Um por todos e todos por um.
Será?!
Por Alessandra Leles Rocha
51,9% da população do Reino Unido concordaram, no plebiscito realizado na
última quinta-feira, pela saída da União Europeia (UE). Então, não há como não
ficar estarrecido depois de uma noticia como esta. Mais do que nunca, a
situação pede parar e refletir profundamente sobre o que está submerso nas
entrelinhas de uma decisão como esta.
A economia que move o mundo pode concentrar muitas das explicações práticas
em relação ao ocorrido; mas, ela não é o suficiente e, talvez, o mais relevante
em tudo isso. São as questões identitárias as grandes responsáveis por movimentos
de ruptura e isolamento que tem se expandido mundo afora; bem como, pelo
ressurgimento exacerbado dos apelos conservadores e de extrema direita, os
quais tendem a conduzir as sociedades aos mais perigosos sentimentos de
ultranacionalismo 1, como por exemplo, a
xenofobia.
Segundo o teórico
cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall, “A questão da identidade está sendo
extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte:
as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise
de identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança,
que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas
e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social” 2.
E
nesse contexto, Hall acrescenta que, “As
culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas
também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que
temos de nós mesmos (veja Penguin
Dictionary of Sociology: verbete "discourse"). As culturas nacionais, ao produzir sentidos
sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar,
constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e
imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a
identidade nacional é uma "comunidade imaginada".
Diante
dessas considerações é fácil pensar o quanto a globalização e seus
desdobramentos, como é o caso da imigração, que afeta diretamente o continente europeu
nesse século, representa uma ameaça às identidades pré-concebidas. Desse modo, “A globalização implica um movimento de
distanciamento da ideia sociológica clássica da "sociedade" como um
sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra
na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço"
(Giddens, 1990, p. 64) 3.
E
o próprio Hall tece considerações sobre a Grã-Bretanha em relação a essas
discussões, dizendo que: “Como esta
situação tem se mostrado na Grã- Bretanha, em termos de identidade? O primeiro
efeito tem sido o de contestar os contornos estabelecidos da identidade
nacional e o de expor seu fechamento às pressões da diferença, da
"alteridade" e da diversidade cultural. Isto está acontecendo, em diferentes
graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e, como consequência, fez com
que toda a questão da identidade nacional e da "centralidade"
cultural do Ocidente fosse abertamente discutida. Num mundo de fronteiras
dissolvidas e de continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da
identidade britânica têm sido postas em questão. Num país que é agora um
repositório de culturas africanas e asiáticas, o sentimento do que significa
ser britânico nunca mais pode ter a mesma velha confiança e certeza. O que
significa ser europeu, num continente colorido não apenas pelas culturas de
suas antigas colônias, mas também pelas culturas americanas e agora pelas
japonesas? A categoria da identidade não é, ela própria, problemática? E
possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade
coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são
questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais
globais. Os confortos da Tradição são fundamentalmente desafiados pelo
imperativo de se forjar uma nova auto interpretação, baseada nas
responsabilidades da Tradução cultural (Robins, 1991, p. 41)” 4.
No
entanto, embora tentemos pensar a complexidade de tudo isso na ótica da decisão
de quinta-feira; a verdade é que as transformações do mundo são um fato, o qual
não é possível voltar atrás ao que o mundo pós-moderno já nos impôs. Qualquer
país que tente lutar contra o fluxo natural dos movimentos que regem a
sociedade estará promovendo um desequilíbrio muito maior para si mesmo. Ainda que
a escolha tenha sido democrática, ao contrário do que pensaram os 51,9% da população do Reino Unido, a consequencia
imediata dela foi fortalecer a sua própria vulnerabilidade, na medida em que o
resultado sustenta o fomento de discursos altamente conservadores que tentam se
firmar novamente na Europa. Lembrando que foram esses mesmos discursos que
conduziram o mundo à Segunda Guerra Mundial; daí a imensa preocupação que toma
conta de todos.
As tensões que se
emergem de um passo como esse são incalculáveis. Há muita coisa em jogo para milhões de
pessoas, não apenas dentro da Grã-Bretanha ou da Europa como um todo, as quais abrangem
os diversos tipos de relação social existentes. As rupturas no mundo
pós-moderno podem cobrar um ônus muito maior do que a construção de um modelo
de cooperação mútua entre os países. Nenhum estado pode se afirmar
verdadeiramente autossuficiente. Não é à toa os esforços implementados pela
Organização das Nações Unidas (ONU), no sentido de propor metas que visem fortalecer
os mecanismos de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável e a paz 5.
Portanto, cabe aos
britânicos e não britânicos a reflexão acerca dos seus valores, comportamentos,
escolhas, ou seja, na repercussão da sua cidadania. O voto é uma conquista
valiosa na história da democracia mundial; mas, também, um passo de grande
responsabilidade. O ser humano não vive só dos seus direitos; todo direito
implica em dever, em obrigação e, por essa razão, em assumir as consequências
de seus atos e omissões. A história escreve mais uma página, mais uma lição
para o hoje e o amanhã; resta-nos, então, aprender e apreendê-la.
1
Ultranacionalismo refere-se a ideologias político-filosóficas de extrema
direita, de teor populista e chauvinista. O Ultra-Nacionalismo traz o
sentimento de amor à Nação Ufanizada, com o sistema Conservador, que se torna
uma forma política de teor populista. A base do Ultra-nacionalismo é o
Nacionalismo comum, que sozinho não se trata de uma forma de pensamento
político. O ultranacionalismo supõe a homogeneidade étnica como base da
manutenção da ordem política e social. A partir desse pressuposto, são legítimas
as medidas de limpeza étnica. [...] http://dicionarioportugues.org/pt/ultranacionalismo
2
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade,
DP&A Editora, 1ª edição em 1992, Rio de Janeiro, 11ª edição em 2006, 102
páginas, tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
4 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade, DP&A Editora, 1ª edição
em 1992, Rio de Janeiro, 11ª edição em 2006, 102 páginas, tradução: Tomaz Tadeu
da Silva e Guacira Lopes Louro.