sábado, 15 de junho de 2024

O poder das palavras


O poder das palavras

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando um assunto ganha as páginas da imprensa e explode em discussão coletiva por todos os espaço geográficos possíveis, é um ótimo sinal. Chegou-se ao limite do silenciamento, do obscurantismo, do proibido, de algo que tanto sufocava e alimentava uma série de angústias e questionamentos sociais.  O que muitas vezes não se percebe, em um primeiro momento, é que esse grito de liberdade transcende ao seu próprio estopim deflagrador.

Aliás, vale aqui ressaltar a seguinte reflexão: “Ora, todo discurso já traz em si a definição – mais, ou menos, precisa – de lugares ou de posições subjetivas a serem ocupados por este ou aquele indivíduo, segundo as relações políticas e sociais e, portanto, ideológicas admitidas e construídas num dado momento histórico-social, num dado discurso – sempre em formação -, determinantes da (s) verdade (s) a ser (em) assumida (s). É claro que essas posições podem sofrer modificações, mas jamais repentinas: muitas vezes, passam imperceptíveis, até que algum acontecimento as evidencie” (CORACINI, 2005, p.30) 1.

Por isso, a repugnância social despertada pelo Projeto de Lei (PL) 1904/2024 tem um amplo espectro de razões legítimas e incontestáveis. Mas, o ponto nevrálgico de todas elas, está na histórica objetificação feminina atravessada pelo patriarcado, a qual, não raras as ocasiões, é sufocada pela forçosa abstenção da sua discussão, em razão do peso da assimetria das relações de poder.

É, não basta que as mulheres representem 51,5% (104.548.325) 2 da população brasileira. O fiel dessa balança não é estatístico! As rédeas do mundo permanecem em mãos masculinas, apesar de todos os pesares. Portanto, há milênios, se construiu a ideia objetificante da figura feminina que permite legitimar a sua desumanização sob as mais diversas formas e conteúdos.

Tratada como objeto, como coisa, pela sociedade, a mulher é despida da sua dignidade humana, a fim de se tornar submissa, obediente, respeitosa e subordinada, a quaisquer decisões ou determinações estabelecidas pelas figuras do poder masculino. O que significa que essa recente discussão, no Brasil, trouxe à tona a reflexão em torno do patriarcado, ou seja, a existência histórica de um sistema sociopolítico que coloca majoritariamente os homens em situação de poder, de controle, de punição e de decisão.

A objetificação feminina é, portanto, um instrumento manejado pelo patriarcado. O que significa que não importa se estamos no século XVI ou no século XXI, se as influências dogmáticas religiosas são católicas ou protestantes, se a ciência merece respeito ou não, ... Esse ideário é parte integrante e integrada da identidade nacional, do Brasil. Em maior ou em menor escala, o patriarcado se expressa continuamente na sociedade brasileira; sobretudo, reafirmando a manutenção das assimetrias de direitos e deveres.

Entende agora, os motivos de impor uma lei que criminaliza a mulher, a partir da revitimização reverberante da violência (o estupro) por ela sofrida?  Entende agora, os motivos que privilegiam e atenuam a responsabilização de um estuprador, atribuindo-lhe, inclusive, o status da paternidade de um filho gerado pela mais abjeta violência?  ... No patriarcado o poder pertence aos homens, em todas as suas expressões, ou seja, na política, na justiça, na religião, na cultura.

Simplesmente, porque esse sistema se sustenta sem precisar se impor pela força numérica dos seus representantes, do ponto de vista demográfico. Está na própria organização social os fundamentos que favorecem o gênero masculino em detrimento ao feminino. Com atenção especial ao homem branco, cisgênero e heterossexual, tendo em vista o modelo eurocêntrico colonial. 

Por isso, a perpetuação das violências, do isolamento, da estigmatização e de todas as desigualdades deve ser entendida como uma política de afirmação da objetificação feminina, dentro dos diferentes espaços sociais brasileiros. A intenção de que não haja ruptura da estabilidade histórica de regalias, privilégios e poderes do gênero masculino, no Brasil, é o que está posto em qualquer discussão objetificante da mulher. É sobre isso.

Bem, “[...] se alargarmos a concepção de leitura e a considerarmos uma possibilidade de perceber o espaço social, então ler passa a significar lançar um olhar à nossa volta e perceber o que nos rodeia. Isso pode ser feito apenas para confirmar nossos pontos de vista ou para problematizar, questionar o que, aparentemente, não pode ou não deve ser questionado... “(CORACINI, 2005, p.39). De modo que é preciso aproveitar o momentum, quando a energia dos acontecimentos está em pleno ímpeto, em pleno impulso, em plena pujança, para FALAR, ARTICULAR, DIZER, EXPRESSAR, PRONUNCIAR, DIALOGAR, sobre a leitura que fazemos do contexto atual.

Afinal, parece não restar mais dúvidas de que “A língua envolve todas as ações e pensamentos humanos e possibilita ao indivíduo exercer influências ou ser influenciado pelo outro, desempenhar seu papel social na sociedade, relacionar-se com os demais, participar na construção de conhecimentos e da cultura, enfim, permite-lhe se constituir como ser social, político e ideológico [...]” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.25-26) 3.



1 CORACINI, M. J. R. F. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: LIMA, R. C. de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras; São João da Boa Vista: Unifeob, 2005. p.15-44.

2 Dados do Censo Demográfico (2022) realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

3 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013.   

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