segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Será mesmo só preconceito?


Será mesmo só preconceito?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nascido no século XIX e falecido no século XX, Albert Einstein dizia, “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. Mas, se engana quem pensa que no século XXI as coisas estejam diferentes. Infelizmente, o ser humano já dispõe de sistemas computacionais ciberfísicos, interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, computação em nuvem, terapia genética a partir de nanotecnologia, ...; mas, está preso a ideologias retrógradas e, profundamente, preconceituosas. Haja vista a misoginia e o sexismo.

Contrariando as voltas que o mundo já deu, a mulher ainda é vista e entendida como “ser humano de segunda classe”, dentro de sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas. O estigma da objetificação feminina é recorrente e, muitas vezes, sutil, porque está estruturado na identidade sociocultural de cada nação; sobretudo, a partir do patriarcado. Isso significa que a organização social ao redor do mundo, em maior ou menor escala, sofre a dominação masculina sob diferentes contextos, ou seja, políticos, econômicos e familiares.

Algo que se explica pelo fato de não ter sido promovida uma ruptura com a ideia de um “homem provedor” e de uma mulher “dependente de provento”, o que resulta em um “contrato tácito de troca”, no qual estabelece subliminarmente o papel social a ser desempenhado por homens e mulheres dentro das relações familiares.

No entanto, não raras as vezes, esse processo ultrapassa as fronteiras domiciliares para alcançar outros espaços, tais como, o mercado de trabalho e as instituições de ensino. De modo que, apesar de naturalizado e, em muitos casos, legitimado nas sociedades, todo esse processo evidencia um limiar de violências diversas, contra as mulheres, ou seja, elas podem ser físicas, psicológicas, morais, sexuais e/ou patrimoniais 1.

Razão pela qual, no Brasil, foi criada em 2006, a lei n. º 11.340 2, conhecida por Lei Maria da Penha, estabelecendo mecanismos jurídicos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. De fato, um grande passo, se comparado a muitos outros países; mas, ainda, insuficiente para dar conta de estatísticas tão graves.

Segundo dados do Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), “uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil, durante a pandemia de Covid [...], isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano” 3.

Tudo isso deveria ser, então, motivo mais do que suficiente para um posicionamento social mais empático às mulheres e ao universo feminino, do que tem sido possível observar. Não há como negar que, nos últimos 3 anos, a onda conservadora da extrema-direita se abateu novamente sobre o Brasil, trazendo uma mobilização de valores e princípios que se contrapõe totalmente a uma visão contemporânea da mulher.

Em linhas gerais, esse embate ideológico se sustenta sob uma ferrenha desqualificação do Feminismo, sem considerar todas as evoluções, as quais o conceito vem elaborando ao longo do tempo, até o século XXI.

O que me faz lembrar de uma citação muito interessante da escritora nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie: “Algumas pessoas me perguntam: ‘Por que usar a palavra ‘feminista’? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido? ’ Porque seria desonesto. O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas escolher uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres. Que o problema não é o ser humano, mas especificamente um ser humano do sexo feminino. Por séculos seres humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução para esse problema esteja no reconhecimento desse fato”.

Acontece que lidar com a simples ideia da existência do Feminismo, enquanto corrente de pensamento e discussão social, significa para uma significativa parcela conservadora da sociedade, a existência de uma história feminina sem direitos, privilégios ou regalias. De certo modo é uma desconstrução de uma identidade social que lhes foi imputada há séculos, o que torna a situação bastante desconfortável e ameaçadora para confrontar.

Para compreender melhor essa resistência, sugiro assistir ao filme O Sorriso de Monalisa, de 2003 4, ambientado na Wellesley College, Massachusetts, uma das mais tradicionais escolas norte-americanas. Esse era o lugar onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres, no recorte temporal do filme, década de 50, recebiam uma dispendiosa educação para se “transformarem” em cultas esposas e responsáveis mães.

Mas, a questão não para por aí. Há outros componentes a serem considerados para a análise, o que inclui o preconceito LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Trans, Queers, Pansexuais, Agêneros, Pessoas não binárias e Intersexo). Porque ele não apenas interfere na manutenção dos valores e princípios conservadores da família; mas, particularmente, tende a limitar o número de homens disponíveis para o casamento tradicional, ou seja, entre um homem e uma mulher heterossexuais.

Trata-se, então, de um impacto sobre o “capital marital”, que deve ser alcançado, segundo a visão dos conservadores. Para essas pessoas ter um marido significa, portanto, ter um “produto” raro e valorizado no contexto da realidade contemporânea 5.

Não mais que de repente, a realidade sobre os preconceitos vai, portanto, se descortinando diante do nosso nariz. Vai possibilitando compreender bem mais do que forma e conteúdo; mas, a direção e o sentido dessas manifestações no contexto social contemporâneo.  

No caso específico das questões de gênero, o problema “é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero” (Chimamanda Ngozi Adichie).

Daí o fato de ela ter se tornado um grande ponto de inflexão para a sociedade contemporânea. Afinal, “o que escolhemos, porque escolhemos e o tempo em que o fazemos, manifesta ao mundo, aos outros e a nós mesmos, a nossa identidade num determinado ponto da sua construção. O que escolhemos ser aí... e até aí” (José Luís Nunes Martins – filósofo português).

Mas, se alguns se interpõem nesse caminho, ou se permitimos que o façam, nunca nos saberemos de fato e de direito; bem como, não nos sentiremos plenos e prontos para buscar o que a vida tenha a nos oferecer.

Talvez, por isso, Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, afirmou, com tanta propriedade, que “vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus”.