segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Entre o necessário e o supérfluo ...


Entre o necessário e o supérfluo ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Atenta ao que trazem os veículos de informação e comunicação, nada mais oportuno do que despender alguns minutos, no dia de hoje, a refletir sobre São Francisco de Assis. Símbolo do despojamento material e de uma devoção incondicional aos pobres, miseráveis e desafortunados de sua época, o trabalho de São Francisco emerge uma discussão profundamente importante entre o necessário e o supérfluo, em tempos contemporâneos, em tempos de Pandemia.

Desse modo, antes que alguém pense que essas considerações têm caráter de apologia à pobreza e à miséria, já digo que não. Francisco de Assis tornou-se a figura que o mundo conhece por escolha, por livre e espontânea vontade. E foi sob esse princípio que seus seguidores, desde o século XIII, têm se juntado a Ordem Franciscana para dar continuidade às suas convicções e trabalhos, ou seja, por opção, por total liberdade. A ideia é partir de seu legado para uma breve análise de como “a ganância do ter não só engoliu o ser e a convivência pacífica, mas até privou a maior parte dos homens do ter indispensável, para acumular nas mãos de uns poucos o que a todos pertence” (D. Paulo Evaristo Arns).

Acontece que em pleno século XXI, passados oito séculos desde o início dos trabalhos franciscanos, a humanidade ainda se permite conviver com uma miséria brutal e perversa, oriunda de inúmeras desigualdades sociais, que parecem desconsiderar por completo os limites do que realmente necessita o ser humano para viver com dignidade. Talvez, muitos não se recordem dessa citação da personagem Tião Galinha, na novela Renascer, de 1993, “Quem trabalha e mata a fome, não come o pão de ninguém. Quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém”.

Mas, em muitos lugares do planeta, particularmente no Brasil, essa estranha habilidade em banalizar as agruras cotidianas, ao ponto de invisibilizá-las e naturalizá-las, acontece amiúde e sem causar quaisquer remorsos ou constrangimentos a uma significativa parcela da população. Como se a vida tivesse mesmo que ser assim, desigual. No entanto, quanto mais o tempo passa, mais essa desigualdade se aprofunda porque o desejo de manter as regalias, os privilégios, os poderes e os “pequenos poderes”, impulsiona as engrenagens da ganância.

Nem sei por quê as pessoas se admiram tanto com o fato das pirâmides do Egito serem câmaras mortuárias onde os faraós, suas famílias, seus escravos e seus tesouros eram enterrados; na medida em que as civilizações posteriores permaneceram amealhando riquezas, da mesma forma, como se pudessem ter alguma serventia depois da morte. Não é à toa, a quantidade de disputas judiciais e assassinatos, envolvendo heranças; posto que, não se usa mais ser enterrado com os bens acumulados.

Assim, enquanto, milhares de indivíduos se entretêm e se encantam com as notícias em torno do “fabuloso mundo das classes A e A+”, ninguém para e se questiona sobre o modo como essas riquezas foram constituídas. Porque, verdade seja dita, ainda que o trabalho e o esforço tenham composto esses dias de “glória”, nas entrelinhas, provavelmente, a conquista do sucesso e do dinheiro não só veio da espoliação de muitos; mas, de uma infinidade de negociatas e atitudes nada éticas e morais.

De modo que esse silêncio, das camadas inferiores da pirâmide social, contribui para a manutenção das desigualdades; sobretudo, dificultando sua própria mobilidade e ascensão. Como mostram os registros ao longo da história da humanidade, as pessoas sempre estiveram alocadas em um lugar cativo na sociedade e não lhes era permitido quaisquer movimentos de mudança. A cada divisão histórica – Pré-História, História Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea -, essa questão foi adquirindo contornos próprios, a partir das conjunturas de desenvolvimento. O que não significa que perderam a sua força; haja vista a miséria, a pobreza, o desemprego, o desalento pelas vias urbanas.

O que vejo no mundo não é uma questão de perda de santidade; mas, de humanidade. Não se trata de uma insuficiência numérica de novos discípulos de Francisco de Assis, aspergindo sua fé e convicção de trabalho assistencial; mas, de simples empatia, respeito e fraternidade do ser humano para com o ser humano. O modo como as estruturas sociais foram organizadas fez perder, por completo, o sentido humano da vida, para ceder aos caprichos da acumulação desenfreada de bens e capitais. Sem que ninguém se perguntasse se isso era necessário ou não, se a sobrevivência dependia disso ou não.

Chegamos ao limite de uma fé que se resigna ao dízimo, não aos valores, aos princípios, as atitudes humanitárias e fraternas. Por isso, as pessoas se enxergam caridosas, a partir de práticas que não passam de placebos, as quais jamais irão, de fato, proporcionar aos seus pares condições de dignidade e autonomia. Se julgam no direito de excluir a crença do outro, porque não é a sua, como se houvesse um padrão ideológico a ser seguido. Inclusive, fazem guerra por esse motivo. Talvez devêssemos pensar a respeito de que “Só quem reza, em total entrega da alma, sabe desse acender e tombar da palavra nos abismos” (Mia Couto – A confissão da leoa, 2012).

Afinal, “você é quem decide o que vai ser eterno em você, no seu coração. Deus nos dá o dom de eternizar em nós o que vale a pena, e esquecer definitivamente aquilo que não vale...” (Pe. Fábio de Melo). Daí a importância simbólica e atemporal de Francisco de Assis. Porque ele discutiu o sagrado na perspectiva do humano, sem rótulos ou estereótipos, sem julgamentos, sem senões. Apenas, como alguém que é sim, capaz de pacificar, de amar, de perdoar, de unir, de crer, de corrigir, de acalmar, de alegrar, de iluminar, sem pedir nada em troca. Razão pela qual o seu legado permanece na busca em renovar em cada um, o resgate a esse ser humano que se perdeu dentro de si mesmo, chegando ao ponto de ser capaz de alimentar-se da miséria, da pobreza, da fome de seus próprios semelhantes.