ESTIRAMENTO
DO LIMITE
Por
Alessandra Leles Rocha
Infelizmente, não é possível
se manter indiferente aos acontecimentos do mundo. Direta ou indiretamente seremos
respingados pelos acontecimentos e, com certeza, haveremos de pagar muitas outras
contas, além das que já nos cabem. Então, ainda que sem muito a fazer de
concreto, nos cabe analisar com uma boa dose de criticidade o que emerge ao
nosso redor, para, quando possível, tomarmos decisões mais consistentes e
coerentes, com menos risco de prejuízo a nossa estabilidade social.
Não é de hoje que a questão
da segurança pública, sobretudo, o sistema carcerário, segue fervendo em
banho-maria. Um dia o caldo, então, haveria de entornar - e entornou. Começamos
o ano impactado pelas notícias e pela maneira como os fatos têm sido conduzidos
pelas autoridades e pelos encarcerados. Uma verdadeira Babel onde o senso comum
parece distante de ser atingido.
Então, diante de tudo isso, eu
percebo um estiramento do limite existente entre a legalidade e a moralidade. Todos
nós sabemos que o que não nos falta no Brasil são leis, códigos e doutrinas,
contemplando a quase totalidade das demandas oriundas das relações sociais. No entanto,
da mesma forma, somos capazes de perceber aqui e ali uma fragilidade constante que
permeia a aplicação e a fiscalização desses instrumentos de justiça, tornando a
sociedade mais e mais injustiçada.
É nesse sentido que eu
entendo o estabelecimento de um abismo entre o que é legal (está em legítima
conformidade com as leis) e o que é moral (está abrigado em um conjunto de
regras de conduta ou hábitos julgados válidos seja no âmbito coletivo ou
individual); na medida em que, esses dois princípios não caminham juntos no
país. Deveriam; mas, nem sempre é assim.
Então, dada a essa
dissociação, a legalidade, não raras às vezes, fere a moralidade e põe em desequilíbrio
a paz e a harmonia social. Se por um
lado a questão se ampara na lei, do outro ela constrange os valores e princípios
morais de uma sociedade. Por exemplo, o celular dentro de centros de reclusão
(cadeias, presídios, penitenciárias) não pode, de acordo com a lei; mas, está. Então,
colocam antenas para bloquear o aparelho. Hã?! Como assim?
Daí, a importância do papel
legislador, no que diz respeito à elaboração de normas jurídicas que estejam mais
próximas possíveis da moralidade, com vistas a não fazer delas instrumentos de
guerra e de efervescência social.
No entanto, esse abismo não
se constitui somente a partir do prisma do legislador. Quando o gestor precisa se
valer dessa legislação e estabelecer o arcabouço logístico para sua
implementação, ele também não pode se eximir da responsabilidade moral imbuída nesse
processo. As edificações de alguns centros de reclusão, por exemplo, além de serem
totalmente frágeis do ponto de vista estrutural, tiveram um alto custo para
serem construídas.
Desse modo, é que o
esfacelamento entre as atitudes dos elos - Legislativo, Executivo e Judiciário –
faz com que esse ciclo, denominado Segurança Pública e previsto dentro da
Constituição Federal de 1988, como um dos Direitos Sociais, encontra aberto
precedentes para o avanço das práticas da desordem e do descumprimento legal. Vejamos
que o simples fato da carência de um trato comum para questão, por parte de
todos os entes federativos do país (Municípios, Estados e União), já demonstra
um alto grau de inconsistência nas ações.
Precisamos perceber que esse
distanciamento entre a legalidade e a moralidade subverte a igualdade prevista
constitucionalmente aos cidadãos brasileiros; a qual implica diretamente na existência
de direitos e obrigações a todos sem distinção. De certa forma, esse
distanciamento se traduz aos olhos da sociedade como uma flexibilização dos princípios
norteadores da justiça no país, ou seja, como se a lei não precisasse ser
necessariamente cumprida por todos e pudesse ser interpretada segundo critérios
próprios de valor ou pela vontade do freguês.
No entanto, os prejuízos refletidos
pelas consequências desse distanciamento recaem sobre toda a população; afinal,
para que se possa enfrentar as questões de (in)segurança, bastará a existência de
desequilíbrio na aplicação dos recursos, destinados a atender satisfatoriamente aos Direitos Sociais, para que a instabilidade comece a se acirrar.
Distantes de reverter os gravíssimos
prejuízos econômicos impostos pelas más administrações públicas, os quais
comprometeram a dignidade e a qualidade de vida de milhões de brasileiros, e
que agora cobram a rudeza de medidas antipopulares; estamos diante do
impasse inevitável da Segurança Pública. Chegamos ao limite e em relação às velhas
práxis não há mais como sustentá-las e nem, tampouco, há mais tempo para remendos.
Esse estiramento do limite impõe tomar atitudes planejadas, certas, precisas;
principalmente, porque em tempos de vacas magras não se pode brincar com o
pouco recurso que se tem.
Então, quem sabe agora a legalidade
e a moralidade caminhem de mãos dadas; inaugurando tempos de uma consciência cidadã
mais concreta. Afinal, como disse Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, “Decidir o
destino de terceiros, distribuir o bem e o mal, eis o que aproxima os príncipes
dos deuses e dos demônios”.