O
fantástico poder social da Cultura
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando se pensa nas mazelas
nacionais brasileiras, por mais que se tente imaginar há muito o que escape na
hora de elencá-las uma a uma. Afinal, esse é um exercício que requer não
somente sensibilidade; mas, uma capacidade infinita de esmiuçar os problemas
até que deles não se possa extrair algo mais.
Então, assistindo a uma matéria
jornalística sobre o projeto “Apadrinharte”
do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo “objetivo
é proporcionar acesso ao lazer e a cultura a mais de 8 mil crianças e
adolescentes que vivem em casas de acolhimento do estado” 1,
me coloquei a refletir sobre a situação desse viés da infância no país.
Bem, ao se falar na desigualdade
social que aflige a população brasileira sob diferentes formas e conteúdos,
parece que tudo está posto às claras, quando na verdade não está. Esse é o caso
da infância, por exemplo.
Não é só o cidadão adulto que
está na mira de ser um eventual flagelado das desigualdades. A verdade é que essa
possibilidade tangencia muito de perto a sua existência, desde os seus
primeiros anos de vida, sem que grande parte da sociedade e das autoridades
governamentais desperte para o fato e aja com efetividade, respeito e empatia.
Vejam, em 2020, “segundo dados do
Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), existiam quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de
acolhimento e instituições públicas por todo o país. Destas, 5040 estavam
totalmente prontas para a adoção” 2.
Tratam-se de crianças e
adolescentes vivendo afastadas do convívio familiar, em razão de maus tratos,
violência doméstica e sexual, miséria, abandono ou negligência. Algo que não se
resume a uma realidade contemporânea.
De modo que ela necessita ser
analisada da perspectiva das distorções e dos desafios presentes na construção
das relações sociais. Sobretudo, porque o perfil social predominante se
concentra em um estrato de maior vulnerabilidade e desassistência; mas, que não
impede e nem afasta, também, a presença de crianças e adolescentes pertencentes
às classes sociais mais abastadas e teoricamente bem estruturadas.
Dentro desse contexto, até que a
situação delas seja resolvida pelos órgãos competentes do Estado e da Justiça,
os abrigos traduzem uma solução temporária de garantia da sobrevivência, dentro
de um mínimo razoável de dignidade humana. A questão é que esse mínimo acaba
sendo insuficiente para suprir as demandas objetivas; mas, particularmente, as
subjetivas, pertinentes a qualquer indivíduo.
Na medida em que elas vão
ultrapassando a faixa dos 0 aos 6 anos, que é a mais propensa à adoção, a
tendência de permanecerem abrigadas até completar a maioridade, 18 anos, se
torna mais acentuada. Portanto, embora elas disponham de infraestrutura de
moradia, alimentação, educação e cuidados básicos, nas casas de acolhimento e
instituições públicas, nada mais pode ser ofertado.
O que quer dizer que o tempo de
permanência nesses locais representa sim, um obstáculo real para o
desenvolvimento psicoemocional, cognitivo e comportamental dessas crianças e
adolescentes, possibilitando inclusive o despertar de certas manifestações como,
por exemplo, a gratidão compreensiva ou o desagrado revoltoso, marcando de
maneira profunda a sua jornada pelo restante da vida.
Daí a imensa relevância da
iniciativa em se propor um projeto como o “Apadrinharte”.
Nenhum indivíduo poderia, em quaisquer que fossem as circunstâncias, ser
privado dos elementos que fazem a sua condição humana plena, o que inclui seus
direitos econômicos, sociais e culturais. Tanto que, em 1976, entrou em vigor a
Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Há um entendimento mundial de que
é a partir desse tripé que as pessoas conseguem ter a percepção de que o
direito a uma educação, o qual lhes permita os benefícios da liberdade cultural
e do progresso científico, é que possibilita desfrutar de uma base capaz de
favorecer a conquista do direito ao trabalho em condições justas e favoráveis.
Dessa forma, então, torna-se
realmente possível o exercício do direito à proteção social, no sentido de um
patamar de vida que seja adequado aos mais altos padrões possíveis de bem-estar
físico e mental.
Entretanto, tudo isso só começa a
ser tecido, quando a sociedade entende que toda criança deve não só “gozar da proteção social e ter
oportunidades e facilidades, proporcionadas por lei e por outros meios, a fim
de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade” (art. 2º.
DUDC); mas, também, “uma educação capaz
de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais
oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e
seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da
sociedade” (art. 7º DUDC) 3.
Portanto, além de romper com a ideia
de que os orfanatos, hoje conhecidos como instituições de abrigo
infanto-juvenil, não tenham sido pensados como algo além de “uma casa de passagem” para os
abandonados e “rejeitados” pela sociedade,
esse movimento de transformações impulsiona uma mudança de perspectiva quanto a
certos paradigmas da sociedade. Tais como o desemprego, o empobrecimento, a
marginalidade, as violências. Afinal, antes do que se imagina, essas crianças e
adolescentes serão adultos.
Partindo, então, das conjunturas
do seu desenvolvimento humano até lá, é possível compreender o quanto elas
estão propensas a cerrar fileiras, num futuro próximo, às mazelas sociais. Nesse
sentido, quanto mais projetos de inclusão sociocultural e desportiva forem
implementados, dentro e/ou fora, das casas de acolhimento e instituições de
abrigo infanto-juvenil públicas, mais a realidade social se afastará das suas
estatísticas tristes e nefastas.
Trata-se de uma contribuição
muito consistente para a cidadania brasileira, porque busca extrair nessas
crianças e adolescentes a sua consciência a respeito das suas competências, das
suas habilidades, das suas aptidões e dos seus talentos, revelando e
desenvolvendo a sua autoestima.
Esses projetos, também, tendem a
gerar uma melhoria no próprio contexto educacional. Seja pelo aspecto
transdisciplinar, ou seja, há uma intercomunicação entre as disciplinas, de
modo que elas podem convergir para uma temática comum. Quanto pelo aspecto dos multiletramentos que
representam a realidade de uma multiplicidade de linguagens textuais
circulantes na diversidade cultural, cujo potencial de interação, colaboração, hibridismo
favorece a prática da compreensão e da produção comunicativa em quaisquer
contextos da sociedade contemporânea.
Assim, talvez, o que pretenda nos fazer pensar reflexivamente, o projeto “Apadrinharte”, é em um primeiro momento que “A construção do ser social, feita em boa parte pela educação, é a assimilação pelo indivíduo de uma série de normas e princípios – sejam morais, religiosos, éticos ou de comportamento – que balizam a conduta do indivíduo num grupo. O homem, mais do que formador da sociedade, é um produto dela” (Émile Durkheim – sociólogo francês). Depois, que “A arte não produz o que vemos. Ela nos faz ver” (Paul Klee – pintor, desenhista e poeta alemão).