FOME...
Falta Olhar MElhor
Por Alessandra
Leles Rocha
Se as emoções e os sentimentos são
insuficientes; assim como, o balizamento ético e moral; quem sabe, apelando
para as manifestações jurídicas consolidadas, especialmente pela Constituição
Federal de 1988, as pessoas entendam que crianças desmaiando de fome nas
escolas brasileiras é assunto sério 1.
Reza, como princípio fundamental da nossa
Carta Magna, assegurar a “cidadania e a dignidade
da pessoa humana” (art.1, incisos II e III), de modo que o país se
compromete a “construir uma sociedade
livre, justa e solidária; a garantir o desenvolvimento nacional; a erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e,
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer ouras formas de discriminação” (art. 3º).
Entretanto, acrescentando além disso o artigo 208,
o qual determina que o dever do Estado com a educação será efetivado por várias
garantias, incluindo o “atendimento ao
educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas
suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência
à saúde” (inciso VII), como fica a situação dos alunos além dos muros da
escola?
Segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o panorama atual da população brasileira se apresenta
numericamente por mais de 14 milhões de desempregados e uma inflação de
alimentos que acumula alta de mais de 10% no período de 12 meses, o que agrava
a fome e leva os indivíduos a fazer fila para conseguir ossos de boi, pés de
galinha, arroz e feijão de terceira, como última opção de sobrevivência. O
retrato “nu e cru” da insegurança
alimentar.
De acordo com o Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19, realizado este ano
pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional (Rede PENSSAN), “do total de
211,7 milhões de brasileiros (as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de
Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em
quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros (as) enfrentavam a fome. Observou-se
que a IA grave no domicílio dobra nas áreas rurais do país, especialmente
quando não há disponibilidade adequada de água para produção de alimentos e aos
animais” 2.
A grande questão é que a Insegurança Alimentar
(IA), seja ela grave ou não, representa uma afronta direta aos Direitos Humanos
fundamentais. Primeiro, que no caso das crianças, “o impacto no desenvolvimento físico e cognitivo nos primeiros dois
anos de vida é geralmente irreversível”3.
Os principais efeitos são fraqueza, baixa
imunidade, má formação e cegueira. De modo que se atingem a fase adulta estão mais
predispostos ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diabetes e
obesidade.
Segundo, porque “fome e desnutrição atrapalham o desenvolvimento de habilidades como
atenção, memória, leitura e aprendizagem de linguagem como um todo, o que por
sua vez leva ao mau rendimento escolar”. O que significa que “a criança que tem dificuldade de
aprendizagem por conta da insegurança alimentar vai mal na escola e tem maiores
chances de abandonar os estudos, assim como menores perspectivas de ter um om
salário ou de manter empregos fixos quando adultos”.
Pois, “impactos
dessa natureza não se resumem ao desempenho acadêmico, mas também afetam
capacidades de tomada de decisão e o desenvolvimento socioemocional das
crianças”, ou seja, “crianças que
sofrem de insegurança alimentar têm seu desenvolvimento e suas perspectivas de
futuro prejudicadas” 4.
Portanto, esse flagrante descompromisso com as
atuais gerações é, também, uma sinalização clara e objetiva em relação às
futuras. Não há quaisquer interesses por uma visão holística de sociedade. Os cidadãos,
pertencentes as parcelas mais vulneráveis e desassistidas, são nitidamente reconhecidos
como um custo para o Estado. Razão pela qual, as políticas públicas destinadas
a minimizar as desigualdades sociais vêm sendo cada vez mais fragmentadas e desconstruídas.
Haja vista que depois de 18 anos, o programa
Bolsa Família, do governo federal, foi extinto por Medida Provisória para dar
lugar a um novo, o Auxílio Brasil. Nada mais nada menos do que “trocar o certo pelo duvidoso”, na
medida em que a nova proposta tem prazo de duração limitada, será até dezembro
de 2022. Logo após o termino do pleito eleitoral. Depois disso, só há um mar de
incertezas para todos os que dependem desse recurso para não sucumbir
totalmente à miséria.
Acabar com o Bolsa Família, então, foi algo
surreal. “Um estudo do Ipea 5 divulgado em 2019 apontou que, em 2017,
as transferências do programa retiraram 3,4 milhões de pessoas da pobreza
extrema e outras 3,2 milhões da pobreza. E, de 2001 a 2015, o programa
respondeu por uma redução de 10% da desigualdade no país. O mesmo Ipea também
mostrou que cada real investido no programa geram R$1,8 no PIB, criando um
efeito benéfico ao crescimento do país” 6.
Para quem ainda se recusa em aceitar a
realidade, em síntese, estamos diante da materialidade inscrita no conceito de
Necropolítica, cunhado pelo filósofo, teórico político, historiador e
intelectual camaronês Achille Mbembe, com base nas reflexões de Michel Foucault
sobre o poder e as estruturas políticas das sociedades ocidentais.
Ela trata, portanto, do questionamento se o
Estado possui ou não “licença para matar”
sob o argumento da manutenção da ordem e do equilíbrio social. Assim, a
sociedade passa a ser envolvida por discursos e narrativas que visam validar as
políticas e diretrizes de segurança, pautadas em estereótipos, segregações,
conflitos e, mesmo, o extermínio de determinados grupos sociais.
Então, o abandono, a desassistência e a
negligência em relação a segmentos específicos da sociedade configuram, na
prática, a aplicação da Necropolítica. Porque os limites de sobrevivência se
esgarçaram a tal ponto que as pessoas não conseguem sobreviver.
Por essa razão é que “As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de
alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos tomarão cada vez
mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e
religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” 7.
Daí a necessidade de prestar atenção, de olhar
além da própria bolha, parar de acreditar que isso ou aquilo é problema dos
outros e não seu, de contemporizar demasiadamente os acontecimentos. Quando a
lição vem da fome se descobre, num piscar de olhos, que não é esse ou aquele
que vive na vizinhança da própria morte, na perspectiva de uma possibilidade bem
mais real da finitude existencial do que se gostaria. Somos todos. Simplesmente,
porque viver na contemporaneidade nos traz a certeza de que “Jamais houve na história um período em que o
medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do
desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro” (Milton Santos - Geógrafo). Portanto ...
1 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59215351?at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_custom2=twitter&at_campaign=64&at_custom4=87487BB6-4796-11EC-B9AC-A51716F31EAE&at_medium=custom7&at_custom3=BBC+Brasil
4 idem 3.
5 Instituto
de Pesquisa Aplicada. Brasília, DF.
6 https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/10/29/apos-18-anos-bolsa-familia-faz-seu-ultimo-pagamento-nesta-sexta-feira.ghtml
7 ACHILLE MBEMBE. In: A era do humanismo está terminando. 2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/editoria/cidadania/a-era-do-humanismo-esta-terminando-por-achille-mbembe/. Acesso em: 17 nov. 2021.