Novos
fiscais da vida alheia...
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando determinados assuntos reais
explodem nas arenas virtuais é importante que se faça da visibilidade adquirida
algo de proveitoso e útil para a coexistência social. A fúria com que algumas
pessoas se manifestam contra a vida privada dos outros não foge a um padrão de
seletividade, no mínimo curioso, que vigora entre nós. Porque, nesse mundo da
inquisição contemporânea, a verdade é que há “pecados” e “PECADOS” a serem
julgados.
Enquanto o mundo é varrido em
todas as direções pelos efeitos de um vírus desconhecido, seres humanos se
apegam como podem aos seus pequenos e distorcidos poderes para luzir como
falsos brilhantes. Descarregam suas frustrações, suas vergonhas, seus medos,
... em palavrórios insensatos e inflamados por dedos em riste, sobre questões
que não são absolutamente da sua conta. Mas, sobre aquilo que é, ou ao menos
deveria ser, silenciam passivamente. Fecham-se em copas para não emitir
opinião.
Quanta covardia! Escolhem “adversários”
supostamente vulneráveis para se agigantar. Só se esquecem de que nessa vida
ninguém passa sem ter um telhado de vidro. A pedra lançada no outro pode voltar
contra você. Pseudoconservadorismo não é blindagem capaz de manter ninguém a
salvo; sem contar que pode somatizar as ranhuras que expõem as deformidades de
sua alma. Talvez tenham se esquecido de um tempo na história em que a sociedade
absolveu o ladrão e condenou o filho de Deus...
Enquanto ocupam-se do “linchamento”
da intimidade alheia, o chão rui aos seus pés. Sua própria sobrevivência corre
risco, no que diz respeito ao que você considera conquistas, regalias e privilégios.
A vida que se conhecia até aqui está se desconstruindo em nome de uma nova
ordem, a operar sob novas diretrizes e preceitos. Nenhuma mesquinhez, nenhum torpor,
... resistirá até o fim dessa jornada humana; é só aguardar para ver o
resultado.
Se ainda não conseguiram
perceber, os dias estão sendo vividos um por vez. O amanhã não está tão
distante no horizonte, como se pensava. Porque os desdobramentos da Pandemia
tornam o terreno instável demais para projeções em longo prazo, em face de uma
questão de natureza global e não pontual. Tempos de olhar para si e para o
outro simultaneamente, a fim de conseguir uma melhor compreensão sobre a dinâmica
instituída.
Portanto, o que preocupa a
humanidade nesse momento não são os indivíduos em si; mas, a forma com que
lidam com as adversidades e a busca de soluções coletivas para manterem-se
vivos. Afinal, são mais de 2 milhões de mortos em todo o planeta para se
permitir pensar sobre quem é fulano ou beltrano em foro privado, para discutir
futilidades em praça pública.
Considero essa postura de
passividade, de negligência voluntária, não só lamentável; mas, sobretudo, anticidadã.
Porque ela tem consequências muito ruins e importantes para serem
desconsideradas. Ela se torna um caminho para abdicar de centrar esforços em
resolver demandas urgentes e vitais, para concentrar-se em assuntos distantes
de serem prioridade em quaisquer momentos. Torna-se um ópio alienante.
De fato, arregaçar as mangas é
mesmo desafiador. Isso porque viver é um desafio. Abrir mão de ser protagonista
da sua vida para ser um reles coadjuvante de quinta categoria da vida do outro
é que se pode considerar um desperdício e tanto. Afinal, todos os aspectos que
constituem a identidade humana são propriedade do indivíduo; agora, o que ele
enquanto sujeito realiza, constrói, promove para o desenvolvimento e evolução
da sociedade é o que realmente importa e faz total diferença.
Essa espetacularização do que não
tem relevância alguma é a mais plena perda de tempo. E surpreende ainda mais na
conjuntura social que estamos vivendo. Mazelas do ontem e do hoje estão se
materializando e se disseminando como rastilho de pólvora. O viver está à beira
de um abismo de simples sobrevivência; mas, as pessoas insistem em seletivizar e
relativizar o seu pudor, em se tornarem os novos fiscais da vida alheia.
Enquanto vagamos respirando o ar dessa metamorfose funesta a nos envolver, a verdade é que se caminha cada vez mais veloz para o espetáculo da sociedade de consumo, ou seja, “a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, “a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem”. O “novo poderio do embuste” que se concentrou aí tem a sua base na produção onde surge “com a massa crescente de objetos... um novo domínio de seres estranhos aos quais o homem se submete”. É o grau supremo duma expansão que necessariamente se coloca contra a vida” (DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997).