânea vontade. E foi sob esse princípio que seus
seguidores, desde o século XIII, têm se juntado a Ordem Franciscana para dar
continuidade às suas convicções e trabalhos, ou seja, por opção, por total
liberdade. A ideia é partir de seu legado para uma breve análise de como “a ganância do ter não só engoliu o ser e a convivência
pacífica, mas até privou a maior parte dos homens do ter indispensável, para
acumular nas mãos de uns poucos o que a todos pertence” (D. Paulo Evaristo
Arns).
Acontece que em pleno século XXI,
passados oito séculos desde o início dos trabalhos franciscanos, a humanidade
ainda se permite conviver com uma miséria brutal e perversa, oriunda de inúmeras
desigualdades sociais, que parecem desconsiderar por completo os limites do que
realmente necessita o ser humano para viver com dignidade. Talvez, muitos não
se recordem dessa citação da personagem Tião Galinha, na novela Renascer, de
1993, “Quem trabalha e mata a fome, não
come o pão de ninguém. Quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém”.
Mas, em muitos lugares do planeta,
particularmente no Brasil, essa estranha habilidade em banalizar as agruras
cotidianas, ao ponto de invisibilizá-las e naturalizá-las, acontece amiúde e
sem causar quaisquer remorsos ou constrangimentos a uma significativa parcela
da população. Como se a vida tivesse mesmo que ser assim, desigual. No entanto,
quanto mais o tempo passa, mais essa desigualdade se aprofunda porque o desejo
de manter as regalias, os privilégios, os poderes e os “pequenos poderes”, impulsiona as engrenagens da ganância.
Nem sei por quê as pessoas se
admiram tanto com o fato das pirâmides do Egito serem câmaras mortuárias onde
os faraós, suas famílias, seus escravos e seus tesouros eram enterrados; na
medida em que as civilizações posteriores permaneceram amealhando riquezas, da
mesma forma, como se pudessem ter alguma serventia depois da morte. Não é à toa,
a quantidade de disputas judiciais e assassinatos, envolvendo heranças; posto
que, não se usa mais ser enterrado com os bens acumulados.
Assim, enquanto, milhares de indivíduos
se entretêm e se encantam com as notícias em torno do “fabuloso mundo das classes A
e A+”, ninguém para e se questiona sobre o modo como essas riquezas foram constituídas.
Porque, verdade seja dita, ainda que o trabalho e o esforço tenham composto
esses dias de “glória”, nas entrelinhas,
provavelmente, a conquista do sucesso e do dinheiro não só veio da espoliação
de muitos; mas, de uma infinidade de negociatas e atitudes nada éticas e
morais.
De modo que esse silêncio, das
camadas inferiores da pirâmide social, contribui para a manutenção das
desigualdades; sobretudo, dificultando sua própria mobilidade e ascensão. Como mostram
os registros ao longo da história da humanidade, as pessoas sempre estiveram
alocadas em um lugar cativo na sociedade e não lhes era permitido quaisquer
movimentos de mudança. A cada divisão histórica – Pré-História, História
Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea -, essa questão foi
adquirindo contornos próprios, a partir das conjunturas de desenvolvimento. O
que não significa que perderam a sua força; haja vista a miséria, a pobreza, o
desemprego, o desalento pelas vias urbanas.
O que vejo no mundo não é uma
questão de perda de santidade; mas, de humanidade. Não se trata de uma insuficiência
numérica de novos discípulos de Francisco de Assis, aspergindo sua fé e
convicção de trabalho assistencial; mas, de simples empatia, respeito e fraternidade
do ser humano para com o ser humano. O modo como as estruturas sociais foram
organizadas fez perder, por completo, o sentido humano da vida, para ceder aos
caprichos da acumulação desenfreada de bens e capitais. Sem que ninguém se
perguntasse se isso era necessário ou não, se a sobrevivência dependia disso ou
não.
Chegamos ao limite de uma fé que
se resigna ao dízimo, não aos valores, aos princípios, as atitudes humanitárias
e fraternas. Por isso, as pessoas se enxergam caridosas, a partir de práticas
que não passam de placebos, as quais jamais irão, de fato, proporcionar aos
seus pares condições de dignidade e autonomia. Se julgam no direito de excluir
a crença do outro, porque não é a sua, como se houvesse um padrão ideológico a
ser seguido. Inclusive, fazem guerra por esse motivo. Talvez devêssemos pensar a
respeito de que “Só quem reza, em total
entrega da alma, sabe desse acender e tombar da palavra nos abismos” (Mia Couto
– A confissão da leoa, 2012).
Afinal, “você é quem decide o que vai ser eterno em você, no seu coração. Deus nos
dá o dom de eternizar em nós o que vale a pena, e esquecer definitivamente
aquilo que não vale...” (Pe. Fábio de Melo). Daí a importância simbólica e atemporal
de Francisco de Assis. Porque ele discutiu o sagrado na perspectiva do humano,
sem rótulos ou estereótipos, sem julgamentos, sem senões. Apenas, como alguém que
é sim, capaz de pacificar, de amar, de perdoar, de unir, de crer, de corrigir,
de acalmar, de alegrar, de iluminar, sem pedir nada em troca. Razão pela qual o
seu legado permanece na busca em renovar em cada um, o resgate a esse ser
humano que se perdeu dentro de si mesmo, chegando ao ponto de ser capaz de alimentar-se
da miséria, da pobreza, da fome de seus próprios semelhantes.