Será
mesmo só preconceito?
Por
Alessandra Leles Rocha
Nascido no século XIX
e falecido no século XX, Albert Einstein dizia, “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”.
Mas, se engana quem pensa que no século XXI as coisas estejam diferentes.
Infelizmente, o ser humano já dispõe de sistemas computacionais ciberfísicos,
interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, computação em nuvem,
terapia genética a partir de nanotecnologia, ...; mas, está preso a ideologias
retrógradas e, profundamente, preconceituosas. Haja vista a misoginia e o
sexismo.
Contrariando as
voltas que o mundo já deu, a mulher ainda é vista e entendida como “ser humano de segunda classe”, dentro
de sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas. O estigma da objetificação
feminina é recorrente e, muitas vezes, sutil, porque está estruturado na
identidade sociocultural de cada nação; sobretudo, a partir do patriarcado.
Isso significa que a organização social ao redor do mundo, em maior ou menor
escala, sofre a dominação masculina sob diferentes contextos, ou seja,
políticos, econômicos e familiares.
Algo que se explica
pelo fato de não ter sido promovida uma ruptura com a ideia de um “homem provedor” e de uma mulher “dependente de provento”, o que resulta
em um “contrato tácito de troca”, no
qual estabelece subliminarmente o papel social a ser desempenhado por homens e
mulheres dentro das relações familiares.
No entanto, não raras
as vezes, esse processo ultrapassa as fronteiras domiciliares para alcançar
outros espaços, tais como, o mercado de trabalho e as instituições de ensino. De
modo que, apesar de naturalizado e, em muitos casos, legitimado nas sociedades,
todo esse processo evidencia um limiar de violências diversas, contra as
mulheres, ou seja, elas podem ser físicas, psicológicas, morais, sexuais e/ou
patrimoniais 1.
Razão pela qual, no
Brasil, foi criada em 2006, a lei n. º 11.340 2,
conhecida por Lei Maria da Penha, estabelecendo mecanismos jurídicos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. De fato, um grande
passo, se comparado a muitos outros países; mas, ainda, insuficiente para dar
conta de estatísticas tão graves.
Segundo dados do
Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), “uma em cada quatro mulheres acima de 16
anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil,
durante a pandemia de Covid [...], isso significa que cerca de 17 milhões de
mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no último
ano” 3.
Tudo isso deveria
ser, então, motivo mais do que suficiente para um posicionamento social mais
empático às mulheres e ao universo feminino, do que tem sido possível observar.
Não há como negar que, nos últimos 3 anos, a onda conservadora da
extrema-direita se abateu novamente sobre o Brasil, trazendo uma mobilização de
valores e princípios que se contrapõe totalmente a uma visão contemporânea da
mulher.
Em linhas gerais,
esse embate ideológico se sustenta sob uma ferrenha desqualificação do Feminismo,
sem considerar todas as evoluções, as quais o conceito vem elaborando ao longo do
tempo, até o século XXI.
O que me faz lembrar
de uma citação muito interessante da escritora nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie:
“Algumas pessoas me perguntam: ‘Por que usar a palavra ‘feminista’? Por que não
dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido? ’ Porque seria desonesto. O feminismo faz, obviamente,
parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas escolher uma expressão vaga
como ‘direitos humanos’ é negar a especificidade e particularidade do problema
de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao
longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as
mulheres. Que o problema não é o ser humano, mas especificamente um ser humano
do sexo feminino. Por séculos seres humanos eram divididos em dois grupos, um
dos quais excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução para esse
problema esteja no reconhecimento desse fato”.
Acontece que lidar
com a simples ideia da existência do Feminismo, enquanto corrente de pensamento
e discussão social, significa para uma significativa parcela conservadora da
sociedade, a existência de uma história feminina sem direitos, privilégios ou
regalias. De certo modo é uma desconstrução de uma identidade social que lhes
foi imputada há séculos, o que torna a situação bastante desconfortável e
ameaçadora para confrontar.
Para compreender
melhor essa resistência, sugiro assistir ao filme O Sorriso de Monalisa, de 2003 4, ambientado na Wellesley College,
Massachusetts, uma das mais tradicionais escolas norte-americanas. Esse era o
lugar onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres, no recorte temporal
do filme, década de 50, recebiam uma dispendiosa educação para se
“transformarem” em cultas esposas e responsáveis mães.
Mas, a questão não
para por aí. Há outros componentes a serem considerados para a análise, o que inclui
o preconceito LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Trans, Queers,
Pansexuais, Agêneros, Pessoas não binárias e Intersexo). Porque ele não apenas
interfere na manutenção dos valores e princípios conservadores da família; mas,
particularmente, tende a limitar o número de homens disponíveis para o
casamento tradicional, ou seja, entre um homem e uma mulher heterossexuais.
Trata-se, então, de
um impacto sobre o “capital marital”,
que deve ser alcançado, segundo a visão dos conservadores. Para essas pessoas ter
um marido significa, portanto, ter um “produto”
raro e valorizado no contexto da realidade contemporânea 5.
Não mais que de
repente, a realidade sobre os preconceitos vai, portanto, se descortinando
diante do nosso nariz. Vai possibilitando compreender bem mais do que forma e
conteúdo; mas, a direção e o sentido dessas manifestações no contexto social contemporâneo.
No caso específico
das questões de gênero, o problema “é que
ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem
mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o
peso das expectativas do gênero” (Chimamanda Ngozi Adichie).
Daí o fato de ela ter
se tornado um grande ponto de inflexão para a sociedade contemporânea. Afinal, “o que escolhemos, porque escolhemos e o
tempo em que o fazemos, manifesta ao mundo, aos outros e a nós mesmos, a nossa
identidade num determinado ponto da sua construção. O que escolhemos ser aí...
e até aí” (José Luís Nunes Martins – filósofo português).
Mas, se alguns se
interpõem nesse caminho, ou se permitimos que o façam, nunca nos saberemos de
fato e de direito; bem como, não nos sentiremos plenos e prontos para buscar o
que a vida tenha a nos oferecer.
Talvez, por isso, Eduardo
Galeano, escritor e jornalista uruguaio, afirmou, com tanta propriedade, que “vivemos em plena cultura da aparência: o
contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as
roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus”.