O poder
das palavras
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando um assunto ganha as
páginas da imprensa e explode em discussão coletiva por todos os espaço
geográficos possíveis, é um ótimo sinal. Chegou-se ao limite do silenciamento,
do obscurantismo, do proibido, de algo que tanto sufocava e alimentava uma série
de angústias e questionamentos sociais.
O que muitas vezes não se percebe, em um primeiro momento, é que esse
grito de liberdade transcende ao seu próprio estopim deflagrador.
Aliás, vale aqui ressaltar a
seguinte reflexão: “Ora, todo discurso já traz em si a definição – mais, ou
menos, precisa – de lugares ou de posições subjetivas a serem ocupados por este
ou aquele indivíduo, segundo as relações políticas e sociais e, portanto,
ideológicas admitidas e construídas num dado momento histórico-social, num dado
discurso – sempre em formação -, determinantes da (s) verdade (s) a ser (em)
assumida (s). É claro que essas posições podem sofrer modificações, mas jamais
repentinas: muitas vezes, passam imperceptíveis, até que algum acontecimento as
evidencie” (CORACINI, 2005, p.30) 1.
Por isso, a repugnância social
despertada pelo Projeto de Lei (PL) 1904/2024 tem um amplo espectro de razões
legítimas e incontestáveis. Mas, o ponto nevrálgico de todas elas, está na
histórica objetificação feminina atravessada pelo patriarcado, a qual, não
raras as ocasiões, é sufocada pela forçosa abstenção da sua discussão, em razão
do peso da assimetria das relações de poder.
É, não basta que as mulheres
representem 51,5% (104.548.325) 2 da
população brasileira. O fiel dessa balança não é estatístico! As rédeas do
mundo permanecem em mãos masculinas, apesar de todos os pesares. Portanto, há
milênios, se construiu a ideia objetificante da figura feminina que permite
legitimar a sua desumanização sob as mais diversas formas e conteúdos.
Tratada como objeto, como coisa,
pela sociedade, a mulher é despida da sua dignidade humana, a fim de se tornar
submissa, obediente, respeitosa e subordinada, a quaisquer decisões ou
determinações estabelecidas pelas figuras do poder masculino. O que significa
que essa recente discussão, no Brasil, trouxe à tona a reflexão em torno do
patriarcado, ou seja, a existência histórica de um sistema sociopolítico que
coloca majoritariamente os homens em situação de poder, de controle, de punição
e de decisão.
A objetificação feminina é,
portanto, um instrumento manejado pelo patriarcado. O que significa que não
importa se estamos no século XVI ou no século XXI, se as influências dogmáticas
religiosas são católicas ou protestantes, se a ciência merece respeito ou não,
... Esse ideário é parte integrante e integrada da identidade nacional, do
Brasil. Em maior ou em menor escala, o patriarcado se expressa continuamente na
sociedade brasileira; sobretudo, reafirmando a manutenção das assimetrias de
direitos e deveres.
Entende agora, os motivos de
impor uma lei que criminaliza a mulher, a partir da revitimização reverberante
da violência (o estupro) por ela sofrida?
Entende agora, os motivos que privilegiam e atenuam a responsabilização
de um estuprador, atribuindo-lhe, inclusive, o status da paternidade de um
filho gerado pela mais abjeta violência?
... No patriarcado o poder pertence aos homens, em todas as suas
expressões, ou seja, na política, na justiça, na religião, na cultura.
Simplesmente, porque esse sistema
se sustenta sem precisar se impor pela força numérica dos seus representantes,
do ponto de vista demográfico. Está na própria organização social os
fundamentos que favorecem o gênero masculino em detrimento ao feminino. Com
atenção especial ao homem branco, cisgênero e heterossexual, tendo em vista o
modelo eurocêntrico colonial.
Por isso, a perpetuação das
violências, do isolamento, da estigmatização e de todas as desigualdades deve
ser entendida como uma política de afirmação da objetificação feminina, dentro
dos diferentes espaços sociais brasileiros. A intenção de que não haja ruptura
da estabilidade histórica de regalias, privilégios e poderes do gênero
masculino, no Brasil, é o que está posto em qualquer discussão objetificante da
mulher. É sobre isso.
Bem, “[...] se alargarmos a
concepção de leitura e a considerarmos uma possibilidade de perceber o espaço
social, então ler passa a significar lançar um olhar à nossa volta e perceber o
que nos rodeia. Isso pode ser feito apenas para confirmar nossos pontos de
vista ou para problematizar, questionar o que, aparentemente, não pode ou não
deve ser questionado... “(CORACINI, 2005, p.39). De modo que é preciso
aproveitar o momentum, quando a energia dos acontecimentos está em pleno
ímpeto, em pleno impulso, em plena pujança, para FALAR, ARTICULAR, DIZER,
EXPRESSAR, PRONUNCIAR, DIALOGAR, sobre a leitura que fazemos do contexto atual.
Afinal, parece não restar mais dúvidas
de que “A língua envolve todas as ações e pensamentos humanos e possibilita
ao indivíduo exercer influências ou ser influenciado pelo outro, desempenhar
seu papel social na sociedade, relacionar-se com os demais, participar na
construção de conhecimentos e da cultura, enfim, permite-lhe se constituir como
ser social, político e ideológico [...]” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.25-26) 3.
1
CORACINI, M. J. R. F. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: LIMA, R.
C. de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de
Letras; São João da Boa Vista: Unifeob, 2005. p.15-44.
2
Dados do Censo Demográfico (2022) realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
3 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013.