quarta-feira, 17 de novembro de 2021

FOME... Falta Olhar MElhor


FOME... Falta Olhar MElhor

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se as emoções e os sentimentos são insuficientes; assim como, o balizamento ético e moral; quem sabe, apelando para as manifestações jurídicas consolidadas, especialmente pela Constituição Federal de 1988, as pessoas entendam que crianças desmaiando de fome nas escolas brasileiras é assunto sério 1.

Reza, como princípio fundamental da nossa Carta Magna, assegurar a “cidadania e a dignidade da pessoa humana” (art.1, incisos II e III), de modo que o país se compromete a “construir uma sociedade livre, justa e solidária; a garantir o desenvolvimento nacional; a erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer ouras formas de discriminação” (art. 3º).

Entretanto, acrescentando além disso o artigo 208, o qual determina que o dever do Estado com a educação será efetivado por várias garantias, incluindo o “atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (inciso VII), como fica a situação dos alunos além dos muros da escola?

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o panorama atual da população brasileira se apresenta numericamente por mais de 14 milhões de desempregados e uma inflação de alimentos que acumula alta de mais de 10% no período de 12 meses, o que agrava a fome e leva os indivíduos a fazer fila para conseguir ossos de boi, pés de galinha, arroz e feijão de terceira, como última opção de sobrevivência. O retrato “nu e cru” da insegurança alimentar.

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19, realizado este ano pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), “do total de 211,7 milhões de brasileiros (as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros (as) enfrentavam a fome. Observou-se que a IA grave no domicílio dobra nas áreas rurais do país, especialmente quando não há disponibilidade adequada de água para produção de alimentos e aos animais” 2.

A grande questão é que a Insegurança Alimentar (IA), seja ela grave ou não, representa uma afronta direta aos Direitos Humanos fundamentais. Primeiro, que no caso das crianças, “o impacto no desenvolvimento físico e cognitivo nos primeiros dois anos de vida é geralmente irreversível”3.

Os principais efeitos são fraqueza, baixa imunidade, má formação e cegueira. De modo que se atingem a fase adulta estão mais predispostos ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade.

Segundo, porque “fome e desnutrição atrapalham o desenvolvimento de habilidades como atenção, memória, leitura e aprendizagem de linguagem como um todo, o que por sua vez leva ao mau rendimento escolar”. O que significa que “a criança que tem dificuldade de aprendizagem por conta da insegurança alimentar vai mal na escola e tem maiores chances de abandonar os estudos, assim como menores perspectivas de ter um om salário ou de manter empregos fixos quando adultos”.

Pois, “impactos dessa natureza não se resumem ao desempenho acadêmico, mas também afetam capacidades de tomada de decisão e o desenvolvimento socioemocional das crianças”, ou seja, “crianças que sofrem de insegurança alimentar têm seu desenvolvimento e suas perspectivas de futuro prejudicadas” 4.

Portanto, esse flagrante descompromisso com as atuais gerações é, também, uma sinalização clara e objetiva em relação às futuras. Não há quaisquer interesses por uma visão holística de sociedade. Os cidadãos, pertencentes as parcelas mais vulneráveis e desassistidas, são nitidamente reconhecidos como um custo para o Estado. Razão pela qual, as políticas públicas destinadas a minimizar as desigualdades sociais vêm sendo cada vez mais fragmentadas e desconstruídas.

Haja vista que depois de 18 anos, o programa Bolsa Família, do governo federal, foi extinto por Medida Provisória para dar lugar a um novo, o Auxílio Brasil. Nada mais nada menos do que “trocar o certo pelo duvidoso”, na medida em que a nova proposta tem prazo de duração limitada, será até dezembro de 2022. Logo após o termino do pleito eleitoral. Depois disso, só há um mar de incertezas para todos os que dependem desse recurso para não sucumbir totalmente à miséria.

Acabar com o Bolsa Família, então, foi algo surreal. “Um estudo do Ipea 5 divulgado em 2019 apontou que, em 2017, as transferências do programa retiraram 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema e outras 3,2 milhões da pobreza. E, de 2001 a 2015, o programa respondeu por uma redução de 10% da desigualdade no país. O mesmo Ipea também mostrou que cada real investido no programa geram R$1,8 no PIB, criando um efeito benéfico ao crescimento do país” 6.

Para quem ainda se recusa em aceitar a realidade, em síntese, estamos diante da materialidade inscrita no conceito de Necropolítica, cunhado pelo filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe, com base nas reflexões de Michel Foucault sobre o poder e as estruturas políticas das sociedades ocidentais.

Ela trata, portanto, do questionamento se o Estado possui ou não “licença para matar” sob o argumento da manutenção da ordem e do equilíbrio social. Assim, a sociedade passa a ser envolvida por discursos e narrativas que visam validar as políticas e diretrizes de segurança, pautadas em estereótipos, segregações, conflitos e, mesmo, o extermínio de determinados grupos sociais.

Então, o abandono, a desassistência e a negligência em relação a segmentos específicos da sociedade configuram, na prática, a aplicação da Necropolítica. Porque os limites de sobrevivência se esgarçaram a tal ponto que as pessoas não conseguem sobreviver.

Por essa razão é que “As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” 7.

Daí a necessidade de prestar atenção, de olhar além da própria bolha, parar de acreditar que isso ou aquilo é problema dos outros e não seu, de contemporizar demasiadamente os acontecimentos. Quando a lição vem da fome se descobre, num piscar de olhos, que não é esse ou aquele que vive na vizinhança da própria morte, na perspectiva de uma possibilidade bem mais real da finitude existencial do que se gostaria. Somos todos. Simplesmente, porque viver na contemporaneidade nos traz a certeza de que “Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro” (Milton Santos -  Geógrafo). Portanto ...