14
de julho.
A
atemporalidade da história.
Por
Alessandra Leles Rocha
A efervescência contemporânea da
sociedade francesa está associada as marcas do período colonial, em que a
França metropolitana expandiu seus domínios sobre vários países; sobretudo, no
continente africano. De modo que isso ofusca um entendimento importante que
atravessa a condição dos governos monárquicos europeus no recorte temporal
entre os séculos XIV e XIX.
Bem, o curso do tempo tornou
perceptível as consequências e os desdobramentos nefastos, tanto das práxis
quanto do ideário colonial em todo o mundo, a partir não só do retrato
socioeconômico das ex-colônias como, também, do conjunto de manifestações
psicossociais, tais como o racismo e a xenofobia.
O que ajuda a fazer com que boa
parte da população tenha a falsa ilusão de que as explorações, os preconceitos,
as violências, as discriminações, seguiram um caminho externo às Metrópoles.
Como se fosse algo de dentro para fora dos limites territoriais metropolitanos,
fundamentado por uma visão eurocêntrica de superioridade que legitimava todo
tipo de abusos geopolíticos. Acontece que essa é só uma perspectiva dos
acontecimentos.
Hoje, 14 de julho, dia em que se
comemora um dos eventos mais importantes da história mundial, quando a mais
famosa prisão francesa, a Bastilha, foi tomada por um movimento de insurreição
popular contra o absolutismo monárquico, é possível ver e entender o cenário da
época por um outro viés. Pois é, todo tipo de explorações, preconceitos,
violências, discriminações, não estavam limitados a um caminho externo às
Metrópoles. Eles aconteciam, também, entre os muros internos, nas masmorras
superlotadas e nos submundos da França.
E essa compreensão é muito
importante, porque ela rompe com um sentimento de pessoalidade para traduzir a
dinâmica de um comportamento estritamente elitista que visava, única e
exclusivamente, atender e manter seus interesses e regalias. Era como se a
importância social, ou a dignidade humana, fosse privilégio restrito dessa ínfima
camada social, a elite. Não importando as demais camadas e, nem tampouco, onde
estivessem situadas. Elas simplesmente deveriam cumprir seu papel de
obediência, de subordinação, dada a sua condição de inferioridade determinada
pela Metrópole.
Acontece que dessa elite
monárquica e da burguesia que ascendia ao poder durante o período colonial,
passaram-se gerações que, hoje, se traduzem na expressão de um pequeno grupo
modulado ideologicamente pelo pensamento de Direita e, em muitos casos, de
ultradireita. O que permite entender como determinadas crenças, valores,
princípios e comportamentos, marcadamente coloniais, vêm sendo resgatados e
aplicados ao contexto contemporâneo, ou seja, o racismo, a xenofobia, a
misoginia, a aporofobia, ...
Sem se prender às fronteiras
geográficas globais, agora, essas elites apontam seus canhões de preconceito,
de segregação, de invisibilização, para os entes constituintes do seu próprio
Estado Nação. Algo fácil de perceber nas manifestações xenofóbicas e racistas, ocorridas
na França. É o que os habitantes das áreas mais ricas da capital francesa, por
exemplo, têm expressado em relação aos cidadãos que vivem nas áreas periféricas
e socialmente vulneráveis.
Os novos rostos das elites
pretendem com esse tipo de comportamento se absterem da carga de uma
responsabilidade histórica, por meio de uma atitude extremamente negacionista e
arbitrária. Assim, eles se valem da xenofobia, do racismo ou de qualquer outra
manifestação de preconceito, intolerância e violência, para deixar claro às
minorias que elas não são bem-vindas naqueles país e, por isso, não encontrarão
qualquer respaldo cidadão para viverem ali. Muito pelo contrário! Deveriam,
portanto, buscar um outro lugar para viver.
Assim, quando se traça um
paralelo entre a realidade atual e a Revolução Francesa percebe-se claramente a
existência de um ponto comum, embora passados quase quatro séculos, que se
concentra no desejo supremacista absoluto das elites. O que faz da convivência
social um espaço de tensões contínuas em busca de igualdade e equidade de
direitos que satisfaçam, ainda que minimamente, à dignidade humana do coletivo
social.
Algo que vai muito além de
qualquer movimento de reparação histórica. O objeto reivindicatório das camadas
populares é, simplesmente, um direito fundamental para qualquer indivíduo, em
qualquer tempo, em qualquer lugar. E que vem sendo negado historicamente a
elas, por força do poder e do controle social das elites. Haja vista como vem
sendo acelerados os processos de fragilização de direitos sociais e de
precarização das atividades laborais, por exemplo.
Inclusive, a impressão que se tem,
observando os recentes acontecimentos, mundo afora, é de que as elites
contemporâneas, através do seu discurso direitista, mais ou menos extremista e radical,
busca para si uma reparação por não ter conseguido estancar o movimento
revolucionário francês, lá no século XVIII, antes que tivesse tomado forma e
atingido seus objetivos.
Muitos membros das elites padecem
de um inconformismo crônico em relação ao que provocou a Revolução Francesa no
cenário mundial. Para elas a conquista da mobilidade social pelas camadas
populares, por exemplo, é uma afronta à sua herança supremacista. Então, elas
tentam de todas as formas impedir que a igualdade e a equidade sejam alcançadas
por aqueles que compõem as camadas inferiores da pirâmide social.
A verdade é que as elites não
querem nem ouvir falar em liberdade, igualdade e fraternidade! E por que razão?
Ora, “Vamos compreender melhor o que diz
respeito à equidade, pois se a liberdade é o cume, a equidade é a base; [...]
civilmente, ela é todas as aptidões tendo iguais oportunidades; politicamente,
todos os votos tendo o mesmo peso; religiosamente, todas as consciências tendo
diretos iguais” (Victor Hugo – Os miseráveis).
O que em síntese significa que as elites têm plena consciência de que “Ninguém pode impedir o pensamento de voltar a uma ideia, como não podemos impedir o mar de voltar sempre a uma praia. Para o marinheiro isso se chama maré; para o culpado isso se chama remorso. Deus agita a alma como agita o oceano” (Victor Hugo – Os miseráveis). Acontece que elas não sabem, ou não querem, ou talvez, não possam lidar com os fantasmas da sua própria deformidade ética e moral; por isso, elas acabam rendidas aos caminhos do confronto, da beligerância e da desumanidade contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade.