A
insustentável invisibilidade do ser!
Por
Alessandra Leles Rocha
É; a vida realmente teima em nos
surpreender! Pena que nem sempre, ou quase sempre, seja negativamente. Há três
dias que as mídias nacionais e internacionais dão destaque ao brutal estupro de
uma jovem de dezesseis anos na cidade do Rio de Janeiro. Não, a Lei Maria da Penha 1
continua vagando solitária na sua missão de proteger as mulheres brasileiras da
violência.
Segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira na sua
totalidade já ultrapassa a casa de 205 milhões de habitantes, sendo que 50,64%
são mulheres. No entanto, quando a defesa dos direitos humanos e constitucionais
dessas cidadãs é questionada, quase sempre elas acabam sendo estereotipadas no
rol das chamadas “minorias sociais”, conjuntamente com a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros), os indígenas, os afrodescendentes;
enfim, todos os brasileiros e as brasileiras marcados pela indiferença e
invisibilidade social.
Vejamos que apesar da manifestação pontual
de apoio a essa mais recente vítima da barbárie, não vimos caminhar pelas ruas
do país uma multidão em defesa dos direitos humanos. Toda aquela indignação que
parecia ter ganhado espaço e força desde junho de 2013, de repente ficou muda,
silenciosa; talvez, quem sabe, remoendo escondida a sua decepção com o ser
humano. Mas, isso é bem sintomático, quando pensamos no quanto a mulher,
enquanto símbolo majoritário dessa sociedade continua sendo esquecida,
negligenciada, desrespeitada, violentada na sua existência.
Muito embora, venha delas, do seu
suor diário, uma parcela significativa dos recursos nacionais. Sim, senhoras e
senhores, quantas mulheres vivendo em favelas ou em mansões movimentam a
máquina econômica desse país através do seu trabalho? Ainda que recebam por
cada dia de labuta salário desigual aos homens, por força da inexistência de
uma lei que alterasse esse panorama e, também, pusesse fim ao sentimento de
inferioridade que tantos homens lhes imputam por isso. Aliás, quantos não fazem
dessa discrepância financeira argumento para subjugar, dominar e agir com
violência em relação as suas companheiras, dando-lhes ciência de que a
separação só lhes causaria prejuízos sociais e financeiros e assim, conseguindo
mantê-las cativas de suas violências.
Lá se vão 37 anos desde a estreia
do seriado Malu Mulher, exibido pela Rede Globo de Televisão, e os dilemas
enfrentados pela personagem título, no fim da década de 70, permanecem praticamente
os mesmos. O mundo evoluiu muito, mas não o bastante para crescer em comunhão
com a igualdade de gênero, com o respeito à dignidade humana. E essa
responsabilidade recai sobre todos nós, de todas as raças, credos, etnias,
profissões, status social, grau de escolaridade, quando nos omitimos diante de
verdades que julgamos ‘tão inconvenientes’.
Aliás, continuamos a doutrinar
nossas crianças desde a primeira infância quanto aos papeis sociais de meninos
e de meninas, a começar pelas tarefas domésticas. Continuamos superestimando o
casamento tradicional em detrimento da educação e qualificação da mulher, como
se ela só viesse a existir socialmente mediante uma larga aliança dourada na
mão esquerda. Continuamos a subjugar as mulheres à ditadura da beleza, da moda,
do consumo e a segrega-las impiedosamente quando não correspondem aos padrões preestabelecidos.
Enfim...
E se mulheres têm galgado, apesar
de todos os pesares, o seu espaço na sociedade; qual foi preço exigido? Mesmo
diante dos constantes desdobramentos entre tantos compromissos sociais e
familiares, poucas são as que de fato recebem algum reconhecimento. Na maioria
das vezes, o seu máximo nunca é o bastante, ou suficiente, para contestar as
constantes manifestações contrárias as suas competências e habilidades. Ao sinal
da menor falta, elas são severamente punidas e desqualificadas de todas as formas,
inclusive como pessoas.
Não é à toa, que esse círculo de perversidades
têm as feito adoecer. As chamadas “Doenças da Modernidade” –
cardiocirculatórias (infarto, acidente vascular cerebral, trombose, embolia), estresse,
diabetes, alimentação desregrada e consumo exacerbado de fumo e bebidas
alcoólicas têm lhes causado impactos e consequências irreparáveis. Por detrás das
aparências, há uma legião de mulheres doentes do corpo e da alma sem que
ninguém lhes perceba a existência. Vê-se, então, que elas não morrem só da violência
urbana, ou doméstica, ou marital; mas, daquela que se esconde por detrás dos
discursos, dos clichês, das imposições de uma sociedade pautada na desigualdade.
Portanto, a perplexidade diante do
horror dos últimos acontecimentos, por si só é inútil. É fundamental que haja
um posicionamento da sociedade em relação aos fatos, aos valores, aos padrões. Estamos
continuamente nos horrorizando diante das barbáries, como se tudo estivesse tão
distante de nós... Não, tudo está bem diante do nosso nariz, nítido em nossa retina.
Lamentavelmente, eu tenho que admitir que esses absurdos não são um privilégio
nacional, haja vista a luta da ativista paquistanesa Malala Yousafzai em
favor dos direitos humanos das mulheres e do acesso delas à educação na sua
região; mas, isso não significa que devemos aceitar tudo como está
resignadamente, como se não houvesse solução.
Em tempos em que a discussão sobre
o conceito de família tem gerado tanta polêmica e acirramento de ânimos,
caberia nesse momento tão dramático pensar em quantas mulheres estão no
contexto de uma família. Gostaríamos que uma filha, uma irmã, uma sobrinha, ou
alguém do nosso núcleo familiar passasse por algo semelhante? Mas, quem pode se considerar a salvo diante de
uma violência que extrapola todos os limites, que não respeita valores ou
padrões? Andamos tão repletos de ‘travas nos olhos’ que estamos enceguecidos e
incapazes de enxergar o ser humano. A violência
não fere ou mata só as suas vítimas, ela repercute também na figura da
orfandade física e moral sentida pelas famílias, pelos amigos, por toda a
sociedade. Frente à comoção da opinião pública, certamente, os culpados serão legalmente
presos e punidos; mas, é preciso também que a população como um todo reflita
sobre o ocorrido e repense seu estranho modo de invisibilizar os semelhantes,
de estereotipá-los e de considerar que existem vidas que valem mais ou menos.