terça-feira, 4 de setembro de 2018

"A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente". José Saramago

Do barro às cinzas




Por Alessandra Leles Rocha


A cultura é um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da interação social entre indivíduos. Esse processo é mediado pela língua, que permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as gerações, daí compreendermos que a cultura de um povo constitui-se como um todo que é realizado por cada indivíduo, afinal, cada um é uma peça importante na construção cultural, uma vez que é portador, disseminador, mas também criador de cultura. O homem é, portanto, um ser cultural e é a cultura que o permite adaptar-se aos diferentes ambientes. (COELHO; MESQUITA, 2013, p. 27)1



O mesmo fogo que alimenta a vida também a destrói; labaredas que consomem a matéria e toda a subjetividade nela contida, de modo que não reste mais nada além de cinzas.
Diante dos horrores que o mundo teima em nos exibir diariamente, devo confessar que o incêndio no Museu Nacional 2, na cidade do Rio de Janeiro, não me causou espanto. Afinal, tragédias anunciadas não deveriam ser causa de nenhum grau de perplexidade. O que elas geram em mim é um foco a mais de análise em relação à displicência com que tratamos a vida.  
Nada, absolutamente nada é o que significa a nossa existência. Somos cotidianamente mortos, em doses homeopáticas ou não. Mortos na matéria e na essência vemos esvair pelos dedos a nossa trama identitária, porque não há nenhum tipo de constrangimento ou preocupação sobre quem, ou o que somos e fazemos.
De tanto contar o hoje, o agora, esquecemos de que o nosso alicerce existencial é bem mais multifacetado. Somos parte integrante e integrada do passado, presente e futuro. Por isso o pesar diante das chamas a engolirem com voracidade esse pedaço de nós, o qual passamos absortos sem perceber.
Portanto, o caso pede acordar a consciência. Afinal, ele nos mostra que precisamos nos cuidar, nos responsabilizar por nossa existência; na medida em que, se não fizermos não haverá quem faça. A cômoda posição de beneficiário das “benesses” é um risco em tempos pós-modernos; pois, cada um está tão preocupado consigo mesmo que não enxerga o entorno. Enquanto custeamos a peso de ouro a sobrevivência de nosso provedor maior, o Estado, ele próprio nos invisibiliza frente a tamanho fastio: para ele nada falta.
O Museu Nacional se perdeu em chamas; mas, o mesmo acontece todos os dias com a educação, a saúde, a segurança,... onde o fogo arde sem se ver na síntese mais perversa do desamor coletivo, da anticidadania, que mata lenta e vagarosamente. E assim, morremos sem ao menos saber quem somos o que somos ou fizemos, no mais puro exemplo de “morte matada”. Sim, aquela que não veio natural no curso da vida; mas, pelas mãos ardilosas e ofensivas do mal querer.
Sabe, o fogo não tem consciência da malvadeza que é capaz de produzir; mas, o ser humano tem.  Ele sabe o preço da vida e do viver. Ele tem a dimensão dos prejuízos. Só se esquece de que para toda ação há uma reação na mesma intensidade... Já dizia Zygmunt Bauman (2005) 3, as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade””.
Portanto, estamos sendo condescendentes com a incineração da nossa identidade, do nosso pertencimento, ao aceitar as coisas como são ou por esperar medidas milagreiras de última hora pelas mãos de salvadores da pátria ou por nos contentarmos com a reincidência das reconstruções... Até quando submeteremos nosso barro às cinzas?
Domingo foi o Museu Nacional, amanhã só Deus sabe. Enquanto isso, nossas cinzas vão se acumulando, voando com os ventos gélidos e nefastos da pós-modernidade, porque nossa incapacidade de entender que “O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades” (Woodward, 2000, p. 14) 4, ainda nos paralisa.




1 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013.  
3 BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
4 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferençaA perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p.

3 comentários:

  1. Parabéns por seu texto, Alessandra. Um verdadeiro testamento dessa tragédia da humanidade.

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  2. Alessandra querida!
    Muito bom ler seu texto!
    Muito lúcido e necessário!
    Eurídice Hespanhol

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Acredito que todo comentário é o resultado da disposição de ler um texto até o final, ou seja, de uma maneira completa e atenta, a fim de extrair algo de bom, de interessante, de reflexivo, e, até quem sabe, de útil. Sendo assim, meus sinceros agradecimentos pelo tempo dedicado ao meu texto e por suas palavras.