domingo, 3 de abril de 2022

O fantástico poder social da Cultura


O fantástico poder social da Cultura

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando se pensa nas mazelas nacionais brasileiras, por mais que se tente imaginar há muito o que escape na hora de elencá-las uma a uma. Afinal, esse é um exercício que requer não somente sensibilidade; mas, uma capacidade infinita de esmiuçar os problemas até que deles não se possa extrair algo mais.

Então, assistindo a uma matéria jornalística sobre o projeto “Apadrinharte” do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo “objetivo é proporcionar acesso ao lazer e a cultura a mais de 8 mil crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimento do estado” 1, me coloquei a refletir sobre a situação desse viés da infância no país.

Bem, ao se falar na desigualdade social que aflige a população brasileira sob diferentes formas e conteúdos, parece que tudo está posto às claras, quando na verdade não está. Esse é o caso da infância, por exemplo.

Não é só o cidadão adulto que está na mira de ser um eventual flagelado das desigualdades. A verdade é que essa possibilidade tangencia muito de perto a sua existência, desde os seus primeiros anos de vida, sem que grande parte da sociedade e das autoridades governamentais desperte para o fato e aja com efetividade, respeito e empatia.

Vejam, em 2020, “segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existiam quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de acolhimento e instituições públicas por todo o país. Destas, 5040 estavam totalmente prontas para a adoção” 2.

Tratam-se de crianças e adolescentes vivendo afastadas do convívio familiar, em razão de maus tratos, violência doméstica e sexual, miséria, abandono ou negligência. Algo que não se resume a uma realidade contemporânea.

De modo que ela necessita ser analisada da perspectiva das distorções e dos desafios presentes na construção das relações sociais. Sobretudo, porque o perfil social predominante se concentra em um estrato de maior vulnerabilidade e desassistência; mas, que não impede e nem afasta, também, a presença de crianças e adolescentes pertencentes às classes sociais mais abastadas e teoricamente bem estruturadas. 

Dentro desse contexto, até que a situação delas seja resolvida pelos órgãos competentes do Estado e da Justiça, os abrigos traduzem uma solução temporária de garantia da sobrevivência, dentro de um mínimo razoável de dignidade humana. A questão é que esse mínimo acaba sendo insuficiente para suprir as demandas objetivas; mas, particularmente, as subjetivas, pertinentes a qualquer indivíduo.

Na medida em que elas vão ultrapassando a faixa dos 0 aos 6 anos, que é a mais propensa à adoção, a tendência de permanecerem abrigadas até completar a maioridade, 18 anos, se torna mais acentuada. Portanto, embora elas disponham de infraestrutura de moradia, alimentação, educação e cuidados básicos, nas casas de acolhimento e instituições públicas, nada mais pode ser ofertado.

O que quer dizer que o tempo de permanência nesses locais representa sim, um obstáculo real para o desenvolvimento psicoemocional, cognitivo e comportamental dessas crianças e adolescentes, possibilitando inclusive o despertar de certas manifestações como, por exemplo, a gratidão compreensiva ou o desagrado revoltoso, marcando de maneira profunda a sua jornada pelo restante da vida.

Daí a imensa relevância da iniciativa em se propor um projeto como o “Apadrinharte”. Nenhum indivíduo poderia, em quaisquer que fossem as circunstâncias, ser privado dos elementos que fazem a sua condição humana plena, o que inclui seus direitos econômicos, sociais e culturais. Tanto que, em 1976, entrou em vigor a Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Há um entendimento mundial de que é a partir desse tripé que as pessoas conseguem ter a percepção de que o direito a uma educação, o qual lhes permita os benefícios da liberdade cultural e do progresso científico, é que possibilita desfrutar de uma base capaz de favorecer a conquista do direito ao trabalho em condições justas e favoráveis.

Dessa forma, então, torna-se realmente possível o exercício do direito à proteção social, no sentido de um patamar de vida que seja adequado aos mais altos padrões possíveis de bem-estar físico e mental.

Entretanto, tudo isso só começa a ser tecido, quando a sociedade entende que toda criança deve não só “gozar da proteção social e ter oportunidades e facilidades, proporcionadas por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade” (art. 2º. DUDC); mas, também, “uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade” (art. 7º DUDC) 3.

Portanto, além de romper com a ideia de que os orfanatos, hoje conhecidos como instituições de abrigo infanto-juvenil, não tenham sido pensados como algo além de “uma casa de passagem” para os abandonados e “rejeitados” pela sociedade, esse movimento de transformações impulsiona uma mudança de perspectiva quanto a certos paradigmas da sociedade. Tais como o desemprego, o empobrecimento, a marginalidade, as violências. Afinal, antes do que se imagina, essas crianças e adolescentes serão adultos.

Partindo, então, das conjunturas do seu desenvolvimento humano até lá, é possível compreender o quanto elas estão propensas a cerrar fileiras, num futuro próximo, às mazelas sociais. Nesse sentido, quanto mais projetos de inclusão sociocultural e desportiva forem implementados, dentro e/ou fora, das casas de acolhimento e instituições de abrigo infanto-juvenil públicas, mais a realidade social se afastará das suas estatísticas tristes e nefastas.

Trata-se de uma contribuição muito consistente para a cidadania brasileira, porque busca extrair nessas crianças e adolescentes a sua consciência a respeito das suas competências, das suas habilidades, das suas aptidões e dos seus talentos, revelando e desenvolvendo a sua autoestima.

Esses projetos, também, tendem a gerar uma melhoria no próprio contexto educacional. Seja pelo aspecto transdisciplinar, ou seja, há uma intercomunicação entre as disciplinas, de modo que elas podem convergir para uma temática comum.  Quanto pelo aspecto dos multiletramentos que representam a realidade de uma multiplicidade de linguagens textuais circulantes na diversidade cultural, cujo potencial de interação, colaboração, hibridismo favorece a prática da compreensão e da produção comunicativa em quaisquer contextos da sociedade contemporânea.

Assim, talvez, o que pretenda nos fazer pensar reflexivamente, o projeto “Apadrinharte”, é em um primeiro momento que “A construção do ser social, feita em boa parte pela educação, é a assimilação pelo indivíduo de uma série de normas e princípios – sejam morais, religiosos, éticos ou de comportamento – que balizam a conduta do indivíduo num grupo. O homem, mais do que formador da sociedade, é um produto dela” (Émile Durkheim – sociólogo francês). Depois, que “A arte não produz o que vemos. Ela nos faz ver” (Paul Klee – pintor, desenhista e poeta alemão).