sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Até quando???


Até quando???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Estamos tomados (ou pelo menos, deveríamos estar) pela frustração, pela incompreensão, pela indignação, diante da permanência forçada de brasileiros, na Faixa de Gaza. Há aproximadamente um mês, o governo brasileiro empenha todos os seus esforços em resgatar essas pessoas através da fronteira com o Egito; mas, as expectativas não se cumprem.

Em situações normais, cotidianas, ainda que tidas como críticas ou de catástrofe, sabemos que mulheres, gestantes, crianças, idosos, doentes e deficientes são prioridades de resgate. Acontece que em uma guerra, a ideia de uma “normalidade” é totalmente perdida, em razão do desrespeito, da desumanidade, dos abusos, das arbitrariedades, das manipulações políticas, enfim.

E esse entendimento é muito importante, porque a população em Gaza foi avisada pelo governo de Israel que se concentrasse na região sul do território. Desse modo, as pessoas no norte da região se deslocaram para o sul, que é justamente a região que faz fronteira com o Egito, por onde estão sendo retirados os estrangeiros.

Acontece que a ação militar de Israel sobre a Faixa de Gaza não só aconteceu sobre a região norte como, também, sobre a região sul, para onde os estrangeiros se deslocaram. De modo que se perdeu totalmente a noção de cidadãos prioritários, os quais, neste caso específico, inclui também os cidadãos de outras nacionalidades.

Sob o pretexto de aniquilar elementos participantes do Hamas, o exército de Israel tem despejado a sua fúria inadvertidamente, a tal ponto que civis, médicos, imprensa, funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU), já constam das listas de mortos, dada a sua intensa ofensiva de guerra sobre a região. Caminhões de água e ajuda humanitária também foram bombardeados; bem como, hospitais, igrejas, ambulâncias, ...

A grande questão é que para a retirada dos estrangeiros pela fronteira com o Egito, estabeleceram as autoridades locais uma série de protocolos de controle e segurança, os quais têm esbarrado diretamente no obstáculo maior que foi a imposição de Israel por não aceitar a criação de corredores humanitários e, tampouco, um cessar-fogo, para que as pessoas pudessem sair em segurança. De modo que elas se tornaram reféns do absurdo.

Sim, elas estão sob o domínio do medo. Exaustas. Famintas. Frustradas. Ansiosas. ... Porque têm vivido no fio da navalha entre a vida e a morte. A cada vez que a notícia da retirada é cancelada, por falta de condições, porque há a impossibilidade de as ambulâncias chegarem até a fronteira, serem revistadas, liberadas, dentro do curto espaço de tempo determinado pelo governo de Israel, isso impede que os demais consigam o seu retorno para casa.

Para se ter a dimensão dessa angústia, basta pensar em um edifício em chamas, no qual o fogo atinge os andares do meio e, por uma ordem totalmente descabida, alguém diz que os moradores que estão nos andares abaixo das chamas, próximos da porta de saída, não poderão mover-se do local antes que todos aqueles que estão nos andares superiores possam ser retirados. Ao criar esse empecilho, a chance de que todos morram se torna, então, imensa.

Pois é, os brasileiros que estão em Gaza vivem esse contexto. Eles estão prontos, perto da fronteira; mas, não podem atravessar o portão. Se a humanidade não queria enxergar como a desigualdade opera na escala de importância da vida, agora, todos sabem muito bem.

Não restam mais dúvidas de que não há erros de cálculo, de que as perdas são contingenciais. Porque a guerra acontece à revelia do bom senso, da civilidade, da diplomacia. Aliás, o que temos bem diante dos olhos é que a guerra é bem mais do que a Lei de Talião - olho por olho, dente por dente -, porque ela nunca acontece sob a simetria dos direitos, das forças e dos poderes.

Infelizmente, essa é a amarga lição de que as guerras não obedecem à geografia, não só por razões dos limites territoriais; mas, porque afetam a humanidade de maneiras impensadas. A guerra que se estabeleceu entre Israel e o Hamas envolveu cidadãos de diferentes nações, mobilizou diferentes países, mexeu com a economia global, afetou a segurança internacional, ...

Enquanto isso, “A linguagem política, destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez” (George Orwell) 1.

É preciso saber, então, até quando? Até quando a barbárie vai imperar? Até quando as bombas vão explodir as esperanças e os sonhos? Até quando as lágrimas vão se derramar sobre as feridas? Até quando os olhos serão impregnados pelo horror? Até quando brasileiros e estrangeiros, em Gaza, terão que esperar para voltar ao seu país de origem? ...

Afinal, segundo Mia Couto, “A guerra cria um outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam as nossas vidas. A guerra instala o ciclo do sangue. Passamos a dizer: ‘antes da guerra, depois da guerra’. A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes” (A Varanda do Frangipani, 1996).



1 ORWELL, G. Politics and the English Language. A Collection of Essays. New York: Doubleday, 1954.