domingo, 31 de outubro de 2010

Crônica: Mais um dia

Por Alessandra Leles Rocha

            Mais um dia. Mesmo que chegara amparado nos braços da aurora chuvosa e triste, o novo ciclo começa para o cumprimento de nossas tarefas, os acontecimentos que nos arrebatarão de alegria ou pesar, a certeza de estarmos vivos. Embora devesse sempre vir coberto pelo comprometimento consciente das responsabilidades intrínsecas ao correr dos ponteiros do relógio, quase nunca é dessa forma que se enxerga cada período de vinte e quatro horas.
         Quando se fala no dia até parece que seu findar está longe de ser alcançado; mas, ele é breve, um piscar mais demorado e ao abrirmos os olhos o sol já cedeu lugar aos encantos da lua. E talvez seja esse postergar a uma impressão distante do tempo, como se tudo fosse demorar muito para acontecer e ser vivido, é que a humanidade se rende a inconsequência do descompromisso e da imprevidência. Como se esperassem sempre uma oportunidade melhor, mais atrativa, mais agradável, menos exaustiva... assim, caminham em passos de tartaruga e reclamações sem fim; a realidade trazida aos primeiros raios de sol nunca lhes é o bastante ou se é, não são capazes de percebê-la por causa da sua morosidade existencial.
         A dádiva de sentir o sangue correndo veloz pelas veias, pulsando o coração, despertando o corpo dos braços macios de Morfeu1, não é e nem nunca foi desvinculada de reciprocidade ativa por parte do ser humano. Se estamos vivos é porque temos algo a cumprir, a realizar, a transformar, a produzir; ao contrário de permanecer em uma inércia contemplativa e sem sentido, que foge das agruras do corpo e da alma para se esconder na ilusão de um mundo pleno e quase perfeito, o qual pouco dependeria de nós. Não estamos aqui de passagem, a convite da diversão e da irresponsabilidade, apenas para desfrutar, receber e ser muito feliz. Se há quem acredite na gratuidade das coisas, como se não houvesse preço a pagar, é porque está inebriado na tolice ingênua de ter o mundo aos seus pés apenas lhe servindo.
         Cada novo dia soa as trombetas para nos conclamar para que sejamos trabalhadores da última hora, com direito a recebermos a paga legítima, por estarmos sempre à disposição de servir, sem preguiça ou má vontade. Trabalhadores de última hora, porque se não tomamos consciência do dever desde a mais tenra alvorada existencial, não deixamos de fazê-la antes de falecer. Trabalhadores de última hora que sabem e reconhecem o valor do dever cumprido, bem feito; único capaz de apaziguar a mente e o espírito, de colocar sobre a mesa da vida o banquete mais farto e mais agradável ao paladar. Recebemos o chamado sem alardes, sem cobranças, ele apenas se repete a cada vinte e quatro horas e depende de nós estarmos abertos à compreensão do que ele nos diz; simplesmente o reger natural da Lei da Ação e Reação.
          Diz o homem do campo, na sua singela sabedoria, que “Deus ajuda a quem cedo madruga”. A sociedade contemporânea vive uma crise profunda de identidade, de valores e de comportamentos. A superficialidade das análises e reflexões tem gerado impactos e distorções profundas nas relações sociais. O ser humano tem deixado de sustentar a sua gênese para se mascarar e buscar a aceitação social e as benesses que disso podem surgir. Gradativamente estão abolindo o valor do trabalho, do sacrifício, do mérito, em nome de uma ampla e farta disponibilização de oportunidades sem pesos ou medidas. Estão criando uma legião de trabalhadores de última hora que apenas almejam o salário e nem ao menos se dispuseram, enquanto esperavam, a desenvolver e evoluir a si mesmos. Não estão preocupados com o hoje, nem com o amanhã, sob a égide de que com fé nada os faltará.
         Vejo consternada, as vítimas de tantas catástrofes e infortúnios sociais pelo mundo e o quanto é árdua a reconstrução quando não se sabe ao certo por onde começar. São nessas situações que o dia não rompe suave à noite, ele açoita e joga ao chão da realidade os indivíduos para que arregacem as mangas e busquem nos mais tênues fiapos de esperança o combustível para seguir em frente e construir o legado de uma vida, por menor que possa ser. Cada um sabe de si, tem responsabilidade sobre seus caminhos, e a vida há de cobrar, hoje ou amanhã, na medida exata dos atos e omissões o ônus do certo e do errado, do Bem e do Mal, do trabalho e da indolência - seja ela física ou moral.                       


1 http://pt.wikipedia.org/wiki/Morfeu