A vida e as infinitas possibilidades pascais que ela agrega
Por Alessandra Leles Rocha
É... Fazia tempo que
os seres humanos andavam desconectados de si mesmos e indiferentes à significância
de sua própria existência. Filosofar sobre “de onde viemos”, “por que estamos
aqui”, “para onde vamos” há tempos deixou de caber na grade apertada de um
cotidiano essencialmente materialista e superficial. O tempo se transformara em
pressa; de modo que, cada vez mais inatingível ia se apagando da memória.
Então, de repente,
ficamos sem ar. Literalmente, sem ar. Pelo menos algumas centenas de milhares
de nós por aí. E como sem ar não há vida, ela voltou ao centro das atenções. O
COVID-19, o grande responsável por essa interrupção repentina do fluxo
frenético, ao qual estávamos habituados, colocou diferentes raças, credos, gêneros,
idades, status social e níveis de educação rendidos, de joelhos sob um manto de
perplexidade jamais visto.
Está
claro que a
intenção maior desse inimigo sem rosto não seja exterminar um a um a
raça
humana; mas, certamente, fazê-la refletir por um longo e doloroso
período de isolamento e penitência. Nossa indiferença negligente diante
da vida superou
quaisquer limites. Guerras. Miséria. Desigualdade. Misoginia. Sexismo.
Xenofobia.
Homofobia. Enfim... a vida passou a valer muito pouco. O SER perdeu
espaço para
o TER.
E como todas as
perdas até aqui pareceram incapazes de fazer o ser humano recobrar a lucidez,
esse vírus entrou em ação para fazê-lo. A hierarquia de prioridades
estabelecidas pela sociedade ruiu, num piscar de olhos. Entre elementos
materiais e imateriais os indivíduos foram se vendo PERDER. A paz. A liberdade. A convivência. Os entes queridos. O cotidiano.
O dinheiro... A vida. Foi, então, que elas começaram a perceber como muitas
dessas coisas já andavam mesmo meio perdidas, meio esgarçadas, meio desligadas.
A partir desse “insight”, tudo começou a fazer sentido.
Aliás, a vida retomou o seu sentido; mais inteiro, mais pleno. Justamente em
tempos de Páscoa. De maneira muito particular e surpreendente o COVID-19, colocando-se
acima de convicções e convenções, inclusive religiosas, está possibilitando à
humanidade experimentar uma ressignificação coletiva para a construção de uma liturgia
Pascal.
Na qual cada um na
sua singularidade humana possa enxergar em si que Páscoa é tão somente renascimento,
transformação, libertação, passagem. De modo que nela seja possível compreender
a importância do engajamento na luta pela vida, seja essa de quem for. Que nela
se promova o resgate e a transcendência daquilo que sempre existiu de mais
belo, puro e sagrado dentro de cada um.
Nesse momento, então,
percebemos que John Lennon tinha mesmo razão, quando escreveu Imagine 1.
Talvez, essa onda de mudança não tenha sido gerada por um impulso propriamente humanitário,
altruísta, como ele imaginou; mas, pela força maior de uma conjuntura, de algo
além do visível. Já imaginou todas as pessoas vivendo para o hoje (Imagine
all the people living for today...)? Todas as pessoas vivendo a vida em
paz (Imagine
all the people living life in peace...)? Todas as pessoas partilhando
de todo o mundo (Imagine all the people sharing all the world...)?
Quer uma Páscoa mais
emblemática do que essa?! Impossível. Apesar da distância, nunca estivemos tão
próximos. Apesar do medo, nunca fomos tão solidários e fraternos. Apesar das
perdas, nunca ganhamos tanto em termos de humanidade. Enfim, apesar de todos o
pesares que esse diminuto vírus tem nos feito, e ainda fará enfrentar, sei que
mais dia menos dia sentiremos pulsar a poesia dessas palavras “Viver
/ E não ter a vergonha / De ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de
ser / Um eterno aprendiz...” 2,
porque nada vale mais do que a vida e as infinitas possibilidades pascais que
ela agrega.