sexta-feira, 18 de agosto de 2017

"A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção". Jacques Lacan

Ficção. Realidade. Fantasmas da mente humana.




Por Alessandra Leles Rocha




Há vinte e cinco anos eu fui impactada por um conto de Rubem Fonseca, quando me preparava para o Vestibular. O tal “Passeio noturno” 1 escrito por ele, nos leva a uma reflexão profunda e cruel sobre o ser humano, afastando completamente do nosso senso comum a racionalidade polida diariamente através das diretrizes e ordenamentos sociais. Naquelas palavras a personagem principal se dividia entre o ápice do seu primitivismo e da sua razão bem lapidada, num antagonismo sem precedentes.
Durante muito tempo, então, eu pensei que o meu choque diante daquela obra literária era por conta da pouca idade e, desse modo, uma carência natural de maturidade para lidar com aquele tipo de leitura. Os nervos a flor da pele por conta do Vestibular, também, não ajudavam muito a buscar uma compreensão menos emocional daquele texto, que acabou permanecendo no meu inconsciente, como algo tão difícil de aceitar que só caberia mesmo no campo do imaginário literário.
Pois é, só que em pouco mais de duas décadas a sociedade pirou, inverteu valores e princípios, e para o meu total espanto e indignação a vida real passou a exibir roteiros adaptados do conto de Rubem Fonseca. A ficção ganhou as páginas da ronda policial pelo Brasil e pelo mundo, fixando o perfil de uma violência permeada de cinismo, indiferença e altas doses de sociopatia 2.
Os inesperados atropelamentos coletivos vêm se destacando no cenário social. Alguns episódios são justificados pelo uso de álcool e entorpecentes pelos motoristas, que não deveriam dirigir sob o efeito dessas substâncias. Outros, como o ocorrido ontem em Barcelona3, ganham notoriedade pela justificativa terrorista. Mas, a verdade é que são seres humanos matando outros seres humanos sem o menor sinal de culpa ou arrependimento. Basta um carro em seu poder e pronto, a tragédia está construída.
E tudo isso é perturbador, pois não há como prever esse tipo de violência. A sociedade passa a viver em constante estado de apreensão e vulnerabilidade, sem que possa necessariamente se proteger; o que traz para o agressor uma sensação indizível de prazer e de vitória. Além disso, os atropelamentos coletivos propagam o raio de violência sobre a sociedade, na medida em que essa atinge não só os feridos e as vítimas fatais, mas suas respectivas células familiares e amigos.  
Uma violência que não se consegue ressignificar do ponto de vista racional irá repercutir indefinidamente sobre a vida dos envolvidos direta e indiretamente. Afinal de contas, uma perda, seja ela de que dimensão for, causada voluntariamente por terceiros  contrapõe o senso racional e natural de preservação da própria espécie. Alguém se apoderou do direito à vida, decidindo num dado momento quem deveria ou não viver. Então, como aceitar algo assim? A quem estamos outorgando esse tipo de decisão?
A realidade dos atropelamentos coletivos está fomentando uma onda de sofrimentos sem precedentes, cujos resultados em longo prazo poderão ser terríveis para a sociedade. A convivência diária e extrema com a dor, de diferentes tipos, pode ocasionar o esgarçamento das bases emocionais e afetivas da raça humana. O que resultará desse processo é uma grande incógnita, embora as previsões possam acenar para comportamentos nada positivos e altruístas, com exacerbação das tensões sociais; pois, na vida real, ao contrário da ficção, o final da história nem sempre pode ser atenuado ou modulado.
Quando me lembro da minha dificuldade de respirar depois daquela aula de literatura no colegial, chego a sorrir sem graça. Nem nos piores pensamentos eu poderia supor que, em tão pouco tempo, o mundo real se tornaria de uma hostilidade, de uma perversidade capaz de nos retirar a cada segundo a vontade de respirar.  
Por isso, hoje, capaz de lidar com as nuances da literatura, mas totalmente incapaz de sobreviver às desventuras dessa realidade tóxica, o que me vem à mente são as palavras de outro grande escritor, Carlos Drummond de Andrade 4, que na sua inquietude mineira nos deixou a pergunta que não quer calar: “E agora, José”?5


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