Com
que roupa???
Por
Alessandra Leles Rocha
No contexto
de uma mania instituída em analisar os fatos na superficialidade mais rasa possível,
deparei-me com a notícia de que na China está em discussão qual o tipo de roupa
mais adequado para mulheres que utilizam o metrô; já que, uma cidadã foi
fotografada utilizando uma roupa bastante transparente 1.
Segundo o governo chinês, a utilização de roupas mais ousadas, transparentes,
poderiam incitar e aumentar os casos de violência contra as mulheres. A chegada
do verão naquele ou em quaisquer outros países sempre conduz ao uso mais livre
e descontraído de roupas curtas, leves e, algumas vezes, transparentes; então,
o burburinho foi total e as diferentes correntes de pensamento puseram a
defender seus pontos de vista. Sempre reprimidas e massacradas pela sociedade,
as mulheres se dividiram entre as que protestaram na defesa livre de sua
escolha pelo o que vestir e outras que manifestaram sua concordância com a
ideia de uma busca mais adequada pelo vestuário, evitando-se dessa forma
eventuais dissabores.
Nem moralismos,
nem modismos, nem feminismos. Em primeiro lugar é preciso entender que a
vestimenta é em essência um dos diversos tipos de símbolos da linguagem humana.
Por falarmos pelos cotovelos, muitas vezes nos passa realmente despercebido que
a linguagem não se dá estritamente pela fala, mas por diferentes formas,
incluindo o próprio corpo. A expressão corporal, ainda que involuntária ou inconsciente,
carrega elementos de subjetividade que torna sua tradução ou interpretação
extremamente variável; afinal, nem todos os sinais são puros e objetivos. E,
infelizmente, a significância sexual do corpo é intrínseca ao pensamento
humano, especialmente no contexto do universo masculino; por isso, ainda que
não justifique de forma alguma um ato de violência, para mentes perturbadas e
doentes, qualquer coisa pode conduzir a essa interpretação totalmente
equivocada.
Quando
coberto pela vestimenta essa subjetividade fica maior, e em alguns casos, até produz
um efeito estimulador da psique humana. Uma miscelânea de traços socioculturais
interfere na dinâmica da escolha do que irá se vestir e consequentemente na
forma com que serão decodificados. Estereótipos são criados e passam a povoar o
universo social como verdadeiros personagens; mesmo que, para a grande maioria
das pessoas a escolha da roupa não passe de mero palpite do dia.
Mas,
desde o homem das cavernas, a vestimenta dá o seu recado: grandes peles de
animais para proteger do frio, tangas (também de couro animal) nos dias mais
quentes. Lembremos os anos sessenta, por exemplo, e James Jean com sua jaqueta
de couro, a calça jeans e a camiseta branca. Bem mais que a rebeldia do galã de
Hollywood, havia todo o discurso do “american way of life” que dava vazão ao
imperialismo americano a mostrar as vantagens do consumo e da liberdade de
escolha, fazendo contraponto à uniformização imposta pelos regimes socialistas
(especialmente a China), com seus modelos cáquis que faziam parecer uma massa
humana igualitária e obediente ao regime.
Em pleno
século XXI, quando as roupas já deveriam ter alcançado simplesmente a sua função
básica de cobertura corporal, elas continuam motivo de discórdia, de intolerância,
de preconceito, ou de violência. A sociedade então, profundamente, segmentada
em grupos diversos mantem viva a chama de se reconhecer ou segregar a partir da
vestimenta. Retrôs, bregas, peruas, piriguetes, vanguardistas, tradicionais,
cults,... a lista é longa! Mas, embora vestidos, a verdade é que a grande
maioria continua totalmente despida da sua consciência cidadã. Nenhuma vestimenta
consegue encobrir as lacunas das misérias humanas: esconder a ignorância,
mascarar os preconceitos, envernizar a hipocrisia, disfarçar a falta de
educação,... Troca-se muito de roupa,
mas não de alma, de essência, de valores! Os guarda-roupas, quase sempre cheios,
descrevem a saga do consumo e da liberdade; mas, paralelamente, apontam as insustentabilidades
do planeta. Com tantos sinais apocalípticos, a migração abrupta estendendo-se
diante dos olhos, quem sabe um dia, o chique da moda se converta apenas em ter
algo para se vestir, independente do que for, hein?!