A contemporânea
linguagem tóxica
Por Alessandra Leles
Rocha
Chamam-me de curiosa. Acho graça; mas, sou obrigada a
concordar que minhas “antenas” estão
sempre ligadas na observação do mundo e da vida. Sim, adoro me inteirar sobre
tudo o que possa ser útil, que possa ser um facilitador real dos caminhos;
afinal, saber o lugar exato onde colocar os pés pode evitar dissabores. Então,
parece-me impossível transitar de olhos fechados e mente dispersa diante do cotidiano;
sobretudo, agora, em tempos tão absurdamente controversos e desafiadores.
Em meio ao caos que flameja entre nós, algo começou a povoar
os meus sentidos e trazer uma reflexão bastante oportuna. Muito mais do que a
verborragia, por si só, está na toxicidade a grande ameaça das linguagens
contemporâneas. Palavras podem sim ser extremamente tóxicas e letais, porque
elas expressam o que há de mais profundo na subjetividade humana.
Assim como um vírus precisa dispor de um mecanismo de
acoplagem no seu hospedeiro para dar vazão à sua virulência, as palavras também
dispõem de seus mecanismos particulares de conexão. Não é só o grau de
entonação, ou a expressão corporal, ou a imagem visual que a acompanhe ou
transmita, ou o momento temporal do discurso. É fundamental que ela encontre um
receptor ideal para desencadear um processo nocivo de significação. A mente
humana é um mistério. O porquê, como e quando reagimos as palavras é, desse
modo, muito particular.
Enquanto o COVID-19 é uma ameaça real, embora invisível, o
sentimento de desconforto e temor por ele fomentado gera uma preocupação
perceptível que não encontra a mesma intensidade em relação as palavras,
discursos e narrativas que circulam entre nós. Sem nos darmos conta, a verdade
é que a humanidade está sendo minada em duas frentes distintas. Pessoas podem
adoecer e morrer pelo vírus; mas, também, pelas palavras.
Ora, palavras ferem... algumas vezes, tão profundamente que
podem matar. Quantos suicídios não decorrem de palavras? Já pensou sobre isso?
A questão da saúde mental, que tanto se discute mundialmente nas últimas
décadas, perpassa diretamente pela toxicidade ou não das linguagens do mundo
contemporâneo. Tendo em vista que a existência humana se baseia em um convívio
dialógico, é inevitável que as palavras exerçam impactos importantes no campo
do equilíbrio emocional, afetivo e comportamental, podendo inclusive
desencadear doenças.
Transtornos de ansiedade, Síndrome do Pânico, Depressão,
Bulimia, Anorexia, Dismorfia corporal, ... são alguns exemplos conhecidos e em
franca expansão na contemporaneidade. Isso significa que cada indivíduo
presente na sociedade precisa dar a devida atenção a esse assunto. É preciso
entender que nem sempre as pessoas têm uma consciência plena a respeito das
suas vulnerabilidades e do grau de acometimento em relação a elas.
Aliás, isso decorre em grande parte do próprio discurso
promovido pela sociedade que bane os considerados “frágeis”, “sensíveis”,
“arredios”, “esquisitos” etc. A partir dessa narrativa segregadora, a
toxicidade das palavras pode ser facilmente percebida. A questão, então, é
escolher permanecer ou continuar na mesma conduta; pois, se não dispõe de nada
edificante e produtivo a dizer, melhor silenciar.
E como dito desde o início, as pessoas ainda não se deram
conta da dimensão desse mal. Atribuem toda a sua verborragia Pós-Moderna ao
campo da brincadeira, da chacota, como algo sem importância, sem repercussão;
quando, na verdade, não foi, não é, e nunca será. Comportamento que não passa
de uma tentativa desastrada de se abster de uma responsabilidade ética e moral
dentro do conjunto da sociedade.
Independentemente se doentes ou não pela COVID-19, a
humanidade encontra-se, portanto, intoxicada por uma avalanche de palavras pesadas,
irrefletidas, despejadas sem o menor critério ou cuidado. A consequência é que
as repercussões vão retroalimentando um grande círculo e expandindo o alcance
daquilo que é tóxico, nocivo. As palavras ferinas, amargas, destrutivas chegam,
hoje, por fontes diversas e o tempo todo. Tudo é pretexto. Tudo é desforra.
Tudo é desaforo. ... Como se pudessem bombardear o mundo em uma guerra
imaginária, delirante.
Por isso, apesar de todos os pesares, adoro quando vejo gente aspergindo doçura, beleza e encantamento por aí, através das palavras. Estão semeando o bem em terreno minado, eu sei. Mas isso, ainda, me conforta e me traz alguma esperança. Sinto como se houvesse uma legião de lúcidos que se mantêm focados e obstinados em não se contaminar, em não beber da fonte da contemporânea linguagem tóxica. Afinal, compreendem que “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós. ” (Antoine Saint-Exupéry – O Pequeno Príncipe); o que significa que é oportuno que as palavras a serem ecoadas e perpetuadas no tempo e no espaço não sejam, então, ruins.