quarta-feira, 1 de novembro de 2023

A quem possa interessar ...


A quem possa interessar ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A guerra entre Israel e o Hamas expõe mais uma camada do terror contemporâneo. Quando Israel propõe a transferência de palestinos de Gaza para o Sinai, no Egito 1, o que se tem é uma terceirização do problema. Há uma franca sinalização do tipo “a quem possa interessar”.

Acontece que por mais estarrecedora e abjeta que seja uma ideia assim, não cabe os louros da inventividade cruel e perversa aos judeus. Por trás de quase todos os deslocamentos humanos forçados, presentes no mundo contemporâneo, decorrentes de guerras e conflitos, o que fazem as nações poderosas envolvidas é exatamente isso.

Elas terceirizam o problema, a partir da configuração de imensas legiões de refugiados a vagar sem rumo pelo planeta. Pois é, a contemporaneidade trouxe à baila um novo êxodo populacional expresso pela expulsão violenta de pessoas rotuladas como indesejáveis em seus próprios territórios; já que, a permanência nesses locais significaria enfrentar a morte.

De modo que fica bastante claro como a humanidade tem abdicado de resolver seus dilemas e desafios, optando por lançar aos ombros de terceiros as suas responsabilidades e deveres. O pior é que essas nações não encontram resistência em seus movimentos terceirizantes.  E não encontram porque, quase sempre, seus governos desfrutam de poder econômico e bélico, no contexto da geopolítica global.

Entretanto, esse silêncio grita. Porque as vítimas dessa barbárie são expostas à xenofobia global. É preciso entender que esse tipo de terceirização não implica, por parte dos países receptores, assumir responsabilidades e garantias aos deslocados, e eventuais refugiados, que em seus territórios passarão a viver. Na verdade, eles se tornam, na maioria das vezes, mais indesejados do que em sua própria terra natal.  

Vamos e convenhamos que os deslocamentos humanos forçados, presentes no mundo contemporâneo, não representam a necessidade eventual, uma acolhida temporária. Não, essas pessoas estão fugindo de guerras, de conflitos, de perseguições. Estão em busca de uma reconstrução da sua dignidade humana em um outro espaço geográfico.

Assim, além do sofrimento natural desse processo, elas acabam submetidas ao rigor de outros impactos sociais, identitários, que esse contexto inevitavelmente reverbera sobre elas. É preciso entender que essas pessoas chegam totalmente fragilizadas, vulneráveis e despidas de uma estrutura material e subjetiva mínima. Trata-se literalmente de um recomeçar do zero. Daí a grande pergunta a se fazer é: os países para os quais elas se deslocam estão realmente preparados para recebê-las e oferecer-lhes a satisfação de suas demandas?

Ainda que fosse em condições não adversas, um estrangeiro é sempre um estrangeiro fora da sua terra natal. A sua identidade não está ajustada aquele contexto sociocultural. Há todo um processo de adaptação, de ajustamento, o qual difere temporalmente para cada indivíduo ou contexto. Haja vista como tratam as próprias ex-Metrópoles colonialistas, os cidadãos de suas ex-Colônias! Infelizmente, eles serão sempre cidadãos de segunda classe, motivo de insultos e de desdém. Gente fadada a receber as migalhas, as esmolas, as negligências dos poderosos, porque a sua identidade nacional é outra.  

De acordo com o relatório “Tendências Globais sobre Deslocamento Forçado 2022”, uma publicação estatística anual do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), “Até o final de 2022, o número de pessoas deslocadas por guerra, perseguição, violência e violações de direitos humanos atingiu o recorde de 108,4 milhões, um aumento de 19,1 milhões em relação ao ano anterior, o maior já registrado” 2.

Ainda, segundo esse relatório, “Os números também confirmaram que, seja medido por meios econômicos ou pela proporção populacional, são os países de baixa e média renda do mundo – e não os estados ricos – que recebem a maioria das pessoas deslocadas. Os 46 países menos desenvolvidos respondem por menos de 1,3% do produto interno global, mas abrigaram mais de 20% de todas as pessoas refugiadas. O financiamento para as inúmeras situações de deslocamento e para apoiar os países de acolhida ficou aquém do necessário no ano passado, permanecendo lento em 2023 à medida que as necessidades aumentam”. Imagine, agora, com duas guerras em curso!

Como se vê, as tentativas de terceirização do problema acabam por se consolidar como uma guerra paralela às guerras, conflitos, perseguições e violências presentes no mundo. Porque a única preocupação dos entes fomentadores da beligerância parece ser os lucros da indústria armamentista. Os pilares que sustentam, então, esse movimento são a necropolítica, o necrocapitalismo e o necrobiopoder, vigentes na contemporaneidade.  

O primeiro desses pilares diz respeito “a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada” 3. O segundo trata de “como as formas contemporâneas de acumulação organizacional que envolvem a desapropriação e subjugação da vida ao poder da morte. Isso inclui diferentes formas de poder – institucional, material e discursivo – que operam na economia política e na violência e desapropriação que daí resultam” 4. Por fim, o terceiro se refere a “um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver” 5.

Dizia Ernest Hemingway, “Nunca confunda movimento com ação”. O mundo está em franca ebulição e, mesmo assim, as mazelas que o afligem e se arrastam pelos séculos permanecem à margem de qualquer solução efetiva e humanitária. Vejam, por exemplo, que a verborragia parece intensa. Acontece que ela não está em busca de comunicar; mas, de tentar encontrar, na insanidade das palavras, alguma resposta para o seu próprio vazio.  Por isso, sou obrigada a concordar com José Saramago, “Perdemos a capacidade de indignar-nos. De contrário o mundo não estaria como está”.