A quem
possa interessar ...
Por Alessandra
Leles Rocha
A guerra entre Israel e o Hamas expõe
mais uma camada do terror contemporâneo. Quando Israel propõe a transferência de
palestinos de Gaza para o Sinai, no Egito 1,
o que se tem é uma terceirização do problema. Há uma franca sinalização do tipo
“a quem possa interessar”.
Acontece que por mais
estarrecedora e abjeta que seja uma ideia assim, não cabe os louros da inventividade
cruel e perversa aos judeus. Por trás de quase todos os deslocamentos humanos
forçados, presentes no mundo contemporâneo, decorrentes de guerras e conflitos,
o que fazem as nações poderosas envolvidas é exatamente isso.
Elas terceirizam o problema, a
partir da configuração de imensas legiões de refugiados a vagar sem rumo pelo
planeta. Pois é, a contemporaneidade trouxe à baila um novo êxodo populacional expresso
pela expulsão violenta de pessoas rotuladas como indesejáveis em seus próprios territórios;
já que, a permanência nesses locais significaria enfrentar a morte.
De modo que fica bastante claro
como a humanidade tem abdicado de resolver seus dilemas e desafios, optando por
lançar aos ombros de terceiros as suas responsabilidades e deveres. O pior é
que essas nações não encontram resistência em seus movimentos terceirizantes. E não encontram porque, quase sempre, seus
governos desfrutam de poder econômico e bélico, no contexto da geopolítica
global.
Entretanto, esse silêncio grita. Porque
as vítimas dessa barbárie são expostas à xenofobia global. É preciso entender
que esse tipo de terceirização não implica, por parte dos países receptores, assumir
responsabilidades e garantias aos deslocados, e eventuais refugiados, que em
seus territórios passarão a viver. Na verdade, eles se tornam, na maioria das
vezes, mais indesejados do que em sua própria terra natal.
Vamos e convenhamos que os
deslocamentos humanos forçados, presentes no mundo contemporâneo, não
representam a necessidade eventual, uma acolhida temporária. Não, essas pessoas
estão fugindo de guerras, de conflitos, de perseguições. Estão em busca de uma
reconstrução da sua dignidade humana em um outro espaço geográfico.
Assim, além do sofrimento natural
desse processo, elas acabam submetidas ao rigor de outros impactos sociais,
identitários, que esse contexto inevitavelmente reverbera sobre elas. É preciso
entender que essas pessoas chegam totalmente fragilizadas, vulneráveis e
despidas de uma estrutura material e subjetiva mínima. Trata-se literalmente de
um recomeçar do zero. Daí a grande pergunta a se fazer é: os países para os
quais elas se deslocam estão realmente preparados para recebê-las e
oferecer-lhes a satisfação de suas demandas?
Ainda que fosse em condições não
adversas, um estrangeiro é sempre um estrangeiro fora da sua terra natal. A sua
identidade não está ajustada aquele contexto sociocultural. Há todo um processo
de adaptação, de ajustamento, o qual difere temporalmente para cada indivíduo
ou contexto. Haja vista como tratam as próprias ex-Metrópoles colonialistas, os
cidadãos de suas ex-Colônias! Infelizmente, eles serão sempre cidadãos de
segunda classe, motivo de insultos e de desdém. Gente fadada a receber as
migalhas, as esmolas, as negligências dos poderosos, porque a sua identidade
nacional é outra.
De acordo com o relatório “Tendências
Globais sobre Deslocamento Forçado 2022”, uma publicação estatística anual
do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), “Até o final
de 2022, o número de pessoas deslocadas por guerra, perseguição, violência e
violações de direitos humanos atingiu o recorde de 108,4 milhões, um aumento de
19,1 milhões em relação ao ano anterior, o maior já registrado” 2.
Ainda, segundo esse relatório, “Os
números também confirmaram que, seja medido por meios econômicos ou pela
proporção populacional, são os países de baixa e média renda do mundo – e não
os estados ricos – que recebem a maioria das pessoas deslocadas. Os 46 países menos
desenvolvidos respondem por menos de 1,3% do produto interno global, mas
abrigaram mais de 20% de todas as pessoas refugiadas. O financiamento para as
inúmeras situações de deslocamento e para apoiar os países de acolhida ficou
aquém do necessário no ano passado, permanecendo lento em 2023 à medida que as
necessidades aumentam”. Imagine, agora, com duas guerras em curso!
Como se vê, as tentativas de
terceirização do problema acabam por se consolidar como uma guerra paralela às
guerras, conflitos, perseguições e violências presentes no mundo. Porque a
única preocupação dos entes fomentadores da beligerância parece ser os lucros
da indústria armamentista. Os pilares que sustentam, então, esse movimento são
a necropolítica, o necrocapitalismo e o necrobiopoder, vigentes na
contemporaneidade.
O primeiro desses pilares diz
respeito “a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida
pela morte está legitimada” 3. O segundo
trata de “como as formas contemporâneas de acumulação organizacional que
envolvem a desapropriação e subjugação da vida ao poder da morte. Isso inclui
diferentes formas de poder – institucional, material e discursivo – que operam
na economia política e na violência e desapropriação que daí resultam” 4. Por fim, o terceiro se refere a “um
conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que
qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a
possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser
eliminados e outros que devem viver” 5.
Dizia Ernest Hemingway, “Nunca
confunda movimento com ação”. O mundo está em franca ebulição e, mesmo assim,
as mazelas que o afligem e se arrastam pelos séculos permanecem à margem de
qualquer solução efetiva e humanitária. Vejam, por exemplo, que a verborragia
parece intensa. Acontece que ela não está em busca de comunicar; mas, de tentar
encontrar, na insanidade das palavras, alguma resposta para o seu próprio vazio.
Por isso, sou obrigada a concordar com José
Saramago, “Perdemos a capacidade de indignar-nos. De contrário o mundo não
estaria como está”.
1 https://www.brasil247.com/mundo/israel-tem-planos-para-forcar-o-exodo-de-2-2-milhoes-de-palestinos-de-gaza-para-o-egito-apos-a-guerra
2 https://www.acnur.org/portugues/2023/06/14/deslocamento-forcado-atinge-novo-recorde-em-2022-e-acnur-pede-acao-conjunta/