Acontece
que a vida não tem manual...
Por Alessandra
Leles Rocha
Foi impossível não parar e refletir
a respeito da matéria “Limites da guerra: o que são as leis que determinam
como um conflito pode ser conduzido” 1.
Afinal de contas, ela desnuda a cruel realidade de como os seres humanos
relativizam a morte, quando lhes parece conveniente.
Aí, eu me pergunto, por onde
andam os defensores da vida? Gente que sai vociferando contra a interrupção da
gravidez, da pena de morte, das drogas, ... mas, aceita que um conflito armado
se estabeleça geopoliticamente. Em que ponto do seu manual de boas práticas e
comportamentos, a vida se relativizou dessa maneira?
Ou consideramos a vida um bem
sagrado e inalienável, ou não consideramos. Não dá para ficar em cima do muro! Mas
é exatamente o que temos visto por aí. Necropolítica, necrocapitalismo, necrobiopoder,
... a morte está presente de maneira maciça na sociedade contemporânea. E não
mais por razões de ordem natural; mas, por processos de controle e dominação
social.
Onde foi na história da
humanidade que passamos a considerar normal o estabelecimento de regras que nos
permitem matar nossos semelhantes? Isso é gravíssimo. Primeiro, porque se você
pode matar o outro a recíproca passa a ser verdadeira também. Nesse caso a
sociedade entra em uma espiral de loucura sem fim.
Segundo, porque a morte é a
morte. Não importa se ela chega através de um tiro, de um míssil, de uma
granada, de uma facada, de fome, de sede, de espancamento, ... Simplesmente é a
vida ceifada pela brutalidade da violência humana e todas as suas
reverberações, que ultrapassam os limites daquele corpo inerte.
Lamento; mas, é preciso relembrar
que a morte não é singular, porque nenhum ser humano é uma ilha. Ainda que os
laços afetivos e sociais não estejam efetivamente materializados, eles jamais
deixam de existir. De modo que as perdas, em maior ou em menor escala, serão
sempre sentidas.
Razão pela qual a beligerância nunca
morre. O ódio que você semeia ecoa pelo tempo, pelo espaço, ainda que na figura
de um único ser, remanescente daquela dor, daquele sofrimento, daquela
indignação. Ele vai de geração em geração reafirmando a sua presença. Porque as
violências odiosas, terríveis, abomináveis, não podem ser explicadas, ou
justificadas, ou contemporizadas, na medida em que transitam na contramão da
preservação da própria espécie.
Acontece que, infelizmente, muito
antes da humanidade ser submetida à sua domesticação cognitiva e intelectual,
ela resolvia as situações cotidianas pela irracionalidade. De modo que essa marca
ficou no seu inconsciente coletivo e, vez por outra, contraria o senso biológico
de preservação da espécie. Como se a gênese primitiva e intelectualmente
limitada do ser exercesse um poder maior sobre o seu comportamento, permitindo
que a barbárie fosse facilmente acionada apesar da razão.
Por trás desse verniz racional, disciplinador,
então, habita um bárbaro. Que facilmente abdica da capacidade dialógica, crítica,
reflexiva, para curvar-se a beligerância letal. Nesse ponto, o ser humano perde
a noção sobre o tênue limite entre a vida e a morte, no sentido mais objetivo
que isso representa. Como se os corpos perdessem a sua essência biológica para
ocupar um espaço de objetificação social, suprimindo quaisquer sentimentos,
emoções, importâncias, que sempre lhes foram pertinentes. E assim, a vida vem sendo
alçada à morte sem ao menos saber o porquê.
Talvez, isso traga um pouco de
entendimento para essa saudade que consome o mundo contemporâneo. Relembrando
as palavras de Martha Medeiros, “Saudade é não saber. Não saber o que fazer
com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que
lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música,
não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche”.
Afinal, estamos assombrados pela
morte, em diferentes formas e conteúdos. Flertando de olhos fechados com duas
guerras em curso, enquanto circulamos entre outros tantos pequenos conflitos
urbanos. Portanto, não há protocolo, manual, regulamento ou script, que seja capaz
de nos ensinar a guerrear sob parâmetros de justiça. Nada do que a beligerância
constrói é justo. Essa é só mais uma ideia absurda, um placebo, para tentar
aplacar o esvaziamento avassalador da nossa subjetividade humana.