Um
dia cinzento e nublado ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Devo confessar que jamais
imaginei que um dia cinzento e nublado me traria tanto alento e paz. Mas,
depois de meses e meses sem uma gota sequer de chuva, dias assim têm sido um
símbolo de esperança, de sobrevivência para os seres humanos e o meio ambiente.
Ninguém aguenta tanta secura, tanto calor, tanta poeira, tanta fumaça ...
No entanto, é preciso se
atentar para o fato de que nada adianta se a chegada das chuvas não vier
acompanhada de medidas práticas e objetivas de recuperação ambiental. Isso
significa iniciar rapidamente a recomposição vegetal das áreas degradadas,
porque sem a quantidade e diversidade de flora suficiente e sem a recuperação
do solo exposto às intempéries, os volumes de chuva que vierem a cair podem se
perder rapidamente.
Tenho visto uma certa
euforia, principalmente pelos jornalistas, a respeito das notícias provenientes
dos veículos de monitoramento climático e de chuvas sobre a probabilidade de um
volume acima das expectativas para os próximos meses. Acontece que isso não é o
suficiente para resolver a crise hídrica já instalada no país.
Primeiro, porque a
incidência das chuvas não é distribuída de maneira regular e homogênea em todos
os lugares. De modo que a quantidade e a intensidade podem não satisfazer
plenamente as demandas dessa ou daquela região. E essa diferença tem como um
dos seus componentes de análise, o fato do quão degradada está a área. Quanto
menos cobertura vegetal se tem, quanto mais o solo está descoberto, pior se
torna a regulação do volume pluviométrico e, por consequência, todo o volume
hídrico. Afinal, a quantidade de água que eventualmente possa cair, não
encontra respaldo na estrutura necessária para cumprir o ciclo hidrológico.
Segundo, porque nas áreas
que foram densamente povoadas e urbanizadas, a dificuldade de a água penetrar
no solo e alcançar os lençóis freáticos é imensa. Isso explica o fato de que as
enchentes nos centros urbanos têm sido mais recorrentes, ou seja, não é culpa
somente do excesso de lixo nas vias públicas a entupir os bueiros e as “bocas
de lobo”, ou a insuficiência desses para reter o volume de água derramada, de
uma única vez, pelos céus, ou erros de dimensionamento da rede pluvial.
Uma imensa maioria das
cidades brasileiras padece de áreas de absorção de chuva, dada a extensão da
cobertura asfáltica presente. A baixa densidade de arborização desses locais
precisa ser repensada; pois, cada vez que a água das chuvas cai, ela se perde, justamente,
pelo fato de não encontrar meios para ficar retida nas camadas mais profundas
do solo.
Terceiro, porque os espaços
geográficos, cidades e campos, são unidades vivas, ou seja, estão continuamente
em desenvolvimento e transformação. Algo que se traduz, ano a ano, na imposição
de novas demandas para o fornecimento de bens, produtos e serviços. Dessa
maneira, o consumo de água e de energia elétrica, por exemplo, não permanecem
estáveis, pela impossibilidade de se cravar uma expectativa bem definida a
respeito.
Foi o que se viu, por
exemplo, durante a Pandemia. Sendo a higiene a palavra de ordem contra o vírus,
a demanda de água foi intensa. Do mesmo modo, houve um aumento expressivo no
consumo de eletricidade, não só pela questão do isolamento social, quando uma
significativa parcela da população passou a trabalhar em sistema home office; mas, pela dinâmica frenética
nos hospitais, com a ampliação de leitos de enfermaria e de Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs).
De modo que esses
movimentos, dentro do contexto social, implicam em uma manifestação de incapacidade
crônica em manter, sob níveis adequados, os reservatórios superficiais e
subterrâneos de água, a fim de atender ao ser humano em todas as suas
necessidades e atividades. Partindo da conjuntura atual, em que se chegou a
realidade de uma crise hídrica, com os volumes desses reservatórios muito
abaixo do limite suportável, ainda que chova em profusão e sabendo que parte da
água se perderá pelo caminho, não haverá possibilidade de reestabelecer, de
fato, uma reserva.
Afinal de contas, a
sociedade não tem como parar e esperar os reservatórios se encherem completamente,
para depois retomarem a utilização da água. Todo mundo precisa de água para
beber, para se higienizar, para lavar roupa, para limpar a casa, para regar o
jardim, para plantar, para cuidar dos animais, para impulsionar a indústria,
para gerar energia, ...
A verdade é que, há tempos,
se permitiu viver sob um déficit hídrico que aumenta exponencialmente, sem
encontrar quaisquer resistências a respeito ou, quem sabe, medidas de mitigação
ou resolução. Muito pelo contrário. O que se viu foi muito desmatamento, muita
queimada, muita destruição de matas ciliares, muita agressão gratuita contra a
cobertura vegetal nos principais biomas brasileiros.
Talvez, por tudo isso é que
se construa a significante emoção do dia cinzento e nublado. Porque não é a
aridez do ambiente que perturba e chama a atenção, que delira com a
possibilidade de ver cair sobre si algumas gotas de água; mas, a aridez que já
atingiu o cerne da humanidade, que habita sua alma e sua consciência, onde a
chuva não pode agir.
Portanto, esta não é uma questão só de sede e calor, ela é bem mais profunda e complexa do que isso. Ela nos impõe a verdade indigesta de que, “justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco – escritor italiano); mas, não altera, em absoluto, o fato de que “A grande responsabilidade do ser humano consiste em saber discernir. O mundo espera que cada um de nós assuma esta importante tarefa do justo equilíbrio” (textos judaicos). E nesse ponto de reflexão, então, percebemos como “a dimensão ética começa quando entra em cena o outro” (Umberto Eco – escritor italiano); porque, no fundo, cada um é responsável por si ao mesmo tempo em que é por este, por aquele, ... por tudo e por todos.