A
atemporalidade de Judas
Por
Alessandra Leles Rocha
Dizem que é dia de “malhar o Judas”. Então, eu percebo como
mais de 2000 anos de história permanecem confusos e nebulosos por aí. Judas
errou. Depois de trocar a vida do grande amigo por algumas moedas de prata, em
razão da inveja que nutria por ele, sentiu o peso do remorso e se suicidou.
Mas, já parou para pensar que ao
retirar a própria vida, ele fez como Pilatos e lavou as mãos? Sim, porque tal
atitude foi uma forma prática que ele encontrou tanto para apagar quanto para
se abster dos seus erros e não ter que conviver com a culpa. Delação. Inveja. Beijo
traidor. Recebimento de vantagem financeira. Como justificaria algo tão injustificável?
Olhando, então, para esse século
XXI que nos abraça, essa ideia da execração pública do “traidor”, tanto tempo depois, não é necessariamente a discordância
ou o desconforto diante dos fatos ocorridos; mas, um modo peculiar que o ser
humano contemporâneo encontrou para disfarçar (ou expiar) seus próprios erros,
lançando luz sobre o alheio.
Até parece que o perfil de Judas
seria uma exceção nos dias de hoje! Há pelo menos uma centena em cada esquina,
tentando levar alguma vantagem na vida, da pior forma possível. O ser humano
tem se vendido com uma facilidade extraordinária. Os séculos só fizeram
contribuir com uma ascensão gritante do TER e, por essa razão, as pessoas
entregam seus princípios e valores em um verdadeiro mercado de escambo.
E é nessa reflexão que deveríamos
nos ater. Afinal, o que acontece de bom ou ruim no cotidiano é porque encontra
respaldo. Quando olho para a figura de Judas, percebo com imensa clareza traços
de uma humanidade distorcida que ainda reside dentro dos campos sombrios da
alma. De perto, bem de perto, o ser humano parece não ter nenhuma vocação para
ser o “mocinho” da história.
De um jeito ou de outro, ele
acaba tendendo a escapar do fascínio da perfeição. Tornando-se um rebelde, com
ou sem causa, que se agita pela adrenalina da transgressão. Ultrapassar
limites. Testar a paciência dos outros. Abusar das regras sociais. Enfim...
mesmo sabendo, que pode se dar muito mal. Que vai se arrepender. Que vai ter
que se explicar. Que vai ter que pagar pelos erros.
Ah; são tantos os exemplos por
aí! Já deu uma passada de olhos nos noticiários do dia? Leia com atenção. Nas
linhas e entrelinhas sobre anônimos e famosos. Porque os Judas contemporâneos,
nem sempre se mostram escancarados; há uma certa sutileza, às vezes, no seu modus operandi. Mas, no fim das contas,
Judas são sempre Judas e a “tentação”
acaba lhes vencendo.
Especialmente em um país tão
pródigo como este. Lembrando só, que pecado é pecado; embora, há quem insista
em fazer-lhe gradação para minimizar a própria culpa. Então, vez por outra, nos
deparamos com enxurradas de arrependimentos tardios, os quais são totalmente
inócuos, como o próprio Judas nos mostrou.
Judas é, portanto, a
personificação da má escolha. Totalmente ciente do certo e do errado, do bem e
do mal, ele se permitiu cruzar a fronteira. Dizer que ele foi “tentado” é só uma tentativa de atenuar
o seu instinto, a sua vontade, a fim de eximir e diluir o peso das
responsabilidades. E isso acontece com certa frequência, porque, cada vez mais,
as pessoas abdicam das suas convicções, da sua consciência, para agradar e
pertencer ao grupo, ao coletivo social, ou a algum interesse particular.
No entanto, o resultado final é
sempre a solidão. Os Judas acabam sempre banidos, alijados da sociedade. Consumidos
por suas péssimas decisões. Pode ser que não aconteça de primeira, mais vai
acontecer, mais dia menos dia vai. Porque a humanidade não dispõe de muita
paciência para conviver com espelhos que possam revelar alguma imperfeição que
ela não deseja mostrar.
Assim, tendo em vista tudo o que
permeia a personalidade tão discutível dessa figura chamada Judas, que tal um
mergulho na seguinte reflexão do escritor Mia Couto, “As pálpebras limpam os olhos de poeiras. Que pálpebras limpam as
poeiras do coração? ” (Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos). Porque
a humanidade, mais do que nunca, precisa dar uma solução para tantas sujidades
armazenadas nas almas; a fim de que, o mundo possa ver, não pela perspectiva de
Judas, mas de sua própria, os caminhos pelos quais deve seguir.