Não
adianta fechar os olhos
Por
Alessandra Leles Rocha
Desde que mundo é mundo, a
humanidade já foi surpreendida por grandes epidemias. De repente, quando menos se
espera, um agente infectocontagioso aparece descompensado na sua capacidade
reprodutiva e na dificuldade de resposta imediata do ser humano e aí, o caos
está feito. A grande questão é que, se somos tão vulneráveis, assim, ao
imprevisível, já não deveríamos ter aprendido algo diferente com as
experiências relatadas nas páginas da história?
De certa forma, sim. Mas, entre
um episódio pandêmico e outro há, geralmente, uma lacuna temporal. O que
significa que para as gerações que sucedem aquele determinado evento, os
acontecimentos parecem ficção, coisa de outro mundo, muito distantes da sua
percepção racional.
É daí que surge o grande desafio
da conscientização popular a respeito da gravidade da situação e da necessidade
de participação cooperativa no controle e na mitigação da doença, porque as
pessoas não se sentem efetivamente ameaçadas pelos acontecimentos, até que
sejam atingidas diretamente por eles.
Na verdade, o que as experiências
pregressas fornecem de imensa valia as atuais gerações é apontar para a
realidade do imponderável. Se não temos como nos precaver de tudo o que
acontece no mundo, ao menos, podemos ter as nossas cartas na manga a respeito.
Certos cuidados simples e básicos com a saúde, com o cotidiano, com tudo o que
possa de algum modo fomentar e desencadear uma situação médico-sanitária fora
de controle.
Vírus, bactérias, fungos e
protozoários ainda desconhecidos pela Ciência devem existir aos milhares, mundo
afora. Especialmente, em razão da própria mutabilidade natural, ou de efeitos
ambientais, que podem sofrer ao longo de suas vidas. Portanto, eles estão por
aí.
Em contrapartida, os vetores e
hospedeiros para organismos desse tipo são bastante conhecidos e desfrutam de
um consistente arcabouço de informações técnico-científicas a seu respeito.
Dentre os mais conhecidos estão diversos insetos, mamíferos e aves; sobretudo,
aqueles de natureza silvestre.
Isso quer dizer, que a relação
entre o Meio Ambiente e os seres humanos perpassa diretamente pelas questões de
saúde. O descaso que se atribui tantas vezes às discussões ambientais, de certo
modo, colabora significativamente para muitas das mazelas enfrentadas pela própria
humanidade.
O desmatamento é, por exemplo, um
elemento carreador de inúmeras doenças para os centros urbanos, porque aproxima
vetores e hospedeiros contaminados da população. Ao perderem seu habitat
natural eles são forçados a buscar um outro espaço geográfico para sobreviver,
o que geralmente culmina em áreas urbanizadas ou periurbanizadas, que
correspondem a locais onde as atividades rurais e urbanas se misturam,
dificultando uma determinação precisa dos limites físicos e sociais do espaço
urbano e do rural.
Os recursos hídricos contaminados
por diferentes efluentes químicos tóxicos são outra fonte importante de
desenvolvimento de doenças, muitas delas graves e de alto risco de letalidade;
razão pela qual, demandam atendimento especializado de saúde, nem sempre disponível
e acessível a todos.
As queimadas, que promovem a
formação de particulados nocivos no ar, também, despertam preocupação. Porque ao
tornarem o ar denso e difícil de respirar, as partículas presentes podem não só
se acumular no sistema respiratório humano, desencadeando inflamações agudas e crônicas;
mas, auxiliar no transporte de partículas virais promotoras de patologias,
ainda mais, severas aos seres humanos.
Então, olhando com atenção a
dinâmica dessa Pandemia, que parece longe de um fim, antes da preocupação em
retomar o cotidiano a partir de um novo contexto, é preciso entender que o
risco biológico paira sobre a humanidade, como uma espada pontiaguda.
Seja pelo fato de que o
Sars-COV-2 tende a permanecer circulante entre a população por um período
indeterminado, apesar da diversidade de imunobiológicos já desenvolvidos, e
outros em desenvolvimento, para uma imunização de caráter preventivo à
gravidade da sua manifestação patológica.
Seja pelas próprias variantes que
devem surgir para garantir a preservação do próprio vírus. O que significa um
mecanismo viral para burlar constantemente a vigilância do sistema imune do ser
humano e colocá-lo à mercê de uma resposta imunológica menos efetiva as
novidades.
Ou, simplesmente, pelo surgimento
de um outro vírus qualquer, de alto poder infectocontagioso. Isso implicaria em
recomeçar um novo ciclo de esforços de combate, tanto pela Ciência quanto pela
própria sociedade. Seriam novas perdas humanas. Novos lockdowns. Novas medidas de distanciamento social. Um novo acirramento
das práticas de higiene corporal e ambiental. Novas corridas por
imunobiológicos e fármacos eficientes contra a nova doença. Enfim...
De modo que o fato de, ainda,
existirem pessoas alheias e negligentes a tudo isso, não muda a verdade de que os
agentes biológicos são muito mais rápidos do que as respostas humanas as suas
investidas. Nem tampouco, de que uma mudança de perspectiva interior, a
respeito da experiência pandêmica, precisa acontecer o mais rápido possível em
cada indivíduo.
Afinal, até aqui, a humanidade
depositou uma confiança cega e absoluta na capacidade científica e tecnológica
que alcançou para resolver tudo à revelia da sua participação ou de seu
protagonismo direto.
Ela quis acreditar que quaisquer
problemas, surpresas, incidentes, seriam rapidamente solucionados como em um
passe de mágica, enquanto ela permaneceria tocando a vida como sempre fez. Mas,
entre a conjectura e a realidade há uma diferença inquestionável.
Há mais de um ano a Ciência está debruçada
diuturnamente para responder aos questionamentos sobre o Sars-COV-2 e, de
maneira precisa e consistente, ela não conseguiu suprir todas essas demandas. As
próprias informações sobre o reservatório animal do vírus, antes dele alcançar
os seres humanos, ainda são controvertidas. Portanto, há um caminho longo nos estudos
que cercam o Sars-COV-2; mas, também, quaisquer outros agentes biológicos.
Além disso, a Pandemia expôs a
comunidade científica a realidade de um outro fenômeno denominado de Sindemia
da COVID-19; o que significa dizer que outros problemas de saúde, tais como
obesidade e doenças cardiovasculares, ao se interagirem de maneira sinérgica
com o vírus, contribuíram para uma sobrecarga nos pacientes e ampliaram seu
risco de longos períodos de internação e de mortalidade.
Segundo Merrill Singer, antropólogo
e médico da Universidade de Connecticut, nos EUA, a Sindemia é uma situação que
potencializa danos maiores do que a mera soma das doenças, porque estão envolvidas
no contexto as interações biológicas, sociais e econômicas, tornando a
população mais vulnerável ao seu impacto.
O que pode ser apurado por um
breve perfil socioeconômico das populações nessa Pandemia. As comorbidades maltratadas ou mal
acompanhadas pelos serviços de saúde somadas à impossibilidade de aquisição de
tratamentos específicos e farmacológicos para elas, em virtude da baixa condição
econômica dos pacientes, os colocou na dianteira das estatísticas de
mortalidade pelo Sars-COV-2.
Portanto, ter essa consciência,
talvez, seja a questão mais importante para a humanidade a partir de agora. Não
há nada que possa ser estabelecido como definitivo, ou resolvido, ou superado. O
modo como os seres humanos se comportam e se interagem, entre si e com o meio
ambiente, é e será sempre um fator determinante para acelerar ou retardar novos
episódios epidêmicos e pandêmicos no mundo. Não adianta fechar os olhos.