quarta-feira, 17 de março de 2021

Chovendo no molhado


Chovendo no molhado

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Essa de ficar “chovendo no molhado”, não dá mais! O desespero coletivo, fundamentado no óbvio da realidade atual, compartilhado por muita gente Brasil afora, permanece música para os ouvidos de quem, ainda, vê a normalidade reinando.  

Acontece, que o buraco dessa indignação “é bem mais embaixo” do que aparenta. O caos pandêmico foi só um adicional a um outro caos que vinha sendo cozido em fogo baixo. Ou vai dizer que você não se deu conta dos últimos acontecimentos ocorridos no país desde 2019, hein?!

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que já não satisfazia a demanda de atendimentos a contento há longas datas, sucumbiu diante de uma “reestruturação” não planejada. Milhares de pessoas ficaram sem atendimento, sem poder retornar ao trabalho por falta de perícia médica, com benefícios suspensos; enfim... Cidadãos brasileiros tratados literalmente como “subgente”.

Diversas comissões e conselhos federais foram extintos, havendo uma limitação explícita da participação popular em decisões importantes do país, como o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), por exemplo. Salvaram-se alguns poucos constituídos por força de lei; mas, a ingerência não deixou de existir e a obstaculização aos interesses públicos tornou-se evidente.

Algo que se refletiu, em outros órgãos importantes, como aqueles ligados ao Meio Ambiente, ou seja, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), facilitando a implementação de uma política ambiental exploratória e não sustentável.

Fato que se traduziu na velocidade devastadora das queimadas e do desmatamento ilegal, da incursão de garimpeiros em terras protegidas por lei, da expansão desenfreada das áreas de pastagem para criação de gado, ... que afetaram severamente biomas importantíssimos como o Cerrado, o Pantanal e a Amazônia.

Mas, não se pode esquecer, também, do setor Educacional e Cultural do país. Os quais foram abruptamente desmantelados e precarizados no exercício de suas funções. Tratados como assuntos de menor relevância no cenário nacional; muito embora, sejam alicerces preciosos na consolidação de cidadãos multiletrados e multiglobalizados, que vêm ou virão a ser a força motriz de desenvolvimento nacional.

Então, o que importa nessa reflexão é trazer luz ao fato de que esses são apenas alguns exemplos da tragicidade que tem acometido o país até agora e tenderá a ressoar seus desdobramentos por uma vasta imprecisão temporal. Porque todos os acontecimentos, exemplificados ou não aqui, tem de algum modo seu encaixe muito mais na proposta para a política econômica do que na Pandemia.

Isso significa que a proposta para a política econômica veio para satisfazer o lucro em detrimento do ser humano. O que significa a “maquinização humana”. Como se as pessoas pudessem trabalhar e produzir até a exaustão para o alcance de metas cada vez mais extremas, sob condições não sustentáveis e salários insuficientes a manutenção de sua dignidade.

Quem seriam essas pessoas? A exceção das classes A e B da pirâmide social, todas as demais. Aquelas que vivem sob a invisibilidade constante dentro do país. Alijadas da sua cidadania e direitos fundamentais.

Portanto, não é de se espantar o que acontece no contexto da Pandemia. Partindo das “Fake News” como instrumento disseminador das inverdades negacionistas, foi fácil constituir campanhas maciças contra as medidas profiláticas – distanciamento social, uso de máscaras, higiene frequente das mãos e vacinação –  defendidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e demais corpos científicos nacionais e internacionais. Há um interesse explícito da gestão atual em não governar no sentido amplo da sociedade.

Traduzindo em miúdos, a política vigente está centrada em bases muito claras daquilo que se entende por Aporofobia [1]. Apesar de a Pandemia estar em curso, estatísticas preliminares já são capazes de demonstrar claramente como as populações isentas de quaisquer regalias e privilégios estão mais vulneráveis tanto a infecção viral pelo Sars-COV-2 quanto pela indisposição governamental em estabelecer políticas públicas que as alcancem e garantam a sua proteção, inclusive no Pós-Pandemia.

Ora, não há país que sobreviva a quaisquer tormentas dessa magnitude sem entender o senso coletivo que o mantém de pé. O topo da pirâmide cai sem a existência de uma base sólida e resistente. Direitos fundamentais básicos não são investimento e nem tão pouco luxo. Eles são o esteio de um país inteiro. E essa é uma verdade que não cabe apenas ao Brasil.

Por isso, é que diante dessa perda econômica inevitável, cada país tem buscado atender as demandas emergenciais de sua população, de maneira global. Nenhum segmento ficou de fora. Todos entraram na conta econômica; mas, particularmente, humana. Com destaque especial para aqueles que se engajaram por inteiro nas linhas de frente da Pandemia. Todos foram lembrados, reconhecidos, apoiados.

Do mesmo modo que o Brasil, esses países também não sabem cravar no calendário o fim dessa guerra biológica. No entanto, eles estão trabalhando conjuntamente para isso; para fazer um Pós-pandemia menos difícil, menos perverso. E nós? O que será de nós? O que esperar de um país que semeia tanta desigualdade e indiferença humana?

Porque para todo lado que se olha há alguém desrespeitando a tragédia, os milhares de mortos ... Não se engane, porque a passividade, o silêncio, a inação, só faz gritar a conivência. É a tradução mais emblemática de uma concordância ideológica. Essas pessoas sinceramente acreditam que está tudo certo, tudo no seu devido lugar.

Se o mundo, de repente, desse uma guinada e voltasse no tempo do Brasil Colônia, penso que elas iriam ao delírio absoluto. Ficariam extasiadas com a cerimônia do “beija-mão”, com a subserviência forçada das mucamas e dos escravos, dos bailes e saraus na Corte, da ostentação das posses, ... Afinal, não é exatamente isso que têm buscado praticar até hoje?

É por essas e por outras que é tão fácil fazer vingar a Aporofobia nesse país. O conservadorismo raivoso e beligerante, que se espalha no mundo e alcança esse território, é oriundo sim, de um colonialismo mal resolvido. O tempo na prática passou; mas, nas convicções e ideias de muitas pessoas permanece imóvel no passado. Quase como um vício saudosista, que apaga todas as ranhuras e defeitos que (porventura) tenham existido.   

Por isso se resiste a inclusão social, a ruptura com os abismos sociais, a popularização dos direitos humanos fundamentais. No entanto, isso não é permitir ventar novos ares sobre a história. Virar a página. Encontrar novos caminhos para seguir adiante.

E não é, justamente, porque parece ser uma ousadia que poucos querem assumir realizar; ficando sempre “o mais do mesmo”, num cotidiano de absurdos e mazelas requentadas, em uma paralisia que só faz constranger. Mas, no fim das contas, acaba sendo uma (ir) responsabilidade comungada entre todos sem distinção. Uma vergonha da qual ninguém escapa.