sexta-feira, 14 de julho de 2023

14 de julho. A atemporalidade da história.


14 de julho.

A atemporalidade da história.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A efervescência contemporânea da sociedade francesa está associada as marcas do período colonial, em que a França metropolitana expandiu seus domínios sobre vários países; sobretudo, no continente africano. De modo que isso ofusca um entendimento importante que atravessa a condição dos governos monárquicos europeus no recorte temporal entre os séculos XIV e XIX.

Bem, o curso do tempo tornou perceptível as consequências e os desdobramentos nefastos, tanto das práxis quanto do ideário colonial em todo o mundo, a partir não só do retrato socioeconômico das ex-colônias como, também, do conjunto de manifestações psicossociais, tais como o racismo e a xenofobia. 

O que ajuda a fazer com que boa parte da população tenha a falsa ilusão de que as explorações, os preconceitos, as violências, as discriminações, seguiram um caminho externo às Metrópoles. Como se fosse algo de dentro para fora dos limites territoriais metropolitanos, fundamentado por uma visão eurocêntrica de superioridade que legitimava todo tipo de abusos geopolíticos. Acontece que essa é só uma perspectiva dos acontecimentos.

Hoje, 14 de julho, dia em que se comemora um dos eventos mais importantes da história mundial, quando a mais famosa prisão francesa, a Bastilha, foi tomada por um movimento de insurreição popular contra o absolutismo monárquico, é possível ver e entender o cenário da época por um outro viés. Pois é, todo tipo de explorações, preconceitos, violências, discriminações, não estavam limitados a um caminho externo às Metrópoles. Eles aconteciam, também, entre os muros internos, nas masmorras superlotadas e nos submundos da França.

E essa compreensão é muito importante, porque ela rompe com um sentimento de pessoalidade para traduzir a dinâmica de um comportamento estritamente elitista que visava, única e exclusivamente, atender e manter seus interesses e regalias. Era como se a importância social, ou a dignidade humana, fosse privilégio restrito dessa ínfima camada social, a elite. Não importando as demais camadas e, nem tampouco, onde estivessem situadas. Elas simplesmente deveriam cumprir seu papel de obediência, de subordinação, dada a sua condição de inferioridade determinada pela Metrópole.

Acontece que dessa elite monárquica e da burguesia que ascendia ao poder durante o período colonial, passaram-se gerações que, hoje, se traduzem na expressão de um pequeno grupo modulado ideologicamente pelo pensamento de Direita e, em muitos casos, de ultradireita. O que permite entender como determinadas crenças, valores, princípios e comportamentos, marcadamente coloniais, vêm sendo resgatados e aplicados ao contexto contemporâneo, ou seja, o racismo, a xenofobia, a misoginia, a aporofobia, ...

Sem se prender às fronteiras geográficas globais, agora, essas elites apontam seus canhões de preconceito, de segregação, de invisibilização, para os entes constituintes do seu próprio Estado Nação. Algo fácil de perceber nas manifestações xenofóbicas e racistas, ocorridas na França. É o que os habitantes das áreas mais ricas da capital francesa, por exemplo, têm expressado em relação aos cidadãos que vivem nas áreas periféricas e socialmente vulneráveis.

Os novos rostos das elites pretendem com esse tipo de comportamento se absterem da carga de uma responsabilidade histórica, por meio de uma atitude extremamente negacionista e arbitrária. Assim, eles se valem da xenofobia, do racismo ou de qualquer outra manifestação de preconceito, intolerância e violência, para deixar claro às minorias que elas não são bem-vindas naqueles país e, por isso, não encontrarão qualquer respaldo cidadão para viverem ali. Muito pelo contrário! Deveriam, portanto, buscar um outro lugar para viver.

Assim, quando se traça um paralelo entre a realidade atual e a Revolução Francesa percebe-se claramente a existência de um ponto comum, embora passados quase quatro séculos, que se concentra no desejo supremacista absoluto das elites. O que faz da convivência social um espaço de tensões contínuas em busca de igualdade e equidade de direitos que satisfaçam, ainda que minimamente, à dignidade humana do coletivo social.

Algo que vai muito além de qualquer movimento de reparação histórica. O objeto reivindicatório das camadas populares é, simplesmente, um direito fundamental para qualquer indivíduo, em qualquer tempo, em qualquer lugar. E que vem sendo negado historicamente a elas, por força do poder e do controle social das elites. Haja vista como vem sendo acelerados os processos de fragilização de direitos sociais e de precarização das atividades laborais, por exemplo.

Inclusive, a impressão que se tem, observando os recentes acontecimentos, mundo afora, é de que as elites contemporâneas, através do seu discurso direitista, mais ou menos extremista e radical, busca para si uma reparação por não ter conseguido estancar o movimento revolucionário francês, lá no século XVIII, antes que tivesse tomado forma e atingido seus objetivos.

Muitos membros das elites padecem de um inconformismo crônico em relação ao que provocou a Revolução Francesa no cenário mundial. Para elas a conquista da mobilidade social pelas camadas populares, por exemplo, é uma afronta à sua herança supremacista. Então, elas tentam de todas as formas impedir que a igualdade e a equidade sejam alcançadas por aqueles que compõem as camadas inferiores da pirâmide social.

A verdade é que as elites não querem nem ouvir falar em liberdade, igualdade e fraternidade! E por que razão? Ora, “Vamos compreender melhor o que diz respeito à equidade, pois se a liberdade é o cume, a equidade é a base; [...] civilmente, ela é todas as aptidões tendo iguais oportunidades; politicamente, todos os votos tendo o mesmo peso; religiosamente, todas as consciências tendo diretos iguais” (Victor Hugo – Os miseráveis).

O que em síntese significa que as elites têm plena consciência de que “Ninguém pode impedir o pensamento de voltar a uma ideia, como não podemos impedir o mar de voltar sempre a uma praia. Para o marinheiro isso se chama maré; para o culpado isso se chama remorso. Deus agita a alma como agita o oceano” (Victor Hugo – Os miseráveis). Acontece que elas não sabem, ou não querem, ou talvez, não possam lidar com os fantasmas da sua própria deformidade ética e moral; por isso, elas acabam rendidas aos caminhos do confronto, da beligerância e da desumanidade contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade.