Ficção. Realidade. Fantasmas
da mente humana.
Por Alessandra Leles
Rocha
Há vinte e cinco anos eu fui impactada
por um conto de Rubem Fonseca, quando me preparava para o Vestibular. O tal
“Passeio noturno” 1 escrito
por ele, nos leva a uma reflexão profunda e cruel sobre o ser humano, afastando
completamente do nosso senso comum a racionalidade polida diariamente através
das diretrizes e ordenamentos sociais. Naquelas palavras a personagem principal
se dividia entre o ápice do seu primitivismo e da sua razão bem lapidada, num
antagonismo sem precedentes.
Durante muito tempo, então, eu pensei
que o meu choque diante daquela obra literária era por conta da pouca idade e,
desse modo, uma carência natural de maturidade para lidar com aquele tipo de
leitura. Os nervos a flor da pele por conta do Vestibular, também, não ajudavam
muito a buscar uma compreensão menos emocional daquele texto, que acabou
permanecendo no meu inconsciente, como algo tão difícil de aceitar que só
caberia mesmo no campo do imaginário literário.
Pois é, só que em pouco mais de duas
décadas a sociedade pirou, inverteu valores e princípios, e para o meu total
espanto e indignação a vida real passou a exibir roteiros adaptados do conto de
Rubem Fonseca. A ficção ganhou as páginas da ronda policial pelo Brasil e pelo
mundo, fixando o perfil de uma violência permeada de cinismo, indiferença e
altas doses de sociopatia 2.
Os inesperados atropelamentos coletivos
vêm se destacando no cenário social. Alguns episódios são justificados pelo uso
de álcool e entorpecentes pelos motoristas, que não deveriam dirigir sob o
efeito dessas substâncias. Outros, como o ocorrido ontem em Barcelona3,
ganham notoriedade pela justificativa terrorista. Mas, a verdade é que são
seres humanos matando outros seres humanos sem o menor sinal de culpa ou
arrependimento. Basta um carro em seu poder e pronto, a tragédia está
construída.
E tudo isso é perturbador, pois não há
como prever esse tipo de violência. A sociedade passa a viver em constante
estado de apreensão e vulnerabilidade, sem que possa necessariamente se
proteger; o que traz para o agressor uma sensação indizível de prazer e de
vitória. Além disso, os atropelamentos coletivos propagam o raio de violência
sobre a sociedade, na medida em que essa atinge não só os feridos e as vítimas
fatais, mas suas respectivas células familiares e amigos.
Uma violência que não se consegue
ressignificar do ponto de vista racional irá repercutir indefinidamente sobre a
vida dos envolvidos direta e indiretamente. Afinal de contas, uma perda, seja
ela de que dimensão for, causada voluntariamente por terceiros contrapõe
o senso racional e natural de preservação da própria espécie. Alguém se
apoderou do direito à vida, decidindo num dado momento quem deveria ou não
viver. Então, como aceitar algo assim? A quem estamos outorgando esse tipo de
decisão?
A realidade dos atropelamentos
coletivos está fomentando uma onda de sofrimentos sem precedentes, cujos
resultados em longo prazo poderão ser terríveis para a sociedade. A convivência
diária e extrema com a dor, de diferentes tipos, pode ocasionar o esgarçamento
das bases emocionais e afetivas da raça humana. O que resultará desse processo
é uma grande incógnita, embora as previsões possam acenar para comportamentos
nada positivos e altruístas, com exacerbação das tensões sociais; pois, na vida
real, ao contrário da ficção, o final da história nem sempre pode ser atenuado
ou modulado.
Quando me lembro da minha dificuldade
de respirar depois daquela aula de literatura no colegial, chego a sorrir sem
graça. Nem nos piores pensamentos eu poderia supor que, em tão pouco tempo, o
mundo real se tornaria de uma hostilidade, de uma perversidade capaz de nos
retirar a cada segundo a vontade de respirar.
Por isso, hoje, capaz de lidar com as
nuances da literatura, mas totalmente incapaz de sobreviver às desventuras dessa
realidade tóxica, o que me vem à mente são as palavras de outro grande
escritor, Carlos Drummond de Andrade 4,
que na sua inquietude mineira nos deixou a pergunta que não quer calar: “E
agora, José”?5
5 http://noticias.universia.com.br/destaque/especial/2011/10/31/883898/12/20-poemas-carlos-drummond-andrade/poemas-carlos-drummond-andrade-jose.html