segunda-feira, 4 de maio de 2020

A idade é só um rótulo


A idade é só um rótulo





Por Alessandra Leles Rocha







Antes mesmo que maiores detalhes tivessem chegado ao conhecimento público, à primeira iniciativa desencadeada pelas autoridades foi manifestar a importância de se estabelecer maiores cuidados com a população idosa, a qual aparentemente seria a mais vulnerável ao COVID-19; tendo em vista uma maior probabilidade de doenças pré-existentes.  Assim, idosos em todo mundo passaram a ocupar o primeiro grupo de risco nessa Pandemia.  

Muitos de fato vieram a óbito ao longo desses meses; mas, outros promoveram uma importante ruptura de paradigmas científicos em meio aos seus quase centenários anos de vida. O vírus foi bem mais democrático, no que tangem as faixas etárias, do que costuma ser a própria sociedade. Ele simplesmente fez vítimas aleatórias. No entanto, todo esse movimento que se estabeleceu contribuiu para diversas reflexões sociais importantíssimas.

É interessante como a preocupação em torno da vida consegue existir concomitantemente à incapacidade de respeito, valoração e reconhecimento ao processo biológico natural de desenvolvimento humano, ou seja, todo mundo nasce, cresce, envelhece e morre. Estamos sempre a favor da vida, mas com ressalvas bastante resistentes à penúltima etapa dela que diz respeito ao envelhecimento.

Sim, daqui e dali, a sociedade vem tornando a vida um sinônimo da juventude. Bens, produtos e serviços por ela disponibilizados estão basicamente destinados a atender aos interesses da chamada População Economicamente Ativa (PEA) e seus dependentes. Como se após os sessenta ou sessenta e cinco anos, o ser humano deixasse de viver a plenitude dos seus sonhos, desejos, aspirações e conquistas e se transformasse em mero receptor de cuidados e assistencialismos, de certo modo, bastante onerosos. Já percebeu como muitas famílias reclamam de arcar com a contratação de um cuidador, quando necessário; mas, não o fazem diante de uma babá?

A questão é que cada fase da vida humana é uma vida a ser vivida com seus sabores e dissabores, encantos e desencantos; os quais só se descobrem depois de aberto o pacote. E o COVID-19 nos mostrou isso. De onde menos se esperava uma volta por cima da doença, ela surgiu. Dos semblantes e corpos frágeis emergiu uma força vital que surpreendeu muita gente. E não foi à toa. Só quem chega tão longe nessa vida para dar-lhe o devido valor, para lutar com unhas e dentes por cada fiapo de tempo.   

Lamento que exista muita gente por aí, ao contrário de entender o envelhecimento como mais uma etapa, o vendo como uma sentença de fim. Porque para morrer basta estar vivo. Quantos não morrem ao nascer ou antes mesmo? Ou na adolescência? Ou na juventude? Ou na maturidade? Por razões diversas o fim se estabelece e pronto. Finais breves. Finais longos. Ciclos que se encerram à revelia da nossa vontade, do nosso querer.

O triste é quando a própria humanidade faz questão de abreviar o tempo da vida. Criando mecanismos tão perversos para minar as potencialidades, as alegrias, o entusiasmo, os desejos humanos. Invisibilidade. Exclusão. Intolerância. Preconceito. Violência. Abandono. ...são alguns exemplos desse modus operandi que ergue fronteiras intransponíveis entre as pessoas; mas, também, entre faixas etárias.

Fala-se muito da diversidade e da sua representatividade na sociedade; mas, não vejo a consolidação disso visível, especialmente, em relação aos idosos. Não uma diversidade e representatividade idealizada ou estereotipada, contextualizada aos interesses de uns e outros; mas, reais, palpáveis, traduzíveis as expressões identitárias que cruzam o nosso cotidiano. Certamente, trazer essa realidade para o mundo que envelhece, minimizaria muito a dor, o sofrimento e a solidão de milhões de idosos. Aliás, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) serão aproximadamente 2 bilhões de pessoas acima de sessenta anos em 2050.

No entanto, a sociedade vem tentando lhes impingir, cada vez mais, um universo paralelo e limitado. Êpa! Espera aí! Antes de serem idosos, eles são seres humanos! Seus gostos, suas predileções, seus hobbies, suas atividades podem ser quaisquer umas, segundo os seus interesses humanos. Abra os olhos e veja quantos vovôs e vovós por aí, curtindo a vida bem mais do que seus netos e bisnetos. Simplesmente, porque eles estão vivos na expressão mais profunda do que isso significa.

Não nos esqueçamos, também, de que tais limitações é que produzem o acirramento da sua dependência, seja ela familiar econômica ou estatal. Em sua maioria dedicados anos a fio ao trabalho formal ou informal, a sociedade lhes impõe restrições financeiras cruéis na aquisição da aposentadoria. O tempo e a capacidade intelectual dispensada, no final das contas, não se convertem na paga justa e necessária à sua sobrevivência, fazendo de muitos, verdadeiros indigentes sociais na velhice.

Quando buscam equilibrar o jogo e voltar à cena, como protagonistas da sua história, são impedidos ou banidos de conviver e coexistir em todos os espaços sociais. Ou seja, são mais uma vez empurrados para as margens da sociedade, apesar de permanecerem produtivos além do intelecto. Geralmente, as oportunidades que se apresentam configuram-se como subempregos ou subaproveitamento laboral, perdendo o mercado grandes talentos nesse sentido.

Como todo o restante da sociedade, agora eles estão aí enfrentando a Pandemia. Convivendo com as ausências, as carências, as limitações que há tempos, muitos deles, já conhecem bem. Fazendo-se visíveis, quando possível, e procurando dar sua contribuição da melhor forma, dada a vasta experiência que a jornada existencial lhes conferiu.

Um bom exemplo foi de um veterano de guerra inglês, de 99 anos, que conseguiu arrecadar 13 milhões de libras para as instituições de caridade em torno do serviço de saúde público britânico, o NHS. Seu feito incrível foi dar 100 voltas de 25 metros, com um andador, em seu jardim; o que significou dez voltas de cada vez, a serem cumpridas antes do seu aniversário de 100 anos, comemorados no último dia 30 de abril.

Talvez, essa seja, então, uma das mais importantes lições que o envelhecimento distribui de graça a quem quiser, “Para as coisas importantes, nunca é tarde demais, ou no meu caso, muito cedo, para sermos quem queremos. Não há limite de tempo, comece quando quiser. Você pode mudar ou não. Não há regras. Podemos fazer o melhor ou o pior. Espero que você faça o melhor. Espero que veja as coisas que a assustam. Espero que sinta coisas que nunca sentiu antes. Espero que conheça pessoas com diferentes opiniões. Espero que viva uma vida da qual se orgulhe. Se você achar que não tem, espero que tenha a força para começar novamente” (F. Scott Fitzgerald – O Curioso Caso de Benjamin Button).  Afinal, a idade é só um rótulo.